Reportagem

Bairro Terra Nova: Onde os moradores aspiram pelo brilho antigo

César André

Jornalista

O bairro Terra Nova,cuja construção começou nos primórdios dos anos cinquenta, faz fronteira com a antiga Estação dos Musseques dos Caminhos-de-Ferro de Luanda, a Sul; a Norte, com o antigo bairro Cemitério Novo (Popular), através da Estrada de Catete (Avenida Deolinda Rodrigues) e a Leste, com o Caputo. É um bairro que já teve a sua época áurea e hoje os moradores clamam por obras de reabilitação que lhe confiram o brilho de outrora e lhe devolvam a condição de bom lugar para se viver

03/03/2024  Última atualização 07H57
© Fotografia por: Arsénio Bravo| Edições Novembro

Numa área virgem com cheiro a terra molhada associado a capinzais altos, e um certo declive com clareiras à mistura, onde pássaros e outros animais tinham o seu modus vivendi, nasceu, nos anos 1950, a circunscrição que depois se transformou numa das mais emblemáticas e modernas de Luanda.    Estamos a falar da Terra Nova, um bairro com várias histórias por serem contadas e que dispensa apresentação. Geograficamente situado a Sudeste da cidade de Luanda, a seis quilómetros do centro urbano, foi por muito tempo uma das "jóias preciosas” da capital. Construído na sequência de programas públicos e iniciativas de entidades privadas com vista à construção de moradias sociais para os funcionários públicos e operários de baixa e média renda,a Terra Nova atingiu a sua plenitude na década de 1970.Nas décadas seguintes os chamados bairros populares, em que se incluía a Terra Nova, atingiram tamanha densificação e degradação que se passaram a assemelhar aos antigos musseques informais.

No  tempo colonial, os musseques, para melhor entendimento, eram espaços de exclusão social. A Igreja do Carmo e a Igreja da Nazaré estavam em musseques ordenados desde o século XVII,aquando da primeira configuração urbana da cidade, onde as famílias autóctones viviam nas margens do velho centro da cidade, com as igrejas a desempenharem um papel de charneira.

Voltando à Terra Nova, a circunscrição faz fronteira com a Estação dos Musseques dos Caminhos-de-Ferro de Luanda, a Sul; a Norte, com o antigo bairro Cemitério Novo (Popular), através da Estrada de Catete (Avenida Deolinda Rodrigues), e a Leste com o Caputo. O bairro foi construído com traços arquitectónicos semelhantes a algumas localidades da antiga metrópole (Sintra, Odivelas, Óbidos, Costa da Caparica…) e tinha como moradores maioritariamente portugueses. O espaço onde evoluiu o bairro, nos primórdios dos anos 1950,tinha bastantes declives ladeados por uma vala, próximo a linha dos Caminhos-de-Ferro de Luanda, lá para os lados do antigo Congo Pequeno (Cazenga).Nesta zona fronteiriça com o Cazenga, nos anos 1960, os colonialistas portugueses entenderam edificar uma base militar de Comandos,que tinha como cartão de visita, à entrada do quartel, um helicóptero Allouette retido(cravado) ao solo.

Fruto da similitude com centros urbanos de Portugal, as residências da Terra Nova atraíram gentes provenientes da Grande Lisboa, que aportavam a Angola em busca de melhores oportunidades de vida.O bairro foi, por assim dizer, uma das "jóias” preferidas dos cidadãos lusos em Luanda, tendo nos primórdios granjeado prestígio e um estatuto social invejável, de se lhe tirar o chapéu.Os arruamentos, terraplanados e asfaltados com rigor e profissionalismo e com a devida sinalização de trânsito, tanto vertical como horizontal, tornaram o bairro num ex-libris dos musseques de Luanda. A essas ruas, construídas com rigor arquitectónico, foram atribuídos nomes de localidades e de individualidades da antiga metrópole e suas possessões.Por ordem expressa do Governo português as ruas ocidentais do bairro Terra Nova receberam nomes de províncias ultramarinas de Portugal, enquanto que as do lado oriental receberam nomes de províncias (distritos) da antiga Metrópole.Dos nomes atribuídos a ruas destacam-se: Alentejo, Henrique Gago da Graça e Macau, consideradas como muito movimentadas por darem acesso à antiga estrada de Catete, hoje avenida Deolinda Rodrigues.

