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Recuo da CEDEAO pode ser um passo para a reconciliação com os três Estados

Faustino Henrique

Jornalista

O recuo, anunciado no domingo, pela Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), de levantamento das sanções impostas ao Níger e Mali, representa um gesto que poderá cimentar o caminho para a reconciliação e a consequente retratação dos três países que anunciaram a retirada do bloco regional a 28 de Janeiro, com “efeitos imediatos”.

29/02/2024  Última atualização 06H05
Última Cimeira dos líderes da Comunidade dos Estados da África Ocidental levantou as sanções contra dois dos países suspensos © Fotografia por: DR
A comunicação de 25 de Fevereiro, da CEDEAO, indica que as partes esgotaram o clima de "confrontação” e abrem, agora, espaço para o diálogo e concertação.

O levantamento das sanções contra o Níger foi, nas palavras do presidente da Comissão da CEDEAO, Omar Alieu Touray, "puramente humanitário” e visa aliviar o sofrimento causado por esta situação, mas "as sanções específicas, como as sanções políticas, permanecem em vigor”.

Para entendermos o que se está a passar a nível da CEDEAO, desde o braço de ferro que se tinha instalado, sobretudo com o golpe de Estado de 26 de Julho, no Níger, que culminou com o derrube do Presidente democraticamente eleito, Mohammed Bazoum, vale dizer que a abordagem da CEDEAO ao golpe foi a gota que fez o copo transbordar.

Desde a ameaça de invasão para repor a legalidade democrática, instigada pela Nigéria, cujo Presidente, Ahmed Bola Tinubu, só estava há 60 dias no poder, mas se sentia galvanizado com o histórico de intervenções feitas na Serra Leoa e Libéria, nos anos 90, às inesperadas e pesadas sanções decretadas, a senda de um eventual engajamento construtivo tinha sido encerrada.

No ano passado, a CEDEAO deu a entender que se opunha, em termos absolutos, às alterações da ordem política e constitucional nos Estados-membros, optando pelas medidas que tiveram, exactamente, um efeito contrário, com os três países visados a procurar colocar em marcha contramedidas.

Em Setembro do ano passado, Níger, Mali e Burkina Faso surpreenderam o bloco regional  com a assinatura do chamado Pacto Liptako-Gourma, um instrumento de defesa colectivo, numa espécie de resposta à ameaça de invasão militar contra o Níger. No artigo 6.º do referido pacto de segurança colectiva, consta que "qualquer ataque à soberania e integridade territorial de uma ou mais partes contratantes será considerado uma agressão contra as outras partes e dará origem a um dever de assistência e socorro por parte de todas as partes", um expediente que não difere muito do pacto de defesa no seio da CEDEAO, vigente desde a década de 1970, sobre a não agressão e assistência mútua em caso de agressão.

O jogo de forças, com actores directos e indirectos, deve dar lugar, agora, a gestos que ajudem a apaziguar a todos e levar a CEDEAO a reencontrar-se, falar a uma só voz, evitando interpretações que insinuem uma eventual manipulação estrangeira.

Papel da França

Para algumas vozes, sobretudo no interior dos sete Estados-membros da CEDEAO que possuem união monetária, a ideia de um papel cada vez mais actuante da França no seio da organização deixou de ser uma possibilidade para ser uma realidade. Ficou claro que as pressões, ameaças e sanções decretadas pela CEDEAO, pouco depois do golpe no Níger, tinham, também, como contribuição directa, o papel da França, na medida em que governantes do referido país não se coibiam publicamente de defender o uso da força no Níger, apenas para dar um exemplo.

Kader A. Abderrahim, professor de Ciências Políticas e director do Institut Prospective & Sécurité en Europe (IPSE), em entrevista à TV5 MONDE, explicou que, "sob pressão da França, os africanos e a CEDEAO manifestaram a ameaça de intervenção militar durante uma semana, como uma jogada de póquer. Mas é preciso ter algum espaço de manobra. E nem a França nem a CEDEAO têm, hoje, as cartas certas na mão para pressionar os generais golpistas em Niamey”.

E tais esclarecimentos do estudioso, feitas em Agosto de 2023, mostraram-se assertivas, na medida em que as ameaças faziam parte do jogo de pressão para haver algum recuo, quando, na verdade, devia ocorrer um engajamento construtivo para, como mal menor, se encontrarem datas consentâneas para uma rápida transição.

O tempo, como se acreditava, iria diluir todas as manifestações na direcção de uma pretensa invasão militar e, independentemente do braço de ferro, seria recomendável que, neste jogo de medidas e contramedidas, as partes fossem cautelosas em deixar algum espaço para entendimento, em detrimento de um agudizar de posições.

