Cultura

O carnaval despido das cargas preconceituosas

Altino Matos

Mais uma vez, o carnaval foi dançado, em todo o mundo, envolvendo gente de todos os estratos sociais, num claro sinal de que ninguém fica indiferente a esta manifestação cultural.

18/02/2024  Última atualização 10H47
© Fotografia por: Vigas da Purificação | Edições Novembro

Num só evento, juntam-se aspectos da vida social, política, económica, militar... cultural (palavra mágica que abre todas as portas e conflui à consolidação dos laços entre os povos). Ano após ano, século após século- assim é mais correcto abordar a perspectiva do carnaval-  as coisas acontecem da mesma forma, diria antes, são preparadas aos detalhes. Podem ficar em falta nos arranjos, mas não na sua espiritualidade: aproximar, partilhar, animar, mais do que festejar, celebrar, sim, todos os anos a humanidade celebra a sua existência, a verdadeira devoção a Deus! Pelo menos nos lugares onde se dança o carnaval.

Cidades inteiras são tomadas pela criatividade alegórica, folia e agressividade da força carnavalesca. É um dos raros momentos em que modernidade e antiguidade dialogam sem interferência e distinguem-se na complexidade das cargas preconceituosas, conectando elos do passado, presente e do futuro. O carnaval é, pela sua natureza, o maior museu da humanidade a céu aberto, organizado com a participação de todos, justamente como foi pensado para cumprir com um fim divino, tal como a máxima lançada pelo Papa Francisco: "A Igreja deve ter as portas abertas para os filhos de Deus”. Com o carnaval também é assim, não se faz diferença entre ricos e pobres, há lugares para todos. O certo está no acerto do compasso, afinado a cada ensaio até ao grande desfile.

Do carnaval, extraímos o desenho da geneologia através dos fios de história que formam a sua malha festiva. Há segredos guardados no tempo, os quais, uma vez decifrados, levam a uma viagem ao passado, permitindo o desejado encontro para que nos compreendamos hoje.

Além da alegoria, folia e celebração, temos no carnaval mitos e ritos, a essência da geneologia "carnavalesca”, exaltando a organização sociopolítica desde sempre. Ao analisarmos o carnaval nas suas três dimensões, nomeadamente artística, cultural e espiritual, concluímos pela presença de sistemas psicossociais que funcionam há milhares de anos, como se estivessem sujeitos a um automatismo. Na verdade, há um automatismo, sim, razão pela qual o evento é em si um sistema.

No seu processo evolutivo, observa-se uma adaptação ao contexto, formado de nichos que se diferenciam na operacionalização artística, demarcando lugares, atitudes e comportamentos. Toda uma essência social é afectada com a introdução de novos estilos. Apesar de estar sujeito a um curso adaptativo, a expressividade mantém-se inalterável, conservando as impressões digitais. A leitura crítica da dualidade conceptual, entre modernidade e antiguidade, sustenta o carnaval como um aparelho incontornável no conjunto de manifestações culturais, elevando-o à dimensão supranatural. Temos isto quando verificamos a sua transcendentalidade onde há um despoletar de canais celestiais que interligam ser carnal e espiritual.

 
Origem e inspiração religiosa da festa

A origem continua a ser um verdadeiro mistério. Apenas temos registo de estar relacionada com a organização religiosa, à época em que Estado e Igreja exerciam, em tempo real, as mesmas responsabilidades. No entanto, o canal de investigação científica Nacional Geographic alude que o carnaval remonta à era do Império Romano. Na época, o cristianismo mais do que uma devoção, era uma verdadeira forma de vida. Tudo iniciava e terminava em Cristo, por assim dizer. Não havia como os povos, enquanto fiéis, seguirem outra forma de orientação, senão a divina. Neste sentido, a Igreja, na qualidade de agregadora da eucaristia, ocupava-se, também, das manifestações sociais, com o mesmo cuidado como procedia com as procissões.