Num total que compreende uma extensão de 14 quilómetros de estrada, algumas das outras ruas são a Lino Amezaga, Ilha de Cabo Verde, Minho, Ilha da Madeira, e Ribatejo.A rua do Minho era um traçado que também dava acesso à estrada de Catete, passando pela prestigiada agência bancária do Banco Pinto Sotto Mayor, uma das coqueluches da zona, na época.Terra Nova conta ainda com as ruas das Beiras de Cima e de Baixo, Bolama, Cidade de Goa, Estremadura, Damão, Dili, Bissau, Quelimane, Douro, Mormugão, Açores, Trás-os-Montes, São João Baptista de Ajuda e a travessa da rua C10.

Para além destas, nas proximidades do bairro existem outras como a rua Mortuoso, C11, rua de Lândana, CB, rua de Ovar, C9, Largo Demóstenes de Almeida, entre outras referências topográficas e toponímicas.

 
Como o bairro nasceu

A Terra Nova era, nos primórdios dos anos 1950, um local baldio de capinzal alto, com uma grande porção de terra vermelha e umas quantas clareiras. Existiam duas valas de drenagem bem próximo do local onde foi construída a Igreja da Paróquia do Cristo Rei da Glória, por um lado, e, por outro, da linha dos Caminhos-de-Ferro de Luanda.Reza a história que, como o local era virgem (não habitado e sem  lavras por perto) os populares entenderam atribuir a designação Terra Nova ao mesmo. Zona muito calma, com árvores frondosas, era assim caracterizada a área, que possuía muitas árvores de frutos silvestres, tais como tabaibeiras, maboqueiros, imbondeiros e tambarineiros. Por obra da natureza, havia nesse matagalalguns bichos que atraíam os garotos das zonas adjacentes. Os garotos iam caçar pássaros e se deparavam com sardões. Apanhavam kiberras, gafanhotos, cambrototos, quinjongos, catatos e outros bichinhos.

Nos finais dos anos 1950 e princípio de 1960, os arredores da famosa Fábrica de Tabaco Ultramarino (FTU) desfrutavam de uma verde paisagem que alegrava quem por aquelas bandas passasse. É assim que foram surgindo lavras de alguns populares que viviam nas zonas adjacentes. Praticavam a agricultura de subsistência bem junto da linha do Caminho-de-Ferro, lá para os lados do Cazenga. Nas "ongas”, palavra que em kimbundo significa "lavras”, os populares   cultivavam a terra sob sol abrasador, aturando o barulho intenso da passagem dos comboios e das viaturas apressadas no asfalto da estrada de Catete.Uma certa narrativa indica que apartir dos arredores da FTU, quer do lado esquerdo,quer do lado direito da estrada de Catete, para quem vai em direcção a Viana, a maior parte das extensões de terra eram lavras, à excepção de algumas residências que os colonos foram erguendo até ao 25 de Abril de 1974.

O bairro Terra Nova nasceu num local estratégico, adjacente à estrada de Catete. A Polícia Militar Portuguesa estava instalada num edifício localizado na rua do Alentejo, próximo a actual Igreja do Simão Toco, nas imediações do campo do Grupo Desportivo da Terra Nova, hoje Flaminguinhos.

