Sociedade

“Felícia começou a emagrecer de repente e chorava sem parar”

Alexa Sonhi

Jornalista

Madalena Feleciano teve uma gravidez saudável, o parto também correu muito bem e, até aos seis anos de vida da filha, que foi baptizada com o nome de Felícia Correia, tudo parecia normal.

10/05/2024  Última atualização 12H35
O lúpus tem como sintomas a fadiga, febre, dor nas articulações, rigidez muscular, inchaço cutâneo, vermelhidão na face em forma de "borboleta” sobre as bochechas e a ponta do nariz © Fotografia por: DR

Como uma bebé normal, a pequena Feli, como é carinhosamente tratada em casa, foi à creche, entrou na escola e como uma criança saudável gostava muito de brincar com as amigas no bairro da Ilha de Luanda, onde vive com os pais.

Mas no mês de Janeiro de 2021, com sete anos, as coisas começaram a mudar, sem motivo aparente, Felícia Correia começou a emagrecer de repente, cansava-se com facilidade, sentia muitas dores musculares, chorava sem parar e fazia febres altas.

O pai, André Correia, contou que, de tantas dores que a filha sentia, ele e esposa também choravam com a menina, porque não percebiam o que lhe causava tanto sofrimento.  "Ninguém conseguia tocar na Feli, porque não tinha posição que lhe transmitisse conforto. E isso causava muita tristeza para todos de casa”, contou o pai.

 Preocupados com o estado da Feli, os pais levaram-na a várias unidades hospitalares, quer privadas como públicas, mas sem sucesso. Diziam apenas que a menina tinha anemia severa, fazia medicação e nada de melhorias.

Noutros hospitais, afirmavam que Felícia tinha malária grave, mas, depois de cumprir com a dose dos anti-palúdicos, os sintomas continuavam e, por vezes, até pioravam, obrigando os pais a levarem-na de volta à unidade hospitalar onde fora medicada.

Recurso a uma quimbandeira

De tanto ver a filha a definhar sem ter um diagnóstico preciso, a mãe de Felícia, Madalena Feleciano, levou-a a uma quimbandeira já de idade, residente no bairro do Golf II, para tratar a menina e descobrir quem estava a enfeitiçar a filha.

Apesar das várias sessões com medicamentos tradicionais, o estado de Felícia só piorava, a ponto de ficar quase esquelética e nem se descobriu quem lhe estava a fazer mal.

Com medo de perder a filha, o pai foi tirá-la da casa da quimbandeira e internou-a na clínica Horton Pediatria, onde já tinha estado meses antes.  

Mas, como a esperança é a ultima que morre, os pais imploraram aos médicos que a menina só saísse de lá depois do diagnóstico certo. Em Setembro de 2021, uma médica nova, da mesma clínica, abraçou a causa. Depois de consultar outros especialistas, avisou aos pais que provavelmente a paciente teria lúpus erimatoso sistémico.

"Eu não entendi nada na altura, porque nunca tinha ouvido falar sobre a doença. Então, a pediatra indicou-nos uma médica reumatologista da clínica Girassol e fomos lá ter. Depois de vários exames, esperámos dois meses para receber o diagnóstico”, disse o pai.

O tempo de espera resultou do facto de alguns exames terem sido enviados para o exterior do país, porque em Angola ainda não há laboratório de alta complexidade para se fechar o diagnóstico de lúpus erimatoso sistémico.

A confirmação do diagnóstico

Em Dezembro de 2021, os pais de Feli receberam o resultado dos exames. A desconfiança da médica pediatra tinha se confirmado. A menina tinha lúpus, já em fase aguda, daí o emagrecimento, dores musculares e manchas na pele como borboleta.

"Apesar da tristeza em saber que a nossa filha tem uma doença tão estranha, nos sentimos aliviados porque daquele dia em diante já sabíamos como proceder para ela recuperar, apesar de ter que fazer a medicação por toda vida, evitando as crises que podem causar a morte”, contou o pai.

Embora Feli tivesse que ser internada várias vezes, antes de ter recebido o diagnóstico definitivo de lúpus, a pequena nunca reprovou de classe e, várias vezes, mesmo fragilizada, pedia à mãe que a levasse à escola para, pelo menos, fazer as provas. E foi assim durante todo o ano de 2021.

Sonho de engenheira de Petróleos

Hoje já bem recuperada, Felícia está a frequentar a 4ª classe e sonha ser uma engenheira de petróleos. Na escola comparticipada, onde estuda, é uma das melhores alunas.

 Mas, para se manter bem, todos os dias tem de tomar hidróxido de cloroquina e outros medicamentos para inibir a evolução do lúpus. Ela já recuperou o peso e o seu aspecto está bem melhor.

À semelhança de FelíciaCorreia, existem muitas outras pessoas no país com o diagnóstico fechado de lúpus ou apenas com sinais da doença, impondo-lhes muitas limitações ao longo da vida.

