Reportagem

Pango Aluquém: Dos mitos e superstições à resistência de Cazuangongo

Edvaldo Lemos |

Manhã de cacimbo. nuvens carregadas, o grosso nevoeiro abraçava o frio que persistia no horizonte. Enquanto isso, pássaros abastados cantavam o hino da liberdade e o galo entoava o último louvor na capoeira. Seis horas e vinte e sete minutos da matina, marcava o relógio. A equipa de repórteres do Jornal de Angola chegava a Benza, um bairro com os fortes traços que caracterizam o município de Pango Aluquém, onde o tradicional prevalece sobre o moderno

10/03/2024  Última atualização 10H33
© Fotografia por: Maria João | Edições Novembro

Gritos de cigarras, grilos e outros bichos ouvem-se em Benza quando a noite cai e a escuridão é rainha e toma conta do ambiente. Os jovens ficam concentrados na única cantina do bairro, onde se consegue ver uma lâmpada acesa, uma televisão pendurada junto à porta… A cantina é o local de entretenimento e recreio para a juventude daquela zona.

"Só queremos energia eléctrica. Não temos piscina, não temos lojas nem um lugar para ficarmos com as nossas namoradas”, desabafou o jovem Manuel Zinga.

No outro lado da estrada, as ondas sonoras traziam consigo os ritmos da rumba congolesa: Madilu Sistem, Franco e Pepe Kalé. Era no bar do Ary, um jovem comerciante natural da RDC, muito popular na localidade. A música dos kotas atraía os mais velhos para sunguilarem à porta do bar. Jogando xadrez, os kotas aproveitavam a clareza da lâmpada do bar, até 23 horas quando o grupo gerador é desligado e a escuridão volta a reinar em todo Pango Aluquém.

"Eu vivo aqui já faz cinco anos e não tenho saudades da minha terra, essa é agora a minha pátria”, disse o comerciante congolês.

Lendas e mitos sobre a origem

Pango Aluquém, de acordo com a normalização ortográfica seria Mpando-a-Lukeni, expressão que tem origem na língua kikongo, originária do antigo Reino do Kongo. O nome dado ao município deriva de um guerreiro deste reino, que foi enviado às terras actuais do Bengo na companhia de três irmãos. Originários de Loango, província de Cabinda, anteriormente freguesia do Reino do Kongo, os irmãos, Mpando-a-Lukeni, Njimboa-a-Lukeni e Nzambi-a-Lukeni, foram enviados pelo tio, soberano do Kongo, Nimi-a-Lukeni, a pedido das autoridades do Principado dos Dembos, que se estendia até a actual província do Cuanza-Norte.

As populações dos Dembos enfrentavam uma guerra com um inimigo muito forte, difícil de combater. Ante às elevadas baixas nas suas hostes, o soberano dos Dembos recorreu ao então todo poderoso Reino do Kongo, que se estendia por uma vasta área que abrangia parte dos territórios actuais de Angola, Gabão, República Democrática do Congo e Congo Brazzaville.

Nimi-a-Lukeni, o então soberano do Kongo, enviou os seus sobrinhos mais destemidos, oficiais de primeira, a frente de uma força chefiada pelo primogénito Mpando-A-Lukeni (Npango Aluquém).

O inimigo chamava-se Dimbumbe ou Dikixi, no singular, ou Maquixi, ou ainda Mambumbe, no plural. Eram bichos de sete cabeças, demónios que devoravam a população a sangue frio, ninguém podia ir às plantações nem andar pelos caminhos à noite.

"Até à luz do dia os Maquixi matavam a população”, explicou o Soba Zua. "O reinado começou a entrar em declínio até a chegada dos mercenários do Reino do Kongo, especialistas no combate aos seres espirituais (demónios)”, acrescentou.

Lendas assustadoras contam que os Maquixi não eram vistos por ninguém, mas era muito fácil detectar as suas acções. A história da guerra mudou com a chegada dos guerreiros comandados por Mpando-a-Lukeni, que conseguiram matar todos os bichos de sete cabeças. Em pouco tempo os Muquixi foram derrotados e, em compensação, o rei dos Dembos ofereceu uma vasta porção de terras aos guerreiros kongueses. Nomeadamente, Njimbo Aluquém, na comuna de Cazuangongo, Kilombo dos Dembos e Nkoxi, em Quibaxe, Kiaje na comuna de Bula Atumba, Gombe-ya-Muquiama, Dungo e Combe, regiões actualmente pertencentes aos municípios de Pango Aluquém, Dembos e Bula Atumba, na província do Bengo.


A saga guerreira dos Dembos

Um grande guerreiro do Ndongo, que respondia pelo nome de Cazuangongo, solicitou ao Rei Ngola Kiluanje para partir com a sua família, incluindo o seu irmão mais velho de nome Nambuangongo, saindo da Ilha de Luanda com o objetivo de encontrarem melhores condições de vida. Então caminharam em direcção ao Norte, e, passando por Caxito, o contingente parou no entroncamento entre as Mabubas e o Sassa Povoação. Decidiram dividir a caravana.  Nambuangongo juntou o seu contingente e partiu em direcção às Mabubas, enquanto o irmão mais novo, Cazuangongo, desceu em direcção ao Úcua. Cazuangongo decidiu descansar no Icau, onde empossou o seu irmão menor ao grau de Soba. Cazuangongo desceu mais ao Sul, até ao Gombe-ya-Muquiama, onde empossou o primo Hesso Anâmbua como Dembo naquela região, prosseguindo a sua marcha até Kaculo-Kahenda, que fica nas actuais proximidades de Bula Atumba, e empossou Sassá Calombe ao grau de Soba Grande da localidade.