Dados fornecidos pelo Censo de 1 de Setembro de 1964 indicam que a Terra Nova e o bairro Caputo possuíam, no seu todo, 7.411 (Sete Mil Quatrocentos e Onze) habitantes.  A Terra Nova não tinha nada a dever a outros bairros que foram construídos na mesma época. De certo modo, até, os superava. Era por demais notório o roncar e a buzina ensurdecedora do comboio. Proveniente do Bungo, o comboio tinha como paragem obrigatória a estação do Musseque (actual Tunga Ngó). A linha férrea, tal como actualmente, serpenteava por entre declives e montanhas até atingir a localidade de Ndalatando, passando pelo histórico Distrito do Dondo. Os garotos da Terra Nova, quando saíssem da escola, ficavam  a brincar ao longo das linhas férreas paralelas. Entretidos na brincadeira, os garotos só fugiam quando ouviam lá ao fundo a buzina do comboio. Era perigoso, mas os garotos da época, certamente como os de hoje, ignoravam o perigo.

Ernesto Tavira diz, com certa saudade, que "eram bons tempos” e que a alegria era contagiante nos rostos dos garotos quando ouviam o roncar dos motores a diesel do comboio-mala dos Caminhos-de-Ferro de Luanda.

Amélia Vieira Dias "Jóia”,antiga moradora,  conta sobre o que era o bairro nos anos 1970. "Tinhamos, na rua do Ribatejo, próximo da antiga sede do Clube da Terra Nova, na sua parte da frente, a paragem do autocarro número 16, de primeiro andar, que fazia o trajecto Terra Nova até a Mutamba, na baixa da cidade”.Na casa dos 70 anos, "Jóia” conta ainda que o bairro era calmo, pois havia uma unidade da Polícia Militar "que os autóctones muito temiam”.No imediato pós-Independência essas antigas infraestruturas serviram como cadeia de alta segurança da DISA. Nos dias de hoje é o Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional. Havia próximodessas instalações uma zona baldia onde eram depositadas as carcaças das viaturas inoperantes do antigo Ministério da Segurança do Estado, bem como resíduos sólidos provenientes das áreas residenciais adjacentes.

A nossa interlocutora diz que no tempo colonial o bairro já contava com alguns serviços básicos, tais como agência bancária, mercearias, farmácias, entre outros.Ao contrário de bairros como Sambizanga, Prenda, Catambor, e outros musseques, na Terra Nova não existiam as lojas de grandes comerciantes à época conhecidos como fubeiros. 

João Seca "Sisi”, antigo morador, já da fase do pós-Independência, afirma que depois dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Portugal, e com a iminência da proclamação da Independência Nacional, muitos moradores de origem portuguesa regressaram, a maioria pela Ponte Aérea, ao seu país, e as casas que acabavam de abandonar foram ocupadas por autóctones provenientes dos bairros Indígena, Sambizanga, Cazenga, Marçal, Catambor, Samba, entre outros.

Paróquia do Cristo Rei da Glória

Considerado como uma das referências arquitectónicas da Igreja Católica em Luanda, e um dos cartões de visita da circunscrição, a  Paróquia do Cristo Rei é uma das grandes relíquias que a Terra Nova viu nascer nos anos 1960.Construída próximo a uma das valas de drenagem que o bairro possuía, numa área em que o capinzal fazia morada, a Igreja tornou-se, num ápice,num dos locais mais importantes do catolicismo no bairro.

Alguns escritos da época indicam que era nessa estrutura religiosa onde os  fiéis católicos residentes no bairro, e não só, se dirigiam em massa para assistir ao culto dominical, entre outras actividades da Igreja. Dom Moisés Alves de Pinho, arcebispo de Luanda à época, procedeu à inauguração da Igreja do Cristo Rei,numa grandiosa cerimónia religiosa que aconteceu aos 5 de Janeiro de 1968.Obra desenhada por um renomado engenheiro português, a bela obra de arte que engrandece o bairro, em termos de infra-estrutura, está situada perto do campo dos Flaminguinhos e é vizinho ao "eterno” Lar da Terceira Idade do Beiral.

