Cultura

“Escolhi o nome devido ao contexto turbulento que na altura o reino vivia”

Teresa Cabari

Jornalista

Neto de Augusto Katchiopololo Ekuikui IV, antigo Rei do Bailundo, Isaac Francisco Lucas Somaquesenje, ou simplesmente “Tchongolola Tchongonga”, foi entronizado em 2021 como líder do povo Ovimbundu, ocupando o cargo de Rei da Ombala do Bailundo, aos 37 anos de idade.

02/05/2024  Última atualização 11H40
Rei da Ombala do Bailundo Ekuikui VI disse que substituir o tio na liderança do terceiro maior grupo étnico do país não foi uma tarefa fácil © Fotografia por: DR

Tchongolola Tchongonga  Ekuikui VI foi eleito pela corte da Ombala (Palácio Real), com 153 votos, de um total de 206 eleitores, entre membros da corte, reis e sobas das 80 Ombala do município do Bailundo, província do Huambo, em substituição do tio, Armindo Francisco Kalupeteca (Ekuikui V), destituído do cargo em Março de 2020.

Apesar da idade, considerada, por muitos, "ínfima” para a liderança de um povo, Tchongolola Tchongoga trabalha na Ombala desde 2006, na era do avô, tendo ocupado os cargos de motorista do Rei Ekuikui IV, secretário e assessor.

Após a morte do avô, em 2012, o actual líder do Bailundo trabalhou como vice-rei durante o reinado do tio, Kalupeteca Ekuikui V, e, em 2021, a corte decidiu entronizá-lo, tendo em conta a linhagem do "sangue azul” (símbolo da lealdade).

Em entrevista ao Jornal de Angola, Tchongolola Tchongonga explicou que substituir o tio na liderança do terceiro maior grupo étnico do país não foi uma tarefa fácil. Diferente do que muitos pensam, quando apontam o factor idade como determinante para governar um povo, o soberano do Bailundo conta com uma vasta experiência em assuntos ligados ao reino, pois, desde cedo, acompanha de perto as questões ligadas à justiça e à governação tradicional.

Formado em Direito Costumeiro e em Línguas, na República da Namíbia, Tchongolola Tchongonga é o primeiro neto legítimo matrilinear do Rei Ekuikui IV a ocupar o trono e o 37.º soberano do reino do Bailundo.

Factor idade

Passados três anos de governação, Tchongolola Tchongonga sente que ainda não tem a valorização e o respeito que devia ter e que o factor idade tem condicionado a crença das pessoas nas suas capacidades e habilidades de liderança de um dos maiores grupos étnicos e culturais de Angola, considerando que deveria ser dos mais velhos. Porém, refugiou-se no facto de ser da linhagem real, que pesou mais no processo de eleição, apesar de todas as outras qualidades dos concorrentes.

"Com 37 anos que entrei no reinado, não foi fácil, porque foi um reinado de concorrência. Fomos à eleição, eu era o mais novo. O mais velho dos três tinha 65 e o segundo, 53. Os outros que faziam campanha diziam que quem pode ser Rei do Bailundo tinha de ter no mínimo 50 anos. Então, com a minha idade não tinha possibilidade, nem como chegar lá, mas a fé era de que sou da linhagem e se os mais velhos achassem que também devia estar na lista dos três, então, não haveria nenhum problema”.

Para o líder tradicional, o mundo precisa de abrir portas para as mudanças e respeitar os mais novos que ocupam cargos que anteriormente eram ocupados por mais velhos.

"Ainda existe a ideia de que quanto mais velha a pessoa é, mais respeito se deve ter e, quanto mais jovem, o respeito é pouco. Mas isso também vai depender de mim, porque se eu começar continuamente a respeitar as pessoas, em nenhum momento vou encontrar alguém que me falte ao respeito”, sublinhou.

Segundo Tchongolola Tchongonga, "a figura de um Rei é como se fosse a figura de um padre. Antes, os padres eram quase todos mais velhos e os reis também, mas hoje as coisas mudaram, a juventude também está a ser inserida em cargos que anteriormente não era possível”.

Processo de entronização

O processo de entronização, que dura entre seis meses e dois anos, dependendo das condições financeiras do candidato ao trono, foi feito após um pedido de permissão da corte aos pais de Tchongolola Tchongonga para o candidatar a sucessor do líder destituído, obedecendo a todos os rituais, até à celebração oficial.

Tchongolola conta que o processo obedeceu aos rituais normais da cultura dos Ovimbundu, no que diz respeito à "Ombala do Mbalundo”, começando pelo "bate porta” dos pais, chamado "apresentação”.

"A corte foi à casa dos meus pais pedir para eu exercer o cargo de rei da Ombala”, explicou.