Em Angola, apesar de não existirem ainda estatísticas exactas sobre o número de casos de lúpus, devido à exiguidade de reumatologistas que são apenas oito, ainda assim, a realidade da doença não é das melhores, já que têm aparecido muitos casos da enfermidade, que afecta gravemente o sistema imunológico do indivíduo.

Devido aos poucos especialistas existentes, muitos doentes descobrem o lúpus tardiamente, depois de terem passado por vários hospitais, por causa das inúmeras crises que vão tendo, levando em conta a falta de controlo da própria patologia.

Número de casos

Apesar de ser uma unidade de saúde privada, a clínica Girassol é a unidade que mais casos de lúpus diagnostica no país. A título de exemplo, de 2018 até ao momento, foram diagnosticados, com precisão, 1.153 casos.

Esperança Nicolau, médica reumatologista ao serviço da referida unidade sanitária, disse que este número é apenas a ponta do iceberg, porque existem vários pacientes com sinais claros da doença, mas a falta de dinheiro impede-os de realizar os exames solicitados.

Segundo a especialista em reumatologia, muitos destes exames são feitos em laboratórios privados onde os preços são altos. "Um cidadão que ganha por exemplo 100 mil kwanzas tem muitas dificuldades para realizá-los, sob pena de a família passar fome”, disse.

Questionada sobre como os médicos procedem nestes casos, Esperança Nicolau disse que trabalham apenas com a clínica do paciente e vão administrando medicação para o estabilizar até se concluir os exames e fechar o diagnóstico, caso seja, de facto, lúpus.

"Devemos ter muito cuidado ao passar a medicação, por se tratar de fármacos muito fortes e, por vezes, biológicos. Logo, não devem ser utilizados de qualquer forma, porque podem ter efeitos colaterais nefastos”, alertou a médica.

Esperança Nicolau, que também é a presidente do Colégio Angolano de Reumatologia da Ordem dos Médicos de Angola, disse que, dos vários pacientes que atende com queixas diversas, por semana, pelo menos dois ou três apresentam sintomas de lúpus que já carregam há anos.

A médica sublinhou que, pelas conversas mantidas com outros reumatologistas, sabe que o número de doentes lúpicos tende a aumentar no país. "Infelizmente, muitos desses casos não são seguidos nem medicados, por falta de reumatologistas nos hospitais, com particular realce nas unidades públicas”, lamentou. 

A título de exemplo, revelou que a única unidade de saúde pública com especialidade de reumatologia é o Hospital Josina Machel, onde a procura é grande. Essa situação, disse, obriga a que os pacientes emigrem para clínicas privadas, onde têm de ficar numa lista de espera, que não leva menos de dois meses.

Esperança Nicolau frisou que, no país, há falta de quase tudo, desde especialistas em reumatologia, exames de diagnóstico (analíticos e de imagem), medicamentos moderadores da doença e, principalmente, os fármacos biológicos que também são difíceis de adquirir até no exterior do país.

 País só faz recolha de amostras

A reumatologista avançou que não existe um único exame em concreto para o diagnóstico do lúpus eritematoso sistémico. Porém, acrescentou, é necessário um conjunto de exames específicos, como o anti-SM (SMIT), anti-DNA, anti-nuclear e outras análises adicionais, acompanhados dos sintomas que o paciente indicar, determinando se é ou não lúpus, que não são realizados no país por falta de laboratórios especializados.  "No país, fazemos a colheita e enviamos para o exterior, de onde esperamos pelos resultados num intervalo de 25 a 30 dias”. 

A médica salientou que, em países com esses laboratórios, os resultados demoram, em média, sete dias. "Aqui, como às vezes o paciente já está muito debilitado e não pode esperar mais, temos de actuar de forma rápida, para evitar a sua morte”.  

Subvenção do tratamento

Esperança Nicolau explicou que tanto os exames, para se diagnosticar a doença, como a medicação são muito caros e de difícil alcance dos pacientes, por isso defende a subvenção por parte do Estado. 

Por exemplo, para se fazer os exames de anti-SM (SMIT), anti-DNA e anti-nuclear, nos laboratórios nacionais, o paciente chega a gastar, em média, mais de 250 mil kwanzas, enquanto uma caixa de dez comprimidos de Hidróxido de Cloroquina não fica a menos de cinco mil kwanzas. 

"Este medicamento tem de ser tomado todos os dias”, disse a médica, acrescentando que outra medicação importantíssima, que não pode faltar no quotidiano do paciente, é o Metotrexato, muito raro no país. 

Para se ter uma ideia, Esperança Nicolau avançou que a caixa com 100 comprimidos pode custar entre 15 a 20 mil kwanzas. E o paciente deve tomar de oito a dez comprimidos por semana.

"Ou seja, para se ter todos os comprimidos obrigatórios para o controlo do lúpus, o paciente chega a gastar no mínimo 90 mil kwanzas por mês e, muitos, por não terem possibilidade, não tomam a medicação regularmente”, lamentou a médica.

