Reportagem

Kapari, um musseque sem centralidade

Guimarães Silva

A centralidade do Kapari é actualmente um dos ex-libris da província do Bengo, com fogos habitacionais de rigor arquitectónico e arruamentos desenhados à régua e esquadro. Mas, ao contrário do que o nome possa fazer supor, não fica localizado no musseque Kapari, mas sim no musseque Kikoka

05/05/2024  Última atualização 09H50
© Fotografia por: Maria João | Edições Novembro

O musseque Kapari é dos espaços geográficos mais antigos do corredor rodoviário entre Kifangondo e Caxito, pela Estrada Nacional 100. Com um crescendo fora de série, muito pela ocupação ilegal, o terreno, que no passado foi fazenda agrícola para a produção de algodão, hoje é um "plantio” de habitações de construção desordenada, num atropelo a padrões urbanísticos e paisagísticos, ao contrário da centralidade habitacional construída a escassos cinco quilómetros, que, por sinal, ostenta o nome da localidade, levantando questionamentos de muita gente.

A centralidade do Kapari é dos ex-libris da província do Bengo, com fogos habitacionais de rigor arquitectónico, arruamentos desenhados à régua e esquadro. Está localizado a escassos dois quilómetros do desvio da Barra do Dande, ao musseque Kikoka, antigo terreno conhecido pelo plantio de mandioca para a produção de fuba e farinha, produtos muito procurados, de acordo com Adão Augusto Sebastião, um ancião na casa dos 60 anos vividos totalmente no local, e que hoje desempenha as funções de coordenador do Sector Dois.

As razões da denominação da centralidade, segundo o entrevistado, são conhecidas. "A falta de um espaço vasto na zona do Kapari, devido à ocupação anárquica de várias extensões de terreno por parte da população, fez com que não se perdesse o projecto  habitacional de nome ‘Kapari’, que já tinha ‘ordens superiores’ para a construção”, explica, elucidando que devido ao facto, as autoridades escolheram um espaço alternativo de grandes dimensões no musseque Kikoka para edificá-lo.

Do depoimento de Adão Augusto Sebastião, o coordenador do Sector Dois, colhemos que este exercício foi acompanhado da sensibilização aos antigos donos de lavras, sobre a importância do projecto "centralidade do Kapari” e que, inclusive, "seriam realojados na urbanização do Panguila. Muita gente teve que vender os espaços a 3 mil dólares, mas não receberam as casas prometidas”.

Anabela Mota, a presidente da Comissão dos Moradores do Kapari, dá nota de que "a centralidade seria mesmo aqui, num terreno que pertence à família Tavares. Até hoje, não sabemos o que se passou para a alteração do sítio da construção”. Entretanto, os membros da aludida família remeteram-se ao silêncio, alegando questões de fórum judicial.

A centralidade, que, segundo alguns moradores, ainda não está totalmente habitada, já cumpre com o seu papel de albergar "cerca de 120 mil habitantes”, segundo a governadora Maria Antónia Nelum- ba na apresentação da situação da província ao Presidente da República, João Lourenço, a 6 de Novembro de 2023, aquando da inauguração do Hospital Geral Guilherme Pereira Inglês e da centralidade Teresa Afonso Gomes.

O histórico revela que o território do musseque Kapari, que hoje por decreto faz parte do município do Dande, começa depois da lagoa do Panguila, a sul, confina com o musseque Kikoka a norte, a leste com os bairros Ludi, Musondo e Kissomeira, "num complexo territorial de aproximadamente 4.600 hectares, pertença da família Tavares, a maior parte hoje descaracterizado devido à agressão do betão”, segundo fonte do Jornal de Angola, que se escudou no anonimato por ser parte interessada no espaço em questão, em litígio judicial, mas já com ordem de despejo dos ocupantes ilegais.

Após a divisão administrativa entre as províncias de Luanda e do Bengo, todos os bairros a norte da ponte sobre o rio Zenza ou Bengo, em Kifangondo, que englobam a lagoa do Panguila, o espaço com restaurantes típicos à beira da Estrada Nacional 100, o grande  mercado construído para albergar parte dos vendedores do Roque Santeiro, a praia do Sarico, a urbanização do Panguila os bairros Ludi, Musondo e Kisomeira, num perímetro que dá inclusive ao desvio da Barra do Dande, passaram para a administração da província do Bengo.

 
Reservas fundiárias ocupadas ilegalmente

A ocupação ilegal de terrenos da reserva fundiária do Estado começa em finais de 2011, segundo Fonseca Canga, antigo administrador municipal adjunto do Dande, em entrevista colectiva à comunicação social em Caxito, publicada na edição de 29 de Novembro do Jornal de Angola, que anunciava a existência de mais de 4 mil ocupantes ilegais nas reservas fundiárias do Estado, o que impedia o ordenamento do território.

Fonseca Canga alertava, na altura, que havia muita gente a ocupar terrenos ilegalmente. "Na zona do Kapari Novo existem duas reservas fundiárias, uma das quais pertence ao Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN), com uma área de 2.127 hectares, destinada à construção de habitações”. Na mesma linha, o quadro sénior tinha revelado, igualmente, que existia uma terceira reserva fundiária, também na localidade do Kapari Novo, com uma área de 3.215 hectares, sob responsabilidade do Bengo, que, segundo o entrevistado, também estava a ser invadida, porque o Governo Provincial do Bengo não tinha "o controlo da área que só agora passou para a sua jurisdição”.

