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Leste da RDC: O ressurgimento do M23 e a intensificação dos combates

Faustino Henrique

Jornalista

Movimento rebelde diz representar cerca de cinco por cento da população tutsi congolesa que vive nas províncias do Kivu Norte e Sul, mas Kinshasa acusa-o de ser “um peão do Rwanda”

12/03/2024  Última atualização 06H35
© Fotografia por: DR

Os combates entre as Forças Armadas da RDC (FARDC), apoiadas pelas milícias Wazalendo (patriotas na língua Suaíle) e o M23, alegadamente apoiado pelo Rwanda, intensificaram-se nas últimas semanas, no Leste da República Democrática do Congo (RDC).

Os últimos combates agravaram a crise humanitária, resultando em mais de 100 mil pessoas deslocadas e levantam receios de o conflito assumir dimensão regional.

Não é a primeira vez que os dois lados, mais concretamente as FARDC e o M23, se enfrentam, na medida em que desde que aquele último foi criado, pouco depois do fracasso dos Acordos do dia 23 de Março de 2009, variadas vezes ocorreram enfrentamentos armados. Mas desta vez há algumas particularidades que configuram um contexto diferente dos anteriores, aparentemente semelhantes, como o crescimento de evidências que apontam o envolvimento do Rwanda, as iniciativas de paz, com o Roteiro de Luanda e as diligências de Nairobi.

Todos estes instrumentos, em consonância com o legado de conversações que visavam o aquartelamento, desarmamento e reintegração dos membros do M23 nas FARDC, culminaram com a necessidade da "imposição da paz”, porque o M23 não anuiu aos entendimentos que as lideranças regionais chegaram.

 
Surgimento do M23

Algumas fontes apontam o ano de 2004, outras 2006 como o da criação do "Movimento de 23 de Março”, mas sabe-se que foi no último que o chamado Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP), o embrião do M23, deu a "cara” no Kivu Norte como o prolongamento das reivindicações sociais, políticas e depois militares das populações congolesas rwandófonas.

De acordo com o Wikipedia, sobre o tema "Congrés National pour la Défense du Peuple” que "antes do cessar-fogo de Agosto de 2007, o general Laurent Nkunda tinha rompido com o Governo congolês, enquanto líder dos soldados banyamulengues (congoleses rwandófonos), que pertenciam à então Associação Congolesa para a Democracia e passou a atacar, seguramente em nome do Rwanda, as fileiras das forças Democráticas de Libertação do Rwanda (FDLR), estacionadas na RDC”.

Os anos seguintes, 2008 e 2009, foram de diligências, envolvendo o Governo da  RDC, o CNDP e as milícias Mai Mai, que culminaram com a "Conferência de Paz de Goma” e o famoso acordo de paz assinado a 23 de Março de 2009, que nunca foi honrado pelos signatários e do qual se originou o movimento que passou a designar-se em função do dia e mês da assinatura.

Alguns dos ex-rebeldes, descontentes com o processo inconclusivo de reintegração nas FARDC, amotinaram-se em Abril de 2012, tomaram de assalto Goma entre Novembro e Dezembro de 2012, tendo sido derrotado, no ano seguinte, pelas  Forças Armadas da RDC, após 18 meses de guerra de guerrilha. Após a derrota, o M23 prosseguiu negociações com Kinshasa, enquanto várias centenas dos seus combatentes encontraram refúgio no Uganda, onde foram acantonados, e no Rwanda, país em que não se soube que tratamento lhes foi dado.

No final de 2013, em Nairobi, o M23 e Kinshasa assinaram compromissos, nomeadamente para preparar o caminho para o repatriamento da maioria dos ex-combatentes rebeldes, com vista à sua reintegração na vida civil. Esta operação nunca conheceu nenhum avanço significativo e sobre o tempo de "hibernação” ou estado de actividade mínima, quase nada se soube sobre o tratamento de centenas de ex-rebeldes que se tinham refugiado no Uganda e Rwanda.

À imprensa rwandesa, o Presidente Paul Kagame fez constar que entre 2013 e 2016  o país tinha, alegadamente, devolvido, após notificação das autoridades congolesas, 600 milicianos, numa altura em que se pensava que o problema do M23 estaria arrumado.

 
Ressurgimento do M23

Segundo o site do jornal congolês Potentiel, "no início de 2017, após alguns anos de trégua, o Governo congolês e numerosos testemunhos de residentes afirmaram a presença de ex-combatentes do M23 na região de Rutshuru, cidade localizada na província de Kivu do Norte”.

Dizia-se, na altura, que a missão da ONU na RDC (MONUSCO) tinha "múltiplas pistas” sobre a sua presença em território congolês. A situação voltou a acalmar mas, desde Novembro de 2021, o M23 é acusado de atacar posições do Exército no território de Rutshuru, incluindo o Parque Nacional de Virunga.

