Especial

Pediatria de Luanda diagnostica oito a nove casos novos por mês

Alexa Sonhi

Jornalista

Edna Varela engravidou pela primeira vez aos 30 anos. Na altura, já estava casada há cinco. O casal estava ansioso para ter o primeiro filho. Em parte porque não aguentavam mais a pressão familiar e dos amigos, situação que, às vezes, originava fortes brigas, a ponto de pensarem em se separar para cada um tentar a vida com outra pessoa.

06/10/2023  Última atualização 11H30
Celebra-se hoje o dia mundial da paralisia cerebral © Fotografia por: João Gomes| Edições Novembro

Depois de tantas tentativas para engravidar, Edna Varela conseguiu. A tão esperada notícia foi motivo de festa em casa do casal. Durante os nove meses de gestação as coisas correram bem. A gravidez foi saudável e, inclusive, Edna trabalhou até ao oitavo mês.

No dia 10 de Outubro de 2014, Edna Varela trouxe ao mundo, na Clínica Multiperfil, o menino Emerson Alexandre, que nasceu com 3.500 gramas de peso. O parto foi normal e ela acabou por receber alta hospitalar no dia seguinte. Tudo correu na normalidade até aos quatro meses do bebé, quando a mãe começou a notar que a criança não tinha equilíbrio no pescoço e, às vezes, chorava muito, sem grandes motivos. Ao pensar ser normal, devido aos conselhos de pessoas próximas, o tempo foi passando.

No final do sexto mês, Edna percebeu que o filho tinha dificuldade para sentar, tal como as demais crianças com a mesma idade. Preocupados, Edna e o esposo levaram o filho para as urgências do Hospital Pediátrico de Luanda, onde, durante algumas semanas, lhe fizeram vários exames físicos e clínicos.

O diagnóstico saiu e ficou provado que Emerson Alexandre tinha paralisia cerebral moderada, acto que lhe provocou paraplegia (condição física na qual a pessoa não consegue movimentar ou sentir as pernas, geralmente causada por uma lesão na medula espinhal) e um dos membros superiores estava a ficar atrofiado.

"Ao receber a notícia, simplesmente começámos a chorar. Não entendemos até hoje, porque isso aconteceu ao bebé, uma criança tão desejada. Tivemos todos os cuidados desde o primeiro mês de gestação”, contou, realçando que ficou, durante três anos, com receio de voltar a engravidar.

Após a notícia, Edna passou a levar o filho à sala de Fisioterapia do Hospital Pediátrico de Luanda. Hoje, recorda, que depois do diagnóstico foi aconselhada a incluir o menino num programa de fisioterapia, terapia da fala e ocupacional, para tentar minimizar os efeitos da paralisia e o conferir mais independência.

"O meu menino que parecia muito inteligente, por conta da paralisia cerebral, estuda apenas a segunda classe. Ele está com déficit de aprendizagem acentuado e isso me entristece muito, mas tenho paciência e muito amor. Ele tem a atenção de todos em casa, inclusive decidi trabalhar por conta própria só para estar mais tempo com ele e lhe levar com regularidade às sessões de terapia”, disse.

Números divulgados pela OMS

Tal como Emerson Alexandre, que no dia 10 deste mês completa nove anos e para andar tem de fazer recursos à cadeira de rodas, muitas crianças ao redor do mundo estão na mesma condição.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 17 milhões de pessoas vivem com paralisia cerebral (PC) e outras 350 milhões estão intimamente ligadas a uma criança ou um adulto com a patologia.

As estatísticas da OMS apontam que duas a cada mil crianças nascidas vivas sofrem de paralisia cerebral e uma em cada quatro crianças com PC não consegue falar, ou andar, assim como uma em cada duas tem deficiência intelectual ou epilepsia.

O Dia Mundial da Paralisia Cerebral (PC) foi instituído pela OMS em 2012, fruto de uma iniciativa do movimento global criado pela Cerebral Palsy Alliance. O objectivo da data é promover a discussão sobre a inclusão e a vivência de pessoas com paralisia cerebral a um alcance global e desmistificar o preconceito, conhecido como capacitismo.

