Sociedade

A menina órfã lutou sempre por objectivos e hoje é uma vencedora

Rui Ramos

Jornalista

Maria da Conceição Gonçalves, ou São Gonçalves, como é conhecida pelos inúmeros amigos um pouco por toda a Angola, nasceu em 1951, filha de pais portugueses que vieram para o Colonato da Cela (Waku Kungo).

25/03/2024  Última atualização 10H55
Maria da Conceição Gonçalves (São Gonçalves) © Fotografia por: DR
O pai, Manuel Gonçalves, agricultor e sapateiro, era especialista em botas mexicanas e caneleiras, que se usavam muito naquele tempo. Iam pessoas de toda a Angola tirar as medidas para depois irem buscar ou o pai enviar.

A mãe, doméstica e costureira, fazia no seu tear lençóis, toalhas de linho, colchas e tapetes. A felicidade durou pouco tempo.

Com apenas sete anos, no meio de uma tempestade, uma faísca caiu em cima da casa, matando a mãe e o irmão ao mesmo tempo. "As camas eram de ferro e, de repente, a cama acendeu, um clarão enorme formou-se por cima da minha cabeça, saí a correr, fui apanhada e levada para casa pelos vizinhos."

A mãe lavava a loiça fora de casa e tinha as mãos na água, apanhou um choque e caiu sobre um barril com água, não havia água canalizada, e as pedras da chaminé caíram por cima dela e agora estava morta. O irmão ficou totalmente carbonizado.

A partir daí, começou a má sina de São Gonçalves, "andar de mão em mão”. Encaminhada para a casa de parentes em Luanda, estudou na Missão de S.Paulo. "Eu era uma criança terrível e era difícil alguém ter paciência para me aturar, por isso fui de novo recambiada para a Cela." Em 1961, foi posta aos cuidados de uma professora, que lhe infligiu contínuos maus tratos.

"Batia-me muito na escola e em casa. Eu fazia todo o trabalho de casa, como se fosse criada e até tratava dos animais, cortava lenha com o machado e não comia com eles à mesa." Depois de muito batida pela professora, São Gonçalves voltou para casa do pai. "A minha alcunha era "Maria Rapaz”, tudo o que era de rapaz eu lá estava, desde ir aos pássaros com fisga, fazer armadilhas para caçar, andar de bicicleta e de motorizada, trepar às árvores." Mas, aprendeu também a fazer crochet, bordar à mão e à máquina e costura.

São Gonçalves estudou até o 2º ano, porque na altura não havia mais. Foi inscrita no Colégio de São José de Cluny, mas nunca chegou a ir, faltou o dinheiro para as propinas. "Os patrões do meu irmão, que, entretanto, tinha resolvido ir trabalhar para Luanda, passaram pela Cela e levaram-me, puseram-me a dormir com a criada e a fazer os mesmos serviços que ela e nada de me matricularem na escola."

Nunca teve uma peça de roupa nova, a senhora dava-lhe o que já não queria, ou não servia. Um ano depois, o pai foi a Luanda e depara-se com a situação e lá vai São Gonçalves de novo para a Cela. "Já havia outras escolas, mas não me puseram a estudar, talvez por falta de dinheiro, pois o meu pai sozinho não conseguia pagar um colégio", diz-nos São Gonçalves. Algum tempo depois, o irmão chama-os para irem viver em Luanda e foram alugando uma casa no Bairro Popular.

Foi aí que conheceu o futuro marido, tendo casado com apenas 16 anos, e um ano depois nasceu a filha, Carla Cristina Gonçalves Ornelas de Castro, que criou sozinha, pois o casamento durou apenas um ano e meio.

"Filha que é o meu maior orgulho e que todo mundo conhece como Carla Castro, locutora da RNA."

São Gonçalves decide então fazer o que sempre quis, praticar atletismo.

"Comecei no Sporting de Luanda e depois fui para o Ferroviário, onde fui recordista dos  800 e 1.500 metros de 1973 a 1981." No Karatê Dô, chegou a cinturão vermelho.

"Trabalhava no Banco Totta Standard de Angola e tirei o Curso de Educação Física. Concluído o curso, abandonei o Banco e fui dar aulas na escola 1º de Maio e depois na Nzinga Mbandi, fiz cursos de treinadora de atletismo e fiquei como assessora dos técnicos estrangeiros que estavam nessa altura em Angola."

São Gonçalves abandonou o desporto e a Educação Física, porque, estando indicada para tirar o curso superior de Treinadora de Atletismo em Leipzig, na Alemanha de Leste, por ter sido sempre a melhor classificada em todos os cursos, no seu lugar mandaram outra pessoa.

São Gonçalves é recrutada pela Sonangol e foi trabalhar na Aeronáutica da empresa, como chefe de Reservas e Tráfego e mais tarde chefe de Departamento das Operações Técnicas, onde permanece até à reforma, em 2011.

São Gonçalves fez o Curso de Operações de Vôo, em 1991, na TAP, e a qualificação dos aviões FK-27, FK-50, Beechctaft 200, Boeing 727 e 737 e Airbus 319-320.

"Decidi regressar à Cela e continuar o trabalho do meu pai, a agricultura, suinicultura e avicultura, faço também artesanato e fui secretária executiva da Associação dos Naturais e Amigos da Cela - ASNAC, de que hoje sou vogal da Direcção Fiscal."

São Gonçalves tem percorrido as longas estradas de Angola de lés a lés e quando falou connosco ia em direcção à Gabela. Para concluir, a produtora de rosas de porcelana ressalta:

"No Desporto, fui campeã feminina de rally em todas as provas em que participei.”

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