Uma das figuras incontornáveis da Igreja Católica destacadas na Paróquia do Cristo Rei da Glória, a irmã Cecília nasceu numa das regiões do Norte da Itália há mais de 90 anos. Muito rígida nas suas decisões e acções disciplinares, ela não aceitava irregularidades, como, por exemplo, que os meninos da catequese, e não só, trepassem nas árvores para tirarem frutas. Quem fosse apanhado levava umas palmatórias.Já reformada e à beira da sua partida para os domínios celestiais, a irmã Cecília tem, nos últimos dias, confessado aos irmãos da Igreja, em forma de recado, que assim que o derradeiro infortúnio lhe acontecer, gostaria que fosse enterrada em Angola, terra que a viu crescer e tornar-se naquilo que é hoje.

Professora Natividade
Das figuras emblemáticas do bairro Terra Nova, destaca-se a professora Maria da Natividade, da Escola Grande. Nas suas mãos passaram e formaram-se valiosos quadros que hoje "emprestam” o seu contributo em várias instituições públicas e privadas do país. Disciplinadora, cautelosa e rígida, Maria da Natividade, hoje com mais de oitenta anos de idade, foi, no tempo colonial, uma professora que primava por uma educação rigorosa. Quando houvesse uma distração ou mau comportamento por parte de um aluno, ela de imediato convocava o seu encarregado de Educação.A titulo de exemplo, e só para citar esse episódio, aquele que mais tarde viria a tornar-se na estrela de basquetebol Edmar Victoriano "Baduna” teve a sua encarregada de educação, no caso a mãe,várias vezes notificada pela professora Natividade. A encarregada de educação de Baduna desabafou um dia com a sua prima Jóia, dizendo "então com tantos alunos que a escola tem, é só o meu filho que é indisciplinado e que faz confusão?”.

Manuel Albano, jornalista desta velha casa de imprensa,que também foi aluno da professora Natividade nos anos 1970 na Escola Grande da Terra Nova, então também conhecida como Escola 229, conta que valeu a pena a rigidez e disciplina imprimida pela professora "para que hoje fóssemos o que somos hoje”.

A professora Maria da Natividade, de acordo com o jornalista, não media esforços quando o assunto estivesse ligado à pedagogia. "Ela leccionava com sabedoria e transmitia aos seus alunos, sem vaidade, os conhecimentos que carregava”.

A professora, ainda segundo Manuel Albano, era bastante paciente. Depois das aulas, organizava os alunos em grupos e os levava à Igreja do Cristo Rei onde aprendiam, na catequese, a doutrina da Igreja.Esse gesto da educadora era do agrado dos encarregados de educação, que a tinham como uma grande referência.

A Terra Nova, em termos de ensino,era bem servido. Além da Escola Grande possuía a escola do Beiral, o colégio da rua das Beiras e o lendário colégio Mini Neco. 


Figuras emblemáticas que o tempo não faz esquecer

A Terra Nova já foi considerada bairro dos cabo-verdianos. António Tavares de Pina, que aportou ao bairro nos finais dos anos 1960 proveniente da ilha de São Vicente, em Cabo Verde, diz que morou durante alguns meses perto da Igreja da Paróquia do Cristo Rei, próximo à vala de drenagem.Diz, mais adiante, que a sua permanência na Terra Nova foi efêmera porque depois optou por ir viver na comuna da Mabuia, onde havia plantações e densas terras virgens para cultivar a terra.António de Pina conta que o bairro Terra Nova, nos primórdios dos anos 1960, "tinha mais uma configuração para funcionários públicos do que vínhamos da ilha de São Vicente, em Cabo Verde, com o intuito de trabalharmos no campo. Valeu apena abraçarmos o projecto da Mabuia, porque lá saímos a ganhar”.

A Mabuia, maior povoação da comuna de Cabiri, município de Icolo e Bengo,segundo António de Pina, é uma zona propícia ao cultivo de algodão e outras culturas, daí que era mais indicada para a prática da agricultura de subsistência.