Segundo o Nacional Geographic (16.11.23), a Enciclopédia Britânica atesta que o carnaval tem origem "nos costumes católicos”, a partir das "festividades finais realizadas pelos romanos católicos nos dias que antecediam a Quaresma, período que acontece antes da Páscoa cristã e em que os devotos se abstinham de comer carne”. Seguindo o caminho de outras manifestações organizadas pela Igreja, as quais muitas delas permanecem nos costumes católicos, o carnaval foi aberto à sociedade, até porque a organização social à época era grosso modo cristã, não havendo por isso preocupações com desvios da prática religiosa. Assim, ritos e rituais foram mantidos e passados de geração em geração até aos dias de hoje.

Nos lugares de maior devoção cristã, o carnaval permanece como a maior manifestação popular derivada de costumes católicos. Em França, Portugal, Brasil, e em Angola, os povos celebram a existência da humanidade. Esta expressividade tem a ver com a própria inspiração divina do carnaval. Naturalmente, a sua evolução levanta um conflito de ordem moral, sobretudo pela forma como se apresentam os foliões. A nudez e outras várias formas de violência, previamente elaboradas, que formam o espectro do potencial de determinados estratos sociais, entram em confrontação com a ordem dos valores consolidados pela Igreja. 

Esta complexidade que parece resultar de uma desapropriação da Igreja, talvez encontre explicação na origem da palavra carnaval, proveniente do latim "carnelevarium”, que significa tirar ou remover a carne. Apesar de o sentido literal descrever o momento que antecede a Quaresma, o carnaval também pegou uma parte da rebeldia popular, como que juntando ao momento festivo ritos sociais de conspiração e disputas políticas. Em Itália, segundo a Enciclopédia Britânica, a "origem das celebrações pode estar ligada aos festivais pagãos Saturnalia e Lupercália”. O primeiro era realizado em "honra ao deus Saturno e ocorria no solstício de inverno, em Dezembro”. O segundo acontecia em Fevereiro, no mês das "divindades infernais e das purificações para os romanos”. Ambas as festas duravam dias e eram abastecidas com muita comida, bebida e danças (idem).

 
Ordem divina e social

A relação entre a ordem divina e a social, compreendida aqui pela exposição de um conjunto de ritos imorais, confunde a celebração do carnaval, confinando o evento a um acontecimento vulgar, apesar da verticalidade simbólica, lugar da purificação, da desapropriação diabólica, do livramento de espíritos, da transcendência para um reencontro sagrado, em que corpo e mente acabam purificados.

Em cada rito, temos um ou vários rituais, com significados e várias dimensões. A alegoria é uma narrativa de contos e reencontros, onde costumes, hábitos, atitudes e comportamentos são ao mesmo tempo meio e pontos de conexões. Primeiro, enquanto meio funcionam como fases de expressões residuais, passando conhecimento de gerações a gerações, aproximando grupos étnicos, exaltando as particularidades culturais dos povos. Em segundo lugar, enquanto pontos de conexões confluem o saber científico e popular, nas dimensões cultural, política, económica, filosófica. Pois é a extensão dos vários poderes da própria organização social.

Verificamos que, nos séculos VI, VII e VIII, o carnaval ganhou uma estrutura política que deu lugar à consciência de cidadania. Isto é mais do que uma celebração, o evento passou a ocupar lugar de intervenção, acolhendo todas as manifestações, conferindo ao momento um meio de afirmação patriótica, artística e cultural. No Brasil, o primeiro movimento a ser destacado neste sentido é "Manifesto Carnavalista”. Segundo Teixeira (2021), no seu artigo "Entre bandeiras e estandartes: a dimensão política do carnaval de rua de São Paulo”, o movimento nasceu da organização de "músicos, activistas culturais e representantes dos poucos blocos existentes na época, no intuito de evidenciar que havia um anseio de parte da sociedade paulista pela realização de um carnaval de carácter popular, democrático e horizontal”. 