Como nas culturas africanas a espiritualidade é a base da governação da monarquia, onde o líder tradicional é considerando alguém que conhece todos os segredos da ciência espiritual e oculta, isso preocupou os progenitores, que questionaram o que poderia advir dessa eleição e se o filho poderia "receber feitiço”.

"Eles disseram: estão a pedir o nosso filho para ir à Ombala, vão lhe dar o quê? Será que vão lhe dar feitiço, aumentar o número de mulheres? Vão lhe dar bebidas?”, porque essas coisas não fazem parte do costume da minha família biológica”, acrescentou.

Outro ritual observado, segundo o soberano Ovimbundu, foi o "pedido ou alembamento”. Segundo a cultura local, o candidato ao trono é como se fosse uma noiva, que deve ser pedida com a oferta de alguns produtos à família biológica.

Depois dessas etapas, a corte invoca, através de um instrumento, os nomes dos antepassados, simbolizando a aceitação dos antepassados para o sucesso, e orienta "a noiva” a preparar as condições para a entronização que simboliza o casamento.

"Depois disso, tem que preparar, em primeira instância, o boi que vai servir de sacrifício para a entronização, e outro para alimentar os participantes da cerimónia”, contou.

Após o sacrifício do boi, o líder pisa no sangue do animal, para que, diante de todos, saiba o seu novo nome como Rei.

Com a ajuda dos membros da corte e de familiares, o novo soberano recebeu o nome de Tchongolola Tchongonga (Águia Congregadora, em português), uma escolha feita devido ao contexto turbulento que o reino vivia.

Ekuikui VI disse ser natural que todo e qualquer Rei que chegue ao trono escolha o nome de um animal que represente o seu reinado.

"Eu trouxe um nome que era necessário para a época que o reino estava a viver. Já não tinha aquela hegemonia do passado, então era necessário congregar”, sublinhou.

Para finalizar o processo e oficializar a liderança, o rei recebe o chifre, que simboliza o troféu, e dá início à governação e aos trabalhos do reino, seguido da bengala, símbolo de divisão do poder diante do julgamento e, por último, a coroa, que significa a entrega do povo para o qual deve trabalhar, orientar e cuidar.

A Ombala do  Mbalundo prevê, para este ano, realizar o primeiro festival ovimbundu, denominado "Ovimbundu Festival”. O festival tem quatro eixos, nomeadamente, o resgate, a preservação, a valorização e a divulgação da cultura ovimbundu.

Composição da Corte da Ombala

Actualmente, a Ombala do Mbalundu é composta por 37 ministros da corte, todos sobas com diferentes funções. Hierarquicamente, em primeiro lugar vem o Soma Inene (Rei), seguido do Soba Ngabole, que é o presidente do Tribunal do Reino. Depois, seguem-se o procurador-geral, o cientista espiritual, que é o protector do Rei contra os espíritos ocultos, além do ministro que cuida das relações exteriores e outro responsável pelos serviços de inteligência.

"Estamos numa outra era. No passado era o Rei e o seu povo e ponto final. O Rei era o monarca, controlava tudo. Hoje, muita coisa mudou. Em termos de estrutura, o Reino do Bailundo está bem servido e tem sido modelo para os demais reinos”, sublinhou.

Diferente dos reinados anteriores da família, Tchongolola Tchongoga ainda não tem um vice-rei, porque a corte ainda não escolheu o candidato.

Na Ombala do Mbalundu, todos os ministros vivem com as esposas e filhos e as casas estão distribuídas de acordo com a suas hierarquias e funções, de modo a acudir, de forma rápida, qualquer necessidade que surgir.

O Tribunal da Ombala tem capacidade de acolher mais de 50 pessoas. Existe igualmente um jango reservado para a corte e o Rei.

Apesar de ter um Governo bem estruturado, o Soma Inene sublinha a necessidade de um líder tradicional ter uma visão geral sobre quase tudo, quer seja a nível social, espiritual, económico e político, para poder lidar da melhor forma possível com eventuais situações que possam surgir no seio da Ombala.

 

Viagem ao Brasil

Inicialmente programado para ser uma simples visita de cortesia, o Rei Ekuikui IV esteve pela primeira vez no Brasil como soberano do povo Ovimbundu, onde se envolveu numa jornada de trabalho com o Governo local, que incidiu sobre o combate ao racismo, bastante acentuado naquele país.

"O propósito inicial era diminuir as saudades do povo angolano levado durante o comércio transatlântico e o intercâmbio cultural. Eles tinham que saber que não são um povo miscigenado, conforme os outros. Encontrei o meu povo lá no Brasil e disse-lhes que têm raízes, vieram de África e ninguém pode dizer que não têm raízes”.

Durante o encontro com a comunidade negra no Brasil, foi-lhe solicitado que interviesse na luta contra o racismo, que afecta os afro-brasileiros, em todos os aspectos.