Casos registados no Hospital David Bernardino

Em Angola, o hospital Pediátrico David Bernardino tem assistido crianças oriundas de todas as províncias do país, com doenças graves, sendo uma delas a paralisia cerebral, cujos números indicam um total de 1.500 crianças com diagnóstico positivo.

O chefe dos Serviços de Neuropediatria, do Hospital Pediátrico de Luanda David Bernardino disse que a unidade diagnostica, por mês, oito a nove casos novos suspeitos de paralisia cerebral.

Leite Cruzeiro informou que estes são os casos registados pelo Hospital Pediátrico. "Hoje, é fácil identificar tais casos, pois muitos pediatras conseguem identificar logo crianças com algum sinal de paralisia cerebral e as encaminham, de imediato, às sessões de fisioterapia. Por isso, não temos o controlo de muitas crianças. Assim, apesar dos números serem baixos, é preciso ter noção que não é um reflexo da estatística real”, adiantou, acrescentando que o serviço de Neuropediatria do hospital já funciona há mais de 15 anos.

Definição e causa

O médico Leite Cruzeiro explicou que a Paralisia Cerebral (PC), também conhecida por paralisia infantil, é uma deficiência comum na infância, caracterizada por algumas alterações neurológicas permanentes que afectam o desenvolvimento motor e cognitivo dos menores, incluindo o movimento e a postura do corpo.

O especialista em Neuropediatria disse que estas alterações são decorrentes de uma lesão do cérebro em desenvolvimento e muitas podem ocorrer durante a gestação, no nascimento ou no período neonatal (depois da nascença), o que causa limitações nas actividades quotidianas da pessoa afectada.

A paralisia cerebral, explicou, é mais comum até aos 18 meses, altura em que acontecem as doenças causadas por bactérias, fungos, vírus, que podem lesar o cérebro. Quando a doença  ocorre depois dessa fase, em regra é sempre consequência de acidentes de viação, traumatismo e pré-afogamento.

O neuropediatra explica que uma das principais causas da doença é a hipóxia, que ocorre quando por algum motivo relacionado ao parto, tanto à mãe, quanto ao feto, têm falta de oxigenação no cérebro, o que resulta em lesão do cérebro. "Doenças como meningites e encefalites originam a doença, por afectar o sistema nervoso central”, revelou.

Outras causas, acrescentou, são as anormalidades da placenta ou do cordão umbilical, infecções, diabetes, hipertensão (eclâmpsia), a desnutrição, o uso de drogas e álcool durante a gestação, assim como traumas no momento do parto, hemorragia, hipoglicemia do feto, prematuridade e problemas genéticos.

De acordo com o especialista existe uma grande variação nas formas como a doença se apresenta. "Ela pode ser leve, moderada e em regra, está relacionada à extensão do dano neurológico”, disse, adiantando que as lesões mais extensas do cérebro tendem a causar quadros mais graves. "Os diferentes graus de comprometimento motor e cognitivo podem levar a um leve acometimento com pequenos déficits neurológicos, com grandes restrições da mobilidade, dificuldade de posicionamento e comprometimento cognitivo associado”, realçou.

Em relação às alterações da parte motora, o médico disse que o paciente tem problemas na marcha (paralisia das pernas), hemiplegia (fraqueza em um dos lados do corpo), alterações do tônus muscular (rigidez dos músculos) e distonia (contracção involuntária dos membros).

As alterações cognitivas, continuou, incluem problemas na fala, no comportamento, na interacção social, no raciocínio e em alguns casos os pacientes têm hipopepsia.

Sinais da doença e prevenção

O primeiro sinal de alarme da doença é a falta de desenvolvimento motor da criança, em relação às outras da mesma idade. "Os sinais podem ser a fácil irritabilidade, choros sem causa aparente, ou quando a criança já com dez meses não consegue sentar sem apoio, ou ao atingir um ano de idade não engatinha. Muitas vezes, quando uma criança com dois anos não anda é um forte sinal de uma paralisia cerebral ou outro tipo de transtorno neurológico”.

O neuropediatra Leite Cruzeiro explicou que a paralisia cerebral pode ser prevenível se houver um maior cuidado com o bem-estar da criança, desde o ventre, durante e logo após o parto.