Um analista político congolês, Dénis Mukwendira, citado pela imprensa congolesa, considera improvável que o ressurgimento do M23 em força não tenha influência de terceiros. "Para um movimento que se julgava extinto, depois da clara derrota em 2013, a forma como ressurge e atendendo ao movimento que realiza dos países vizinhos para o interior da RDC, com toda a força, restam muito poucas dúvidas de que não tenha recebido ajuda de terceiros”, disse.

 
Reivindicações do M23

As declarações públicas do M23 também evoluíram ao longo de anos. Em princípio, negou ter confrontado o Exército congolês, antes de o admitir, assumindo apenas que estava a lutar porque estava a ser atacado.

Os integrantes do M23, estimados entre quatro a seis mil homens, dizem-se representantes de cerca de cinco por cento da população tutsi congolesa que vive, maioritariamente, nas províncias do Kivu Norte e Sul e reivindicam, entre outros, o "resgate” dos compromissos assumidos em acordos e iniciativas de paz.

Para o porta-voz do movimento, Lawrence Kanyuka, "é preciso atacar as raízes do problema”, numa referência indirecta a tudo quanto ficou por se materializar, embora não tenha entrado em pormenor relativamente ao que, realmente, está em causa.

Quando questionado a detalhar o que reivindicam, o político disse que queriam "um diálogo directo com o Governo”, explicando que não pretendia adiantar mais nada porque, de outro modo, estaria a "colocar a carroça à frente dos bois”.

O M23 tem mencionado o papel hostil dos milicianos das FDLR (grupo rebelde rwandês, formado por hutus) e o perigo que representam para os tutsis congoleses, tendo Kigali também denunciado a alegada cooperação entre a RDC e a referida milícia.

Para o general Sylvain Ekenge, porta-voz das Forças Armadas da RDC, "estas reivindicações são desprovidas de qualquer fundamento”, recordando que o próprio exército congolês realizou operações contra as FDLR no passado e que o M23 não "passa de um peão do Rwanda”.

Jason Stearns, ligada à Human Rights Watch ( HRW- observatório dos Direitos Humanos),  citado pelos media congoleses,  diz que "os elementos do M23 são sinceros quando estão preocupados com os tutsis congoleses. Mas as motivações variam entre indivíduos e o que alguns invocam como receios tem, na verdade, um fundo político”.


CESÁRIO ZALATA
Docente defende intervenção militar africana

O docente das cadeiras de Introdução às Relações Internacionais, Geografia Política e Blocos de Integração Regional, na Universidade Privada de Angola (UPRA), em Luanda, Cesário Zalata, disse que "do ponto de vista da Ciência das Relações Internacionais, a República Democrática do Congo, na qualidade de Estado soberano e independente, tem, naturalmente, o direito inalienável e imprescritível de se defender contra qualquer força negativa interna e externa, recorrendo para o efeito à utilização dos instrumentos pacíficos ou dos instrumentos violentos”.

"Aliás, o Estado soberano é legitimamente considerado como o  único detentor do uso do monopólio da força, quando o assunto é repelir quaisquer  ameaças que coloquem em causa  os interesses vitais e a manutenção da sua sobrevivência”, sublinhou.

Quando questionado a comentar sobre o M23, o docente universitário afirmou que "historicamente, o Movimento  23 de Março, abreviadamente conhecido como M23, e em outros círculos conhecido também como Exército Revolucionário Congolês, é um grupo militar rebelde, maioritariamente tutsi, baseado  na região  Leste da República Democrática do Congo (RDC), concretamente na província do Kivu do Norte”.

Sobre o que representa a intensidade dos combates, na província do Kivu Norte e arredores, na mesma proporção em que crescem a pressão internacional ao Rwanda e os esforços de mediação de Angola, Cesário Zalata referiu que a " a intensidade dos combates é uma demonstração inequívoca de que o M23, ao longo de aproximadamente 12 anos de operações militares e tentativas de negociações, não está minimamente interessado em aceitar ou respeitar os termos de qualquer acordo do processo de  paz para o Kivu do Norte”.

 
Mediação angolana

Quanto ao encontro entre o Presidente Félix Tshisekedi e Paul Kagame, sob a mediação do Chefe de Estado, João Lourenço, o também analista de Política Internacional entende que  "o encontro entre o Presidente Félix Tshisekedi da República Democrática do Congo, e Paul Kagame do Rwanda, na 37ª. Cimeira da União Africana, sob a mediação do Chefe de Estado angolano, João Lourenço, foi um simples gesto de cortesia política e diplomática, que no essencial não vai trazer nada de novo naquilo que são os esforços diplomáticos virados na resolução deste conflito crónico”.