Segundo o Rei, de todos os angolanos sequestrados no comércio transatlântico, apenas 20 por cento sobreviveram e, destes, os membros da terceira ou quarta geração sofrem diariamente racismo, o que tem dificultado o desenvolvimento do povo negro no Brasil, por falta de oportunidades no sistema de ensino e emprego.

"Quando sentaram comigo, disseram que o Rei não pode sair daqui sem tocar nessa vertente. ‘Aqui não temos oportunidades nem de estudar, nem de emprego por causa da cor da pele. Somos chamados de negro em qualquer canto’. Tive que refazer o programa inicial de 25 dias para ter encontros com governos de vários Estados do Brasil, a fim de debater o assunto e tivemos algumas audiências”, contou.

Discurso no Parlamento brasileiro

Tchongolola Tchongonga foi recebido no Parlamento brasileiro, onde proferiu um discurso. O líder tradicional apelou à criação de leis para proteger o povo negro e lhe conceder maior dignidade e igualdade.

"Tive que dizer aos deputados da Assembleia que este povo, que no passado foi retirado forçosamente das suas terras, veio ao Brasil quando ainda era uma mata. Este povo ajudou a reconstruir o Brasil, mas hoje eles não têm nada, não têm dignidade, inclusive, incutiram na mente deles que são escravos. Não existe nenhum escravo, mas sim filhos de pessoas escravizadas.”

Ao povo negro, que muito tem lutado pelos seus direitos, o soberano aconselhou a usar a sabedoria, porque, sublinhou, "a maior luta num tempo como hoje é o uso da sabedoria”. Aconselhou-os ainda a reverem os seus mecanismos de luta, que muitas vezes são baseados na violência e agressão física, que tem ceifado vidas.

Quanto ao intercâmbio, Tchongolola Tchongonga destacou a parceria com um grupo de empresários que pretendem criar uma ONG para ajudar as crianças desfavorecidas no país.

 

Publicação de um livro

Ainda no Brasil, Ekuikui VI aproveitou a oportunidade para a edição e lançamento da sua primeira obra intitulada "A Hegemonia dos Ovimbundu no reino do Mbalundu”, com retratos históricos de Angola, a divisão dos reinos e o surgimento e evolução dos Ovimbundu.

"O livro foi  publicado de forma espontânea. Eu queria fazer um livro maior, ainda tenho muita matéria. Estava a preparar duas obras, uma que fala sobre o poder Bantu "O Feitiço” e este que já saiu”.

Em Angola, o livro foi vendido no final do ano passado sem uma cerimónia oficial de lançamento, porém, há a pretensão de se reeditar e fazer uma digressão em várias partes do país para a venda e sessão de autógrafos.

  Autoridades tradicionais em Angola

Angola conta com um total de 58.000 autoridades tradicionais, 4.613 em toda a província do Huambo e 640 só no município do Bailundo.

Para uma melhor organização, intercâmbio e parceria, os líderes tradicionais criaram uma união de todos os Reis de Angola, totalizando 35, que se reúnem mensalmente numa das províncias para preparar propostas de melhoria das condições de vida das autoridades tradicionais.

Uma das maiores preocupações do grupo tem a ver com a questão dos subsídios que o Estado concede às autoridades tradicionais, abaixo de 30 mil kwanzas, que consideram insuficiente, face ao contexto sócio-económico do país.

Outra preocupação, se-gundo Ekuikui VI, é a divisão de assuntos ligados à justiça tradicional e estadual.

 "Até hoje, não está bem espelhada a divisão da justiça. Há sobas que julgam tudo, porque é seu dever. Na aldeia onde se encontra, não existe nenhum comando da Policia, SIC, Procuradoria ou Provedoria de Justiça, então, lá o soba é tudo”, disse.

"Mas já na cidade, o cenário é outro, porque há polícia e SIC. Quando surge uma situação, a população recorre a eles, até mesmo em casos de roubo de galinha ou cabrito, infidelidade conjugal e outros. Aqui isso é da responsabilidade da autoridade tradicional, que deve ter condições para resolver isso. Os sobas lamentam pela falta de condições para o efeito”.

E, como solução de muitos outros assuntos que têm sido motivo de preocupação, as autoridades tradicionais criaram um Estatuto, que deve ser revisto pelo Conselho de Ministros e, depois, remetido à Assembleia Nacional para aprovação, de modo a terem maior segurança enquanto soberanos.

Ekuikui IV explicou, igualmente, que, ainda na era do reinado do tio, foi criado um projecto de requalificação dos reinos, com casas sociais e serviços hospitalares para a comunidade.

"A ideia era começar pelos reinos do Kongo, Ndongo, Matamba, Bailundo e no Cunene, que fazem as cinco esculturas do país e depois levar para os sub-reinos, mas até agora apenas a Ombala do Mbalundo foi requalificada”, lamentou.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Cultura