Sociedade

Dú Gonçalves: Ela assumiu a missão de preservar a estética africana

Celeste de Melo

Jornalista

Numa sociedade onde o conceito de beleza está cada vez mais padronizado, destaca-se uma jovem empreendedora que desafia a estética ocidentalizada enaltecendo a beleza e a importância de preservar a cultura africana. Cabeleireira de penteados afros há mais de 10 anos, ela é conhecida pelo sorriso contagiante e pela sua africanidade. A sua jornada de superação e de conquistas é um exemplo inspirador de como a determinação e a paixão pelo que se faz podem transformar sonhos em realidade, moldar mentes, elevar a auto- estima e valorizar aquilo que se tem

31/03/2024  Última atualização 08H41
© Fotografia por: DR

Com missangas coloridas a volta do pescoço, trajes africanos, brincos em formato de mapa de África, entre outros símbolos, é a forma como a empreendedora, de 39 anos,sem vergonha de exibir as suas raízes, se apresenta para demonstrar a beleza da estética negra e promover a cultura africana. Du Gonçalves é natural da província do Cuanza-Sul, município do Porto Amboim.

Aos 15 anos de idade teve de deixar a sua terra natal e mudar-se para Luanda com o objectivo de dar continuidade aos estudos.

"Na altura, não havia institutos médios na minha terra. Então, a única forma de continuar a formação era deslocar -me para Luanda, Benguela, Bengo ou ao Huambo. Por gostar de locais agitados, decidi sair um bocadinho da calmaria da minha terra e desafiar-me na metrópole, onde tive a oportunidade de ganhar uma bolsa de estudos da Igreja Católica”, disse.

Ao chegar a Luanda, narrou, viveu num lar da CEAST [Conferência Episcopal de Angola e São Tomé] enquanto estudava no Instituto de Ciências Religiosas de Angola (ICRA), onde concluiu o ensino médio. Acrescentou que a estadia não foi fácil, pois cedo teve de começar a trabalhar para  custear parte da formação.

"A bolsa não cobria tudo e os meus pais não tinham condições para cobrir a outra parte. Então tive de trabalhar como babá. Não foi fácil, pois era inexperiente. Mas, graças a Deus, fui uma excelente funcionária, tanto é assim que hoje o menino que eu cuidava já tem 17 anos e apesar de não trabalhar mais para a família dele há vários anos, mantemos contacto”, frisou.

A experiência, lembrou, foi interessante, pois pôde apreender conhecimentos e ganhar motivação para aprender inglês. "Tive uma super patroa. Recordo que gostava de assistir ao programa da apresentadora americana Oprah Winfrey e incentivava-me também a ver, mesmo sabendo que eu não entendia coisa alguma do que se dizia”.

Além de cabeleireira de cabelos afros, Du Gonçalves é também educadora social, funcionária pública e pan-africanista. Ela decidiu dedicar-se a cuidar de cabelos crespos, e, sobretudo, trazer de volta para o mercado angolano a importância de preservar a cultura africana. 

 
Miss Cuanza-Sul

Após terminar o ensino médio, Dú teve de se deslocar para a província do Huambo, com o propósito de realizar o estágio de fim do curso durante seis meses. Após a conclusão desse processo, regressou à capital e começou a trabalhar no Centro Cultural Mosaico.

Em 2008, por influência das primas mas sem muitas expectativas, aceitou concorrer ao concurso Miss Cuanza-Sul.

"As minhas primas diziam que sou bonita, inteligente e que me expresso bem. Por estas razões achavam que havia muitas probabilidades de vencer. Alegaram também que a vencedora ganhava uma bolsa de estudos e carro. Achei interessante, porque aos 19 anos o lar onde vivia fechou, então tive de  arrendar um quarto. Com o emprego no Centro cultural Mosaico conseguia pagar as contas, porém, não era suficiente para custear uma Faculdade, e era o que eu mais desejava”.

Apesar de não acreditar, decidiu concorrer. Conquistou o primeiro lugar, arrebatando a coroa de Miss Cuanza-Sul.Mas, infelizmente,não lhe foram entregues os tão ansiados prémios propalados pelas primas. 

"A coroa como tal não me deu muitos ganhos materiais, pois havia muita corrupção, e para receber os tais prémios teria de me submeter a coisas que não vão de acordo com o meu carácter. Então, decidi abandonar o mandato e voltei para a capital. Sem carro e bolsa de estudos. Ficou o aprendizado. Aprendi a cuidar mais de mim, a me posicionar, falar melhor, graças às aulas de etiqueta e moda que tive durante o concurso”. 


O desabrochar da paixão pelos cabelos

A paixão pelos cabelos, explicou, surgiu-lhe após ter viajado para  África do Sul com o objectivo de se aprimorar na língua inglesa. "Quando lá cheguei vi a necessidade de fazer um outro curso, de maneiras a intensificar o meu aprendizado. Inscrevi-me no curso de Makupand Afro-Hair, onde não ensinavam apenas a maquilhar mas também a tratar de cabelos crespos, bem como a importância de se fazer a manutenção da estética africana e como conservar e preservar a nossa identidade cultural”.