O cumprimento rigoroso do calendário nacional de vacinação e dos cuidados primários de saúde, desde a alimentação, higiene e descanso seguro da criança são as principais formas de prevenção do controlo da paralisia cerebral. "A esperança de vida das pessoas com paralisia cerebral é de 40 anos de vida e, regra geral, morrem por complicações causadas pela deficiência como problemas respiratórios e digestivos”.

Diagnóstico e tratamento

O especialista disse que entre os vários exames feitos para diagnosticar a doença, o mais comum tem sido a Ressonância Magnética, a Tomografia Computorizada, o Electrocefalograma (EEG) e o ultrassom.

Em relação às formas de tratamento, Leite Cruzeiro sublinhou que a terapia para essas pessoas deve ser multidisciplinar, envolvendo fisiatras, ortopedistas, neurologistas, oftalmologistas, pediatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, educadores físicos e nutricionistas.

No campo clínico, o médico disse que aos pacientes com convulsões, administram-se injecções apropriadas para se reduzir a contracção muscular e em alguns casos é feita uma pequena cirurgia para libertar os tendões musculares, de forma a diminuir a dor e ter os membros mais flexíveis.

"Também se usa coletes posturais para melhorar a postura do paciente. Em países mais desenvolvidos já se fala em estímulos eléctricos, terapias com o uso de cavalos e aquáticas, feitas em piscinas”, acentuou.

A reabilitação dos pacientes disse tem como objectivos contemplar o ganho de novas habilidades, minimizar ou prevenir complicações, como deformidades articulares ou ósseas, convulsões, distúrbios respiratórios e digestivos.

O neuropediatra considera importante que a pessoa com paralisia cerebral tenha acompanhamento multidisciplinar, porque ajuda na melhoria e na qualidade de vida, permitindo assim que o mesmo tenha uma vida mais próxima do normal.

Tipos de paralisia cerebral

Existem quatro tipos diferentes de paralisia cerebral, nomeadamente paralisia cerebral espástica, atetóide, atáxica e mista.

A paralisia cerebral espástica representa cerca de 70 a 80 por cento dos casos. E, neste tipo de paralisia, o paciente apresenta tônus muscular elevado e movimentos bruscos e exagerados. Esta paralisia é causada por danos ao córtex motor do cérebro, que controla o movimento voluntário.

Já na paralisia cerebral discinética ou atetóide atinge cerca de 10 por cento das crianças e é caracterizada pelo movimento involuntário da face, tronco e membros. Ela é causada por danos aos gânglios da base do cérebro ou cerebelo, que têm a função de regular a função motora voluntária e o movimento dos olhos. 

A paralisia cerebral atáxica causa problemas de equilíbrio e coordenação. E, representa uma pequena percentagem dos casos. Esta paralisia difere de outros tipos por ser causada por danos ao cerebelo que é a parte do cérebro que controla o equilíbrio e a coordenação.  Os pacientes com paralisia cerebral atáxica frequentemente apresentam tremores e uma redução no tônus muscular.

No que concerne à paralisia atónica ou hipotónica, é uma forma rara e classificada pelo baixo tônus muscular que causa perda de força e firmeza, resultando em músculos frouxos. A instabilidade e a flexibilidade dos músculos causadas pela paralisia cerebral hipotônica podem fazer com que a criança perca etapas de desenvolvimento, como engatinhar, ficar em pé ou andar.

Em relação à paralisia mista, os danos ao cérebro em desenvolvimento não se limitam a um local. A criança desenvolve diferentes tipos de paralisia cerebral causados por várias áreas de lesão cerebral. Este diagnóstico representa menos de 10% de todos os casos de paralisia cerebral.

A taxa de mortalidade e recomendação 

Em relação à taxa de mortalidade, o neuropediatra disse ser muito baixa, porque a morte vai depender da causa e da gravidade da paralisia cerebral.

Por isso, apelo a sociedade a cuidarem melhor das crianças, metendo segurança a nível das estradas, escolas, transportes escolares e, acima de tudo, nas nossas próprias casas, porque muitas vezes os acidentes ocorrem dentro de casa, nas piscinas e tanques de água. 

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