De figuras emblemáticas da Terra Nova não é tudo. Nesta circunscrição residiu, nos anos 1974/1975, Azevedo Xavier Francisco "Xavita”, o escritor Boaventura Cardoso bem como o senhor Lucas, do famoso Centro Recreativo Kandimba.

Os kotas Chico (árbitro), Gonçalves (pai do craque Manucho Gonçalves), Figueiredo (pai do, igualmente, futebolista, agora treinador, Ivo) que trabalhou nos armazéns Cardoso, Tio Fifas, que trabalhou na Sonangol, constam do leque das figuras emblemáticas que viveram na Terra Nova no pós-Independência.

Ainda neste antigo musseque de Luanda moraram os pais do antigo vice-Presidente da República Bornito de Sousa, bem como a mãe do igualmente antigo vice-Presidente da República Fernando da Piedade Dias dos Santos "Nandó”.

Domingos Paulo João, um morador antigo, diz que o bairro era calmo, moderno e tinha tudo para se viver, mesmo depois da partida dos colonos.Tio Santos, como é tratado carinhosamente pelos mais próximos, no alto dos seus mais de 70 anos de idade diz que, apesar de não haver "naquele tempo” estabelecimentos comerciais de monta, os antigos moradores frequentavam as mercearias que havia no bairro.

Antigo cobrador do famoso autocarro Colonial, de primeiro andar, com o número 16 e que fazia o trajecto Terra Nova-Mutamba, diz que o término ou local de partida do referido autocarro era defronte as instalações do Clube Desportivo da Terra Nova,

Ainda quanto a figuras emblemáticas, Tio Santos diz que morou na Terra Nova um influente cidadão português que se chamava Adriano, que tinha um restaurantemuito frequentado pelos autóctones.Tio Santos lembra-se muito bem do tempo que cumpriu o serviço militar em 1968, na antiga vila de Carmona, concretamente na região do Lukunga, e em Luanda. "Tive bons momentos. Aqui na Terra Nova, nas antigas instalações da Polícia Militar, havia uma padaria reservada aos militares e o pão confeccionado lá era tão delicioso que às vezes esquecíamos que tínhamos que ir à unidade para a formatura!”, enfatiza o kota Santos.

A Terra Nova, que hoje muitos moradores chamam Terra Velha, tem recebido nos últimos meses obras de reabilitação. Trata-se de uma intervenção pontual nas principais ruas.


O alfarrabista João de Carvalho

O bairro ganhou, ainda em tempos de outra senhora, um grande alfarrabista, quiçá o mais famoso de Angola. Trata-se de João de Carvalho, que começou o seu negócio de venda de livros usados na Terra Nova quando ainda era empregado da Empresa Nacional de Lotaria, onde fazia o trabalho de registo de matrizes de Totobola e Totoloto.O seu patrão, enfrentando sérios problemas financeiros, permitiu-lhe que vendesse os  seus próprios artigos  no interior da loja, face às dificuldades que a empresa enfrentava. Assim começou a  trajectória de alfarrabista  João de Carvalho. Com mais de três décadas de ofício, João de Carvalho teve o seu trabalho oficialmente reconhecido pelo então Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente, que na pessoa do então ministro Jomo Fortunato he outorgou um diploma de mérito.

O Jornal de Angola soube, de fonte familiar, que neste momento o alfarrabista encontra-se a atravessar um mau momento de saúde, devido a uma patologia que o apoquenta há vários anos.Às autoridades e instituições de direito ou a individualidades com poder financeiro, esse humilde repórter solicita uma ajuda pontual ao alfarrabista que um dia sonhou ser escritor e já tem, na forma de manuscrito, um livro de poemas e outro de enigmas e adivinhas. .