Ver como o povo sul-africano é comprometido com a sua identidade cultural, despertou em Dú o gosto por roupas e penteados africanos.  Quando regressou a Angola, a profissão de cabeleireira ficou adormecida em si por cerca de cinco anos. A empreendedora lembra que, na época, quem usava roupas e penteados africanos era considerado antiquado e fora de moda. Ainda assim, acrescentou, decidiu mudar o seu estilo com o objectivo de incentivar as pessoas a valorizarem o cabelo afro.

"Descobri que o uso de cabelos crespos vai muito além da nossa estética e preservação da identidade cultural, mas também traz muitos benefícios à nossa saúde capilar. Então, decidi ser a primeira a marcar a diferença”, realçou.

Soltando risadas, recordou-se de um episódio engraçado que aconteceu após a sua transformação. "O meu director olhou para mim e perguntou, Doutora Domingas o que se passa? Não tens dinheiro para desfrisar o cabelo ou tudo acabou nas fraldas e no leite? Esse cabelo parece de uma maluca”.

Eu respondi: "não parece, o que acontece é que o director olha para o meu cabelo de uma forma pejorativa porque foi o que incutiram nas nossas cabeças, que o cabelo crespo não é bonito. De agora em diante é assim que o chefe me vai ver”.

Na altura, recordou, vivia no Zango, por esta razão deslocava-se até à cidade de comboio. Durante a trajectória recebia elogios de outras mulheres e de homens pela forma como se penteava e se adornava com missangas. Foi assim que lhe surgiu a ideia de investir no mundo dos cabelos naturais.

"Recebia elogios e muitas mulheres mostravam-se interessadas em fazer também. Vi aí uma oportunidade de ganhar uns kwanzas. Foi assim que comecei a apostar na área, de segunda a sexta-feira trabalhava no Ministério, e nos finais de semana, das 10 às 15  dedicava-me a cuidar dos cabelos. Assim fui andando e nunca mais parei”, salientou.

Dú Gonçalves, com brilho nos olhos, falava com muito entusiasmo do novo ofício, frisando que o começo não foi fácil pois na altura era recém-casada e tinha um bebé recém-nascido para cuidar. "Gerir a casa, o trabalho no MASFAMU e os clientes deixava-me exausta. Mas poder devolver a auto-estima, através dos meus penteados, isso me deixava completamente fascinada e com vontade de continuar”.

Houve um período, descreveu, em que chegou a ter problemas com o esposo, devido a falta de privacidade. "Cuidava das clientes em casa mesmo, ocupava a sala toda e a varanda, e outras clientes ficavam na escada do apartamento à espera de serem atendidas, inclusive os vizinhos questionavam sempre se havia problemas em casa”, disse.

Após abrir a página no Facebook, a sua clientela foi aumentando cada vez mais. Apesar de ter sido subestimada inicialmente por muitos, o que mais a motivou era o facto das clientes não se importarem em deslocar-se das suas localidades até ao Zango. "As minhas colegas riam-se de mim e questionavam ‘tu que és doutora no Ministério, vais ficar a lavar caspas?’ O que elas não sabiam é que eu tinha uma paixão enorme pelo trabalho que fazia”.

 
Investimentos

A cabeleireira explicou que começou a tratar dos cabelos das clientes com produtos pessoais. "O primeiro gel que eu usei era o meu, pessoal. Quando a clientela foi crescendo peguei em 50 mil kwanzas do meu orçamento do Ministério e comprei cremes, óleo, entre outros produtos que precisava, pois na ocasião as coisas não eram tão caras como hoje. E assim continuei. Cobrava mil kwanzas por pessoa, e no final do dia tinha 3000 mil, o que era quase nada, mas eu gostava daquele entra e sai de pessoas”.

Os anos passaram e a casa começou a ficar pequena para acomodar as clientes que procuravam os seus serviços, vendo-se na obrigação de arrendar um espaço maior e a recrutar mais pessoas para auxiliá-la no trabalho.

O negócio crescia cada vez mais, passando a angariar 20 mil kwanzas nos dias em que o salão estivesse preenchido. "Fora a alegria do rendimento era também a satisfação de conhecer outras pessoas e poder moldar mentes a valorizarem o que é nosso. Chegou uma altura em que até noivas ligavam para fazer penteados. Já pintei, no total, cerca de 90 noivas”, disse, orgulhosa.

Hoje, Dú Gonçalves é dona de um centro denominado "Ondjango da Dú”, que existe há dez anos. O espaço além de cuidar de cabelos afro, também visa empoderar outras mulheres através de formações de capacitação, no sentido de muni-las de autoconfiança e conhecimentos acerca da importância de preservar a estética e a identidade cultural.

Dú Gonçalves é uma jovem mulher, mãe, esposa e empreendedora de mãos cheias que inspira outras mulheres a não desistirem dos seus sonhos. "Acreditem no vosso potencial. O cabelo levou-me ao Brasil, e me deu a possibilidade de fazer uma formação na melhor Universidade de África, portanto, por mais simples que pareça o propósito, lembrem-se que pequenos começos geram grandes oportunidades”, aconselhou.

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