O carnaval passava a ter uma função política, ganhando uma dimensão social que arrebatava a todos que se gladiavam para assistir aos desfiles. Esta forma de olhar o evento nasceu no século VII. Segundo Birmingham (O Carnaval de Luanda, 1991), "os Jesuítas de 1960, tal como os políticos de épocas posteriores, quiseram ligar as celebrações tradicionais à sua própria causa”.  Passaram a contribuir para os cortejos, com carros alegóricos ricamente ornamentados. A partir daí, a celebração adquiria um cunho de Estado, momento em que foi partilhado com a Igreja durante muitos séculos, até haver uma espécie de ruptura, a que acima foi referida, uma quase desapropriação.

No entanto, a festa que mais se assemelha ao carnaval dos nossos dias, foi a canonização de São Francisco Xavier, celebrada em 1620, refere Birmingham. Portanto, é o único momento em que ainda se consegue aproximar as duas celebrações da Igreja. Não obstante a forma como hoje se manifesta o carnaval, em alguns números, encontramos vários ritos de origem divina, isto é, de devoção a Deus. Logo, não será de todo verdadeiro desapropriar o evento da Igreja, embora seja verdade que a ordem social manifesta está quase na sua totalidade em contramão com os valores apregoados pela Igreja.

A natureza da manifestação promoveu, em si, um lado confuso que deu lugar a uma aparente ruptura, tendo muito a ver com a própria essência do evento, que sobrevive da criatividade. Nesse sentido, a ordem alegórica e a combinação dos foliões indicam a proveniência do meio, definindo cada sector envolvido, desde o político ao económico. A palavra-chave é cultura: obriga a que as manifestações sejam todas de cariz cultural, isto é, tudo deve obedecer a uma orientação simbólica. 

 
O Carnaval da Vitória  

A ordem religiosa reinou em todos os lugares de orientação católica, onde a fé cristã se ocupou da vida, mediando as relações sociais e reclamando a si uma espécie de direito supremo sobre culturas seculares. Neste sentido, as caravelas levavam mais que missionários, pois, dos seus porões descendiam estratégias de ensinamento e dominação cristã que eliminavam a possibilidade de um diálogo entre culturas, sendo que daí também derivou o carnaval. 

A cidade de Luanda, tal como cidades de outros lugares, acolheu o carnaval ainda na transição do século VI para o Século VII (Birminham, 1991). A manifestação mantém a verticalidade simbólica da história, passada e presente, de Angola. Birmingham refere que "desde há 400 anos que Luanda é a principal cidade atlântica da África central. A continuidade da dinâmica da cultura popular pouco ou nada afectada pelo surgimento de regimes- os Habsburgos espanhóis da década 1580, os Neerlandeses protestantes da década de 1640, os fazendeiros brasileiros da década de 1660, os mercantilistas portugueses da década de 1730, os crioulos negros da década de 1850, os monárquicos do exército da década de 1880, os republicanos brancos da década de 1910, os fascistas autoritários da década de 1930, os capitalistas da industrialização da década de 1960, os revolucionários nacionalistas da década de 1980”.

Destes períodos, o de 1980 desenvolveu um sentido patriótico que introduziu uma reorientação de Estado com um curso festivo na dimensão essencial do orgulho de angolanidade. O MPLA, partido no poder, fez a ruptura com a era colonial, de que resultou a designação "Carnaval da Vitória”. Mais do que uma mudança, era um posicionamento político, tal como aconteceu em todas as nações que se libertaram da exploração. Ao carnaval foram combinados mitos e ritos que deram nova moldura à sua estrutura político-social, passando, os arranjos, a ter elementos da grandeza da terra, linhagens ancestrais e diversidade de cor e cultura.

A ruptura com o calendário cristão e a escolha de uma data política para o Carnaval foram importantes do ponto de vista simbólico. Para os foliões continua a haver uma festa de quatro dias, terminando com um dia de cinzas (Birmingham). No entanto, o país manteve um carnaval dançado como em qualquer parte do mundo cristão. Apesar de introduzir uma alteração na sua estrutura política, o Estado não o instrumentalizou, conservou pois a manifestação como uma celebração popular, com os seus valores de ordem social e religiosa, sendo que as transformações da festa são próprias das mudanças das sociedades.

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