Bairro também era zona industrial

Reza a história que Jacinto Cruz, um industrial do ramo que fez fortuna no Brasil, investiu na criação da primeira fábrica de tabaco em Angola, importando máquinas da Inglaterra e tabaco picado de Havana e instalando a fábrica numa casa alugada perto da Igreja dos Remédios, em Luanda.Os primeiros registos de plantação de tabaco em Angola reportam-se às plantações do Golungo Alto (Cuanza-Norte) e são anteriores à criação da primeira casa de produção de cigarros em Angola. No Século XIX, informado que no Golungo Alto havia uma excelente qualidade de nicotina, oriunda de uma planta do tabaco que se dá bem em toda Angola, Jacinto Cruz resolveu fazer aí uma plantação. Ainda sobre a qualidade do tabaco do Golungo Alto, há uma antiga referência a uma "fábrica” em 1833, propriedade do soba Bango Aquitamba, anterior à chegada do industrial português.

Mas, a indústria tabaqueira em Angola arranca, de facto, em 1884, quando José Jacinto Cruz adquire um prédio virado para a Baia de Luanda, actualmente em degradação acentuada, onde instala uma fábrica digna desse nome, que emprega inicialmente trinta pessoas, que, com máquinas inovadoras de pique do tabaco, embaladoras, prensa, estufas e até uma tipografia para confecionar as suas próprias embalagens, dão inicio à nova actividade.

A FTU - Fábrica de Tabacos Ultramarinos era, em finais dos anos 1960, um dos cartões de visita do bairro Terra Nova. Essa fábrica produzia e exportava os famosos cigarros AC, Caricoco, Negrita e Hermínios.

As primeiras marcas de cigarros lançadas no mercado pela FTU foram: "Flor do Dande”, "Picado Holandez”, "Meio Forte”, "Repicado”, os charutos "Jacinto” e uns cigarros sem nome vendidos em maços de 600 gramas. Mas tarde apareceram o "Francês nº1”, o "Estrela”, o "São Rafael”, os "Hermínios”, o "Swing" e o "Caricoco”.

Uma certa narrativa indica que com a implantação da indústria tabaqueira em Luanda multiplicaram-se pelo país as plantações de tabaco. No território que hoje compreende a província da Huíla, o município de Quilengues chegou a ocupar um lugar de destaque.

Situada na estrada de Catete a Fabrica de Tabacos Ultramarino-FTU era um dos pontos de referência do bairro da Terra Nova. Este cenário hoje mudou  totalmente de figurino. 

Taisinstalações foram transformadas em local de culto pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Isso aconteceu 16 anos depois de a antiga fábrica ter recebido um investimento, na ordem dos três milhões de dólares, do grupo norte-americano "British American Tobaco”, que chegou a criar 190 postos de trabalho.

 
Montadoras de automóveis

Enquanto isso, a firma Guedal, um "monstro” da montagem e reparação de automóveis, construiu na Terra Nova a sua sede em Angola. A referida firma montava e prestava assistência técnica a veículos das marcas Mercedes Benz, Mitshubishi Fuso e Pajero. "As peças ou moldes principais das viaturas vinham embaladas em miniaturas do exterior,e, localmente, eram montadas sem problemas de maior”, pontualiza Alberto Santos, que funcionou na Guedal como ajudante de mecânico-auto.

Havia, ainda na Terra Nova, uma outra firma, denominada Garam, que tinha como propósito a montagem e reparação de viaturas das marcas Volkswagen, Fiat, Audi,  Seat, Peugeot e Citroen. Actualmente as instalações desta concessionária estão ligadas ao grupo empresarial Mbakassi& Filhos, de António Mosquito, enquanto que a antiga Guedal foi atribuída ao grupo empresarial Comauto.


Lar da Terceira idade do Beiral

A dividir a rua com a Igreja do Cristo Rei da Glória, o Centro de Acolhimento de Idosos do Beiral, também conhecido como Lar da Terceira Idade, é uma instituição de caridade construída na década de 1970.Local calmo e sereno, com algumas acácias, é uma residência que tem acomodado os mais velhos, que lá são deixados pelas respectivas famílias, e os que vão por iniciativa própria ou porque são recolhidos em estado de abandono em vários recantos da cidade.