Sempre citando o antigo administrador municipal- adjunto do Dande, este revelava que já tinham sido tomadas medidas para estancar a situação. "Reunimos-nos com os ocupantes ilegais nos locais onde construíram e foram intimados a abandonar as reservas fundiárias de imediato, mas muitos não acataram as ordens”, dissera na ocasião, anunciando ainda que uma das reservas ocupadas estava destinada à construção de uma nova centralidade.

 
Localidade do Kapari

O espaço habitável conhecido como Kapari continua semeado à beira da estrada, do lado direito,  em direcção a Caxito, caracterizado por habitações antigas e recentes, com cariz definitivo, grandes espaços vedados com blocos, alguns com publicidade comercial e outros ainda sem serventia; o chamariz publicitário de um complexo turístico, pequenos negócios liberais de restauração, remendo de pneus, padaria e a escola cor de tijolo de dois pisos, composta por nove salas de aula, numa construção repartida entre o Fundo de Apoio Social (Ministério da Administração do Território) e um porto seco privado.

O interior do bairro, que alberga cerca de 12.200 almas, com oito acessos em terra batida, no principal dos quais assentam as águas das chuvas por largos períodos, não difere de outros em que o esforço dos cidadãos manufacturou blocos de cimento e areia para erguer as próprias habitações, algumas precárias, outras de bom toque arquitectónico e ainda um complexo de lazer de se lhe tirar o chapéu, devido à ousadia e apresentação.

O bairro ainda carece de energia eléctrica da rede pública. Socorre-se de postos de transformação privados a 7 mil a subscrição do contrato, contra um pagamento mensal de cinco mil kwanzas.  A população sente-se esquecida por não usufruir de um programa-modelo "Água para Todos”, quando uma conduta do precioso líquido, de grandes polegadas,que supostamente parte da centralidade do Kapari, em direcção ao Sector Oito da Urbanização do Panguila, passa justamente frente ao bairro, em linha paralela à Estrada Nacional.

A população do Kapari lamenta o facto, mas ainda assim se sente orgulhosa do sítio onde a mãe natureza proporcionou terra para viver. "Muitos de nós somos descendentes de terceira e quarta gerações de gente que superou sacrifícios para viver num sítio distante de um rio ou lago. A produção de mandioca, batata-doce e legumes, dependente das chuvas, foi o nosso suporte alimentar”, informa João Fernandes, um homem na casa dos 40 anos, que cresce na terra que o viu nascer. 

O principal meio de comunicação entre os musseques Kapari e Kikoka é a Estrada Nacional 100, que hoje já se afigura estreita, a julgar pelo trânsito frenético de todo o tipo e cilindragem de viaturas e camiões, com diferentes destinos no troço que dá a Luanda, a capital do país, e no sentido Norte para a cidade de Caxito, Uíge e Zaire.


OPINIÃO
Valorizar os heróis nacionais

O imbróglio da localização ou do nome que difere de parâmetros geográficos e levanta questionamentos encontra correntes de opinião que sugerem a alteração do nome para a de um herói nacional, a exemplo da centralidade Teresa Afonso Gomes, ao Bukula, a nova coqueluche do município do Dande, já em fase de distribuição e acomodação de famílias, sobretudo jovens, que concretizam o sonho da casa própria.

O histórico revela que das razões para a passagem de testemunho da centralidade de um pretenso espaço inicial para outro reside na ocupação ilegal de reservas fundiárias do Estado, no antigo musseque Kapari. O terreno ora estruturado e financiado pelo Estado cumpre com o papel imobiliário de minimizar aflições imediatas quanto            à habitação social.

Conhecendo o musseque Kapari há anos, quando o grande descampado dava acesso a um olhar solto sobre as águas cristalinas e azuis da lagoa do Panguila e num relance à direita, no outro descampado à vista deslumbrava-se no horizonte com a praia do Sarico ou Santiago, ainda povoada pelo ferro velho dos navios já corroídos pelo salitre. Dava para  vislumbrar que alguma cobiça poderia surgir pelo espaço. Era muita beleza, aparentemente para poucas iniciativas.

Afinal, havia miolos a remoer. Havia               pensamentos em linha de conta. Hoje, quando a profissão nos põe a caminho de pesquisas para a reportagem, em offthe record e com o compromisso tácito de não publicar pormenores, chegou-nos, à laia de informação, que até experts da Fórmula Um (gigantes das corridas de alta velocidade, com bólides top de gama e alta cilindragem), que constroem pistas, cadeias de hotéis, boxes e outros apetrechos tecnológicos, estavam igualmente de atalaia para "invadir” o espaço Kapari há umas décadas, devido ao potencial turístico.

Assim, a centralidade não seria a única a lutar por um espaço por demais cobiçado. Muitos, há muito tempo, já cobiçavam o lugar. Hoje, ao que parece, os únicos "vencedores” foram os ocupantes ilegais, que na impunidade criaram bairros com os nomes SKS, Aviário, Mbêmbwa, Terra Nova e Montanha, onde,na paz dos anjos, têm vista privilegiada para a lagoa do Panguila e outros encantos que a elevação do Kapari oferece.

O nome Kapari, este sim, é que não pode ser transferido do seu habitat para o do vizinho Kikoka, que, segundo Adão Augusto Sebastião,  o significado em Kimbundu dá a ideia de "viemos acompanhar”. Talvez a solução à mão de semear seria mesmo a mudança do nome da centralidade para o de um dos muitos heróis e heroínas anónimos, que muito fizeram para preservar a singularidade do local e a nossa angolanidade.

Guimarães Silva

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Reportagem