Por esta razão, disse, tal como as demais doenças que o Estado subvenciona, o lúpus também deve estar enquadrado neste pacote, por ser uma doença crónica não transmissível, cujo tratamento deve ser para a vida toda.

Esperança de vida

 Esperança Nicolau explicou que a esperança de vida de um paciente com lúpus depende muito do próprio. "Ele tem de aceitar a doença e estar comprometido com a mesma, respeitando a medicação e as exigências impostas pela doença, porque, de contrário, terá muitas complicações e pode morrer”. 

 A reumatologista salientou que, apesar de a patologia ser crónica, se for diagnosticada em fase inicial e devidamente controlada, o paciente pode levar uma vida normal.

Os doentes, sublinhou, precisam de cumprir algumas restrições, como evitar a exposição ao sol (usar o protector solar todos os dias), consumir muitas frutas, legumes, hortaliças, peixes e cereais integrais ricos em fibras, vitaminas A e D e ómega três. 

A especialista considerou ainda importante a ingestão de nutrientes com acção anti-oxidante e anti-inflamatória, porque ajudam a diminuir as inflamações e evitar possíveis complicações da doença, como ganho de peso, pressão alta, aterosclerose e diabetes.

Dados mundiais

Segundo o relatório de 2023 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a nível do globo, cerca de 3,41 milhões de pessoas estão afectadas pela doença. Deste número, 90 por cento são mulheres.

De acordo com a OMS, o facto de a doença ser de evolução lenta e, muitas vezes, precisar de um factor de risco para desenvolver, qualquer pessoa pode ter os genes da patologia no organismo e não saber da sua existência.

Os factores de risco para despoletar o lúpus são o stress, agitação do dia-a-dia e, se for mulher, a maternidade, visto que muitas só descobrem que têm a doença durante a gestão ou após o nascimento dos filhos.

Dia Mundial do Lúpus

O Dia Internacional de Atenção à Pessoa com Lúpus ou Dia Mundial do Lúpus é celebrado anualmente a 10 de Maio.

A data foi instituída pela Federação Mundial de Lúpus, com o objetivo de consciencializar as pessoas sobre os possíveis impactos da doença e a importância de se manter ciente sobre os aspectos da enfermidade.

A efeméride é também uma forma de colocar na agenda a importância de se ter mais estudos e pesquisas sobre o Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) para descobrir novos tratamentos, cura e formas de se obter o diagnóstico precoce.

Sintomas do Lúpus Eritematoso Sistémico

A médica reumatologista define o Lúpus Eritematoso Sistémico (LES ou simplesmente lúpus) como uma doença auto-imune (quando o sistema imunológico do corpo ataca os próprios tecidos e células ao invés de combater os organismos estranhos) capaz de afectar diversos órgãos, como as articulações, pele, rins, cérebro, coração, pulmões entre outros. 

A especialista explicou que os sintomas do lúpus podem surgir de forma lenta, progressiva ou rápida, chegando a levar meses ou semanas, variando com fases agudas da doença e de remissão.

Nestes sintomas, constam febres altas, emagrecimento repentino, perda de apetite, fraqueza e desânimo, dor nas articulações, manchas na pele, inflamações sem causa aparente, hipertensão e problemas nos rins.

Segundo a médica, a patologia é crónica e pode matar, caso não seja diagnosticada precocemente, porque pode causar a falência múltipla de órgãos.

De acordo com Esperança Nicolau, existem dois tipos principais de lúpus, o cutâneo e o sistémico. O lúpus cutâneo manifesta-se apenas com manchas na pele (geralmente avermelhadas ou eritematosas, daí o nome lúpus eritematoso).

"As manchas surgem quase sempre nas áreas mais expostas à luz solar, como rosto, orelhas e nos braços”, explicou a médica. 

Já o lúpus sistémico, prosseguiu, afecta mais os órgãos internos do corpo, como pulmão, rim, estómago, fígado, coração e outros. "Por ser uma doença do sistema imunológico, é responsável pela produção de anti-corpos e organização dos mecanismos que inflamam todos os órgãos”. 

Sintomas confusos 

A reumatologista disse que, por se tratar de uma doença que afecta vários órgãos, "os sintomas podem ser confundidos com outros problemas de âmbito gástrico, nefrológico, dermatológico, ortopédico e de outras especialidades.

Em função dessa situação, a médica aconselha os especialistas das áreas acima mencionadas a estarem atentos a cada um dos sinais que o paciente apresentar, no sentido de evitar diagnósticos errados. 

O lúpus tem como sintomas a fadiga, febre, dor nas articulações, rigidez muscular, inchaço cutâneo, vermelhidão na face em forma de "borboleta” sobre as bochechas e a ponta do nariz, lesões na pele, que surgem ou pioram quando expostas ao sol, dificuldade para respirar e dor no peito ao inspirar profundamente.

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