Algumas fontes da instituição indicam que o apoio dado àquela casa de caridade é muito reduzido e não satisfaz a demanda. "Os apoios, com frequência, só surgem quandose aproxima o Dia do Idoso, que se comemora a 1 de Outubro,o que é mau”, desabafou uma fonte que preferiu manter-se no anonimato.Neste centro de acolhimento  já passaram milhares de idosos. Fruto de uma reabilitação profunda de que beneficiou nos últimos anos, o Beiral alargou a capacidade de acolhimento para 120 idosos.No entanto, a reportagem do Jornal de Angola manteve há dias dois dedos de conversa com um dos mais velhos ali albergados que disse que as condições de alimentação continuam más."Não há uma reviravolta desde que a casa mereceu algumas benfeitorias. Aguardamos sempre o dia 1 de Outubro, dedicado aos idosos, para comer melhor”, desabafou o velho, que alertou a todos a cuidarem e respeitarem os seus pais e avós. "Se uma mãe tem capacidade de cuidar dez filhos, os dez filhos têm que ter capacidade de cuidar de um pai ou uma mãe”.


Grupo Desportivo  e Recreativo da Terra Nova

No Clube Social da Terra Nova, concretamente no seu Grupo Desportivo, despontaram muitos talentos na vertente do futebol onze.Essa agremiação desportiva, que também se chamou Grupo Desportivo da Cruz Vermelha de Angola, contou com grandes futebolistas, como foram os casos de Lulu Viegas, Careca, Carlitos, Joy, Antoninho, Zé Ceará, Zé Paixão, Engenheiro Tomás, Cavunje, Nelito Suribana, Júlio de Carvalho "Luchazes”, Nelito Zimbabué, Kikinha, Kafuringa, Zé Sócrates, André, Drácula, Nelito Kuanza...Esses craques da bola eram orientados pelo treinador Luciano, um padre italiano da paróquia do Cristo Rei.

"No célebre Torneio Ano da Agricultura, em 1978, na altura já sob orientação do mister Esteves, o Grupo Desportivo da Terra Nova teve uma boa e honrosa prestação”, conta Jorge Pedro "Careca”, um dos integrantes do antigo plantel.

De acordo ainda com o nosso interlocutor, o clube nessa altura tinha craques como o grande defesa esquerdo Malé Malé, Ângelo Silva, guarda-redes que jogou depois no 1º de Agosto, Xavita, Picas, Maninho Miguel, Pírula, Eugénio Amado e Gigi.

Há registos que atestam que o célebre Osvaldo Saturnino "Jesus”, do Petro de Luanda, fez o seu jogo de estreia como jogador oficial no Grupo Desportivo da Terra Nova, ao lado de Adé, Zé Peixe, Kafuringa, Afonso "Fó”, Marito, entre outros.O plantel dos juniores,proveniente da fusão dos clubes Manuel Van-Dúnem e Kissas, no qual despontavam craques como Careca, Chiquinho, Pegado e Berita, nos anos 1975/1976 tornou-se no papão do Campeonato Provincial de Juniores de Luanda.

Reza a história que um despacho datado de 10 de Agosto de 1981, da Secretaria de Estado de Educação Física e Desporto autorizou a fusão do Grupo Desportivo e Recreativo da Terra Nova com o Grupo Desportivo da Cruz Vermelha, passando a nova colectividade desportiva a denominar-se Associação Desportiva da Cruz Vermelha de Angola, com sede na rua do Minho número 9, em Luanda.

Nos anos 1990, já com a designação de Flaminguinhos, a agremiação continuou a formar craques, como foram os casos de Manucho Gonçalves, Xará (antigo capitão do Petro de Luanda e da Selecção Nacional), André Makanga "Selau” e Picas, que teve uma passagem pelo Petro de Luanda e hoje está a evoluir no clube Casa Pia em Portugal, só para citar estes.