Daí o facto de o académico e pesquisador especializado no Magreb e no Islamismo ter defendido que, "para romper o impasse, sem perder prestígio, seja na CEDEAO, como na França e, especialmente nos generais golpistas, devemos dar à diplomacia uma oportunidade de continuar o diálogo”.

Não havia dúvidas de que, independentemente do "esticar da corda” dos dois lados, algum espaço de manobra estava, também, acautelado, mas era preciso aparentar algum extremismo para que, no fim de contas, ocorresse a efectivação da velha máxima segundo a qual para "grandes males, grandes remédios”.

O anúncio, no dia 28 de Janeiro, da retirada dos três países da CEDEAO, foi o ponto mais alto, que fez soar os alarmes em toda a extensão do bloco regional, ao ponto de se vislumbrarem fissuras graves na organização, que se pretendia virada para os povos. Foi o apogeu da crise.

Apelo de um co-fundador da CEDEAO

Yakubu Gowon, Chefe de Estado da Nigéria entre 1966 e 1975 e último co-fundador da CEDEAO ainda vivo, tinha feito um forte apelo, no dia 21 de Fevereiro, a favor do levantamento das sanções contra o Mali, o Níger e o Burkina Faso, nas vésperas de uma Cimeira da organização, realizada a 24 de Fevereiro, em Abuja.

O também general na reserva interveio para "salvar” a organização da África Ocidental que está, actualmente, abalada por várias crises políticas desde a saída dos três Estados do Sahel. Yakubu Gowon implorou aos 15 actuais líderes dos países membros que se reconciliem e reconstruam juntos a CEDEAO. Para ele, "a CEDEAO é mais do que uma coligação de Estados”, tendo avisado que  "nem a minha geração, nem as gerações actuais ou futuras compreenderão ou perdoarão a destruição da nossa comunidade”.

A ameaça de "desunião” e a oportunidade que os Chefes de Estado e de Governo tiveram, na cimeira que serviu para debater o futuro da comunidade, a segurança e estabilidade regional, bem como o papel da comunidade internacional no actual contexto geopolítico, foi oportuno o apelo do co-fundador da organização.

Criação da CEDEAO

Criada pelo Tratado de Lagos, no dia 28 de Maio de 1975, a CEDEAO teve como objectivo primário a promoção do comércio, a cooperação e o desenvolvimento na região. É verdade que a retirada anunciada, no dia 28 de Janeiro, dos três países, não tinha sido o primeiro precedente, na medida em que, em 2002, a Mauritânia se tinha retirado da organização regional.

O Tratado da CEDEAO foi revisto em Julho de 1993, de forma a acelerar a integração económica e aumentar a cooperação na esfera política, incluindo o estabelecimento de um Parlamento Oeste-africano, um Conselho Económico e Social e um novo Tribunal para assegurar a execução das decisões da Comunidade, realidade ainda por se efectivar.

Este novo Tratado dá, formalmente, à Comunidade, a responsabilidade de gerir e resolver conflitos na região, mas está longe do principal desiderato, que é o de transformar a CEDEAO numa verdadeira organização virada para os povos, em detrimento da percepção generalizada de que se trata de um clube dos Chefes de Estado e de Governo.

Saída da crise

A crise sem precedentes que a CEDEAO enfrenta com a retirada dos três países é, também, um sintoma da natureza em que se transformaram numerosas organizações regionais que, criadas para servirem os povos, acabam por ser encaradas como instituições das lideranças políticas.

Durante uma reunião do Conselho de Mediação e Segurança da CEDEAO, realizada no dia 22, na capital nigeriana, ficou claro que a saída do bloco por parte do Níger, Burkina Faso e Mali teria repercussões adversas para os seus cidadãos e para a cooperação regional.

Os líderes da África Ocidental alertaram para os desafios adicionais enfrentados pelos esforços para combater o crime transnacional, a imigração ilegal e o terrorismo na região do Sahel, caso esses países decidam, em definitivo, abandonar o bloco regional.

Embora o anúncio tenha sido feito com "efeitos imediatos”, na verdade, o Tratado de Lagos, que cria a CEDEAO, estipula que os efeitos de abandono por parte de qualquer Estado-membro se efectiva apenas um ano depois da declaração.

Assim, de Janeiro de 2024 a Janeiro de 2025 resta quase um ano, no meio do qual as lideranças do bloco regional e dos três países poderão aproveitar para medir os custos e benefícios dos passos que pretendem dar. Uma CEDEAO unificada, com todos os Estados-membros, a caminho da materialização da letra e espírito do Tratado, tal como revisto e aprovado em 1993, que, entre outros, visa acelerar o processo de integração económica e política, prevalece como uma aspiração comum.

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