"Angola, no âmbito da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), tem estado, permanentemente, a usar os bons ofícios para facilitar o diálogo entre as partes, que permitiu, por exemplo, a adopção do Roteiro de Luanda sobre o processo de pacificação da região Leste da RDC, mas sem sucesso, por culpa do Presidente Paul Kagame”. Cesário Zalata lembra que encontros entre o Presidente Félix Tshisekedi e Paul Kagame, sob a mediação do Presidente João Lourenço, já aconteceram várias vezes.

"Já houve várias cimeiras de Luanda e algumas vezes o mediador João Lourenço, incansavelmente, fez deslocações oportunas para a RDC e o Rwanda, no sentido de apelar ao bom senso e a boa-fé das partes, para honrarem as resoluções das cimeiras, mas sem o mínimo de respeito e consideração, fundamentalmente por parte do Presidente do Rwanda, Paul Kagame”, fundamentou o docente.

Quando questionado sobre as eventuais soluções em caso de insucesso das diligências diplomáticas, o docente defendeu que "quando a diplomacia é desrespeitada, em última ratio, deve-se recorrer ao uso da força para se repor a autoridade do Estado. Defendo, intransigentemente, a adopção de uma resolução que permita uma intervenção militar africana ou uma coligação internacional no Leste da RDC”.


 Adão Baião
Intensidade dos combates  constitui uma ameaça à paz

Para Adão Baião, licenciado em Relações Internacionais, a "intensidade dos combates na província do Kivu Norte, nomeadamente na cidade de Goma e arredores, constitui, certamente, uma forte ameaça à paz e segurança da população circundante e para a região, a julgar pelos efeitos nefastos que os mesmos estão a causar às pessoas, bens e administração local, ameaça que poderá, a médio prazo, estender-se a outras províncias e, quiçá, a países vizinhos”.

Relativamente à mediação de Angola, o também membro da direcção da Associação dos Especialistas Angolanos em Relações Internacionais (AEARI) defende a  "implementação dos entendimentos de Luanda e Nairobi, que resultariam na cessação das hostilidades, confinamento e desarmamento das forças do M23 e o fim do apoio do Rwanda a estas forças, reforçado com a crescente pressão da comunidade internacional”.

"Apenas assim se poderá sonhar com um futuro melhor”, sublinhou.

Sobre o encontro entre os Presidentes Félix Tshisekedi e Paul Kagame, ainda sem data, sob a mediação do Presidente João Lourenço, Adão Baião reconheceu que "a expectativa é grande” em toda a sub-região, numa altura em que a situação no Leste da RDC se degrada a uma velocidade que não deixa ninguém indiferente, ao nível das lideranças e da opinião pública regional”.

"A mediação angolana”, frisou, "tem sido feita até aos limites dos pressupostos pacíficos. Resta, mais uma vez, insistir num maior engajamento de Paul Kagame, para que a solução privilegiada seja a via pacífica e evitar o escalar da guerra em proporções alarmantes com o envolvimento de outros países da região”.

 
Papel do Rwanda

Segundo a imprensa  congolesa, "em Fevereiro do corrente ano, o Exército congolês capturou dois soldados rwandeses, na zona de combate, arredores da cidade de Saké,  situada a 25 quilómetros, a Leste de Goma, capital do Kivu Norte, tendo reafirmado as acusações sobre o apoio do  Rwanda ao M23”.

Na mesma semana, a imprensa rwandesa, citando o Governo, desmentiu as informações, alegando que os dois homens, capturados há mais de um mês, não faziam parte do seu Exército e recusou qualquer apoio ao M23.

O Presidente Paul Kagame defende que a instabilidade no Leste da RDC é "um problema interno daquele país”, tendo rejeitado, por diversas vezes, qualquer papel no suposto apoio às milícias do M23.

Mesmo perante evidências que se multiplicam, a cada dia que passa, como por exemplo o último relatório divulgado a 3 de Janeiro, através do qual especialistas da ONU reafirmaram que o Rwanda apoia, efectivamente, o M23, Paul Kagame desafia que se prove o alegado apoio dado às milícias congolesas formadas maioritariamente por tutsis.

Para o analista Cesário Zalata, "a escalada e intensidade dos combates nos últimos tempos, violando os Roteiros de Luanda e de Nairobi, o cessar-fogo, o processo de  acantonamento, desarmamento, desmobilização e reinserção dos elementos do M23,   constitui uma grande irresponsalidade política e diplomática do Estado rwandês.

"É obvio que, este comportamento inconsequente das chefias militares do M23, e do Presidente do Rwanda, Paul Kagame, acaba por minar todo o processo e os esforços da mediação de Angola”, concluiu.

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