De resto, o mítico campo pelado da Terra Nova, que também serviu, nas décadas de 1980 e 1990 o clube Dínamos de Luanda, está hoje reduzido de forma considerável, podendo adivinhar-se a sua extinção para dar lugar a outras infra-estruturas, privando os jovens de praticar futebol ali. Um antigo sócio se apoderou das instalações do Grupo Desportivo e Recreativo da Terra Nova. Além do campo de futebol, havia a sede social do clube, que incluía um restaurante e uma quadra desportiva.Nos dias de hoje, no lado que dá acesso ao portão principal da Igreja do Cristo Rei, estão instalados bares, e uma estação de serviço, restando um acesso minúsculo para o campo.No outro lado oposto, que dá acesso às ruas das Beiras e da Estremadura, foi construída uma igreja e um armazém de consumíveis diversos, inviabilizando assim, por aí, o antigo acesso ao recinto desportivo.

Hóquei em patins e basquetebol
Dos craques do hóquei em patins forjados no bairro Terra Nova, nas décadas de 1970 e 1980, destacam-se os jogadores Coyo, Betinho, Quim Jorge e Santo António.Essas e outras figuras deram grandes alegrias aos adeptos ferrenhos da circunscrição. Em relação ao basquetebol, o bairro viu a emergir na modalidade Ângelo Victoriano, que foi, no ano passado, homenageado pela FIBA Mundo pelos feitos alcançados com a Selecção Nacional em competições internacionais de alto nível. Ângelo Victoriano, a par de Jean-Jacques da Conceição em 2013, são os únicos angolanos que integram a galeria da fama da FIBA Mundo.Outras figuras do bairro que sobressaíram no basquetebol são os não menos conhecidos Aníbal Moreira, Baduna e Benjamin Romano. Por outro lado, consta que Amaral Aleixo e Ralph jogaram andebol, nos finais dos anos 1970, pela agremiação do Grupo Desportivo da Terra Nova.

Largo do Motorista  referência obrigatória

O Largo do Motorista, construído nos finais da década de 1960 em memória aos falecidos no exercício desta importante actividade, era na época colonial um local especial para passeios.Situado na antiga estrada de Catete entre os bairros Terra Nova e Cemitério Velho (Bairro Popular), foi durante muito tempo considerado um "pombal do amor” onde os jovens namorados iam trocar presentes, abraços e carícias.Há quem diga que desses abraços e namoros nasceram muitos e perfeitos casamentos, que até hoje perduram. O local já foi, também, ponto de referência das famílias provenientes do interior com o propósito de visitar os seus parentes pela primeira vez. Apesar de ter sofrido uma profunda reestruturação, a Estátua do Largo do Motorista já não tem o brilho de outrora.

Quem te viu e quem te vê. Terra Nova, um bairro que hoje é habitado por uma população multifacética, oriunda do mosaico etno-linguístico que compõe o país.  Os habitantes actuais dedicam-se, essencialmente, ao comércio informal, uma actividade que é também exercida por cidadãos oeste-africanos (vulgo mamadus). A antiga rua Henrique Gago da Graça hoje é apelidada rua das Pedrinhas. Os quintais das majestosas vivendas foram transformados em autênticos armazéns de venda a grosso e a retalho.  Alguns moradores insatisfeitos com a situação actual da sua rua fizeram diligências junto de "Quem de Direito” para que o comércio de rua fosse banido daí,mas o certo é que tudo continua na mesma. Alguns moradores dizem-se "invadidos” e com a sua privacidade "roubada”, pois nem sequer conseguem desfrutar da sua própria rua. De resto, já lá se vão os tempos em que a circunscrição tinha um grande brilho, chegando a ser a "coqueluche” do Distrito do Rangel e mesmo de Luanda.

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