O grande Dembo e guerreiro Cazuangongo fixou-se na região que actualmente tem o seu nome, nas proximidades do Rio Zenza, onde o município de Pango Aluquémfaz fronteira com a província do Cuanza-Norte. Cazuangongo passou a controlar 32 sanzalas com sobas e dembos sob o seu comando, do Icau a Kaculo-Kahenda, onde foram estabelecidos os postos principais da sua resistência à ocupação colonial.

Cazuangongo era destemido. O símbolo do seu poder era a Kijinga, acompanhada de vestes de pano e um Mbaça, bem como a sineta que significava carimbo e bandeira.

Em 1872 viviam-se os anos da expansão colonial. A resistência de Cazuangongo conhece o primeiro teste ante as forças portuguesas. Esse momento, conhecido na história como a revolta dos Dembos, teve como consequência imediata o massacre do destacamento de 30 militares portugueses, mortos nos morros de Kakulu-Kahenda, junto ao afluente do rio Lobo. A revolta estendeu-se até ao concelho de Caxito, Alto Dande eIcau. Os nativos invocaram abusos na cobrança dos dízimos e exploração por parte dos negociantes fazendeiros.

A revolta resultou na expulsão de todos os fazendeiros europeus. Cazuangongo, Kakulu-Kahenda e Ngombe Amuquiama possuíam mais de dois mil soldados com armas de fogo.

 

Verdade das fontes orais

Em declarações ao Jornal de Angola, o director municipal da Cultura de Pango Aluquém, Elísio Carlos Tavares, disse que a lenda dos Mukixi e da intervenção dos guerreiros do Reino do Kongo é uma realidade. "Como prova disso, temos cá os falantes da língua loango, um idioma muito parecido com o kikongo. Por essa razão, nos dias de hoje, existem ainda fricções entre os dois maiores grupos etnolinguístico que habitam a região de Pango Aluquém, por conta do ciúme. Uns, os falantes da língua loango, são acusados de invasores, por serem originários do Reino do Kongo, propriamente de Cabinda; o outro grupo são os falantes de kimbundu, que são os nativos da região dos Dembos”.

Segundo Elísio Tavares, "os mais velhos dizem para não contar a verdadeira história, para evitar desentendimentos entre os dois maiores povos que habitam essa região. E temos feito tudo para evitar que se propague a lenda dos Mukixi e da entrada dos povos Loango aqui. Mas a lenda não é mito, é uma verdade, as autoridades tradicionais sabem da verdade”.

Elisio Carlos Tavares disse ainda que a bravura de Cazuangongo foi determinante para a resistência dos povos dos Dembos.     "Essa a razão por que, após a conquista, o posto colonial foi baptizado com o nome Pango Aluquém. Eles baptizaram o posto colonial com o nome Pango Aluquém para o povo esquecer Cazuangongo. O contingente militar colonial teve muitas derrotas nesta zona, por conta do Dembo Cazuangongo” concluíu Elísio Tavares.

O Palácio de Maravilla

A reportagem do Jornal de Angola visitou o palácio de Maravilla, hoje abandonado dentro de uma mata fechada na localidade de Cazuangongo. Andamos a pé cerca de dois quilómetros e escalamos uma montanha, onde encontramos o sinal deixado pelos portugueses, que assinalava os limites do Forte de Maravilla.

O local apresenta um ambiente apto para turismo. Quando entramos no Forte de Maravilla recebemos o convite para uma viagem à história dos povos dos Dembos e do destemido Cazuangongo.

No seu interior as paredes continuam intactas. Os moradores relatam os mitos e as superstições. "Diz-se que durante a noite ouvem-se vozes dos antepassados que ali viviam”, contou o segurança António Maquejo, que lá trabalha há muitos anos sozinho.

O Palácio de Maravilla era um forte construído a 12 quilómetros do rio Zenza. A fortificação pertencia a um poderoso fazendeiro que se instalou na actual província do Bengo e ocupava uma grande extensão do território controlado pelos guerreiros de Cazuangongo. O Palácio de Maravilla, também conhecido como Forte de Maravilla, tinha 24 quartos, uma igreja, padaria, 10 salas, um terraço, zonas de lazer e de criação de animais, túneis de saída de emergência e grandes armazéns para conservação do café e outros produtos.

Foi através do Palácio (Forte) de Maravilla que a coroa portuguesa implementou o Posto Militar de Cazuangongo, em Junho de 1908, até 20 de Junho de 1922, ano em que passou a ser considerado Posto Administrativo do território.

O Forte de Maravilla possibilitou a ocupação completa da região de Cazuangongo, que, conquistada, deu a possibilidade de estender o poder colonial em todas as regiões dos Dembos.Uma das sedes administrativas foi baptizada com o nome Pango Aluquém, o que prevalece até aos dias de hoje. Pango Aluquém faz parte dos seis municípios da província do Bengo.

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