Especial

Um 1.º de Maio ainda reprimido em 1975

Rui Ramos

Jornalista

Naquele Primeiro de Maio de 1975, dezenas de milhares de pessoas, entre as quais nos encontrávamos, desde cedo, convergiram para o Largo no início da estrada de Catete, mobilizadas pela UNTA e pela extrema-esquerda do MPLA

01/05/2024  Última atualização 09H16
© Fotografia por: DR

Uma semana depois do 25 de Abril de 1974, enquanto em Lisboa centenas de milhares de pessoas saíam à rua pela primeira vez depois de muitas décadas de regime fascista, em Luanda, esse dia era calmo, segundo reporta o jornal «A província de Angola» da época: na Mutamba havia a calma habitual de um dia feriado e nos bairros africanos a vida decorria normalmente, sem os mínimos sinais próprios de uma data comemorada mundialmente. Até esse ano a data era dedicada a São José Carpinteiro e não eram permitidas manifestações.

O Lobito, ao contrário, reporta o jornal, acordou com muitos trabalhadores nas ruas, sobretudo da comunidade branca, que se manifestaram, mobilizados pelos sindicatos portugueses SNECIPA – Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Província de Angola e Sindicato dos Bancários, que tinham nessa altura alguma acção sindical, quando a UNTA-União Nacional dos Trabalhadores Angolanos ainda não tinha implantação no interior de Angola. Centenas de milhares de trabalhadores negros não eram sindicalizados e nas empresas raramente passavam de serventes e auxiliares.

Mas foi por intermédio do SNECIPA que os trabalhadores negros foram mobilizados para a luta laboral no Lobito e no Huambo. Em Setembro de 1974 houve greves nas Câmaras Municipais do Huambo e do Lobito, por melhores condições laborais. Os trabalhadores africanos começavam a ganhar consciência das desigualdades gritantes com os seus colegas brancos.

Os trabalhadores africanos do Porto do Lobito também se ergueram numa greve contra as condições laborais, em Setembro de 1974, com vivas a Neto, e, num repente, o movimento grevista alastra para Luanda.

Só um ano mais tarde, Luanda, onde se instalara uma verdadeira turbulência política, se prepara para um grande acto de massas trabalhadoras, que começava a inverter o seu foco da exploração colonial para o novo Governo, onde tinham assento os movimentos de libertação nacional.

Naquele Primeiro de Maio de 1975, dezenas de milhares de pessoas, entre as quais nos encontrávamos, desde cedo, convergiram para o Largo no início da estrada de Catete, mobilizadas pela UNTA e pela extrema-esquerda do MPLA, organizada nos Comités Henda e nos Comités Amílcar Cabral (CAC).

Mas já o ELNA, braço armado da FNLA, lá se encontrava, cercando todo o vasto largo e não permitindo a aproximação da população ao local do comício. Alegava a FNLA que o evento era inspirado pelo «Poder Popular» e pelos «anarquistas do MPLA».

A confusão foi muito grande quando começaram a soar os primeiros tiros e a debandada foi automática, o pânico instalou-se. Não houve, pois, comemoração do 1.º de Maio em Luanda, em 1975, o primeiro em situação de alguma liberdade mas também de repressão e de confrontos militares.

Logo a seguir ao Primeiro de Maio fracassado, as forças políticas mais activas do MPLA reuniram-se com a UNTA para deliberar se se realizaria um novo evento de massas ou não, havendo discussões acaloradas durante vários dias, até que – ao contrário da minha posição na altura - se chegou a um consenso: marcar para o dia 22 de Maio, também uma quinta-feira, uma nova manifestação dos trabalhadores luandenses no mesmo local.

Estava em causa, segundo os comités do MPLA, a luta pela democracia popular contra o fascismo, identificado com a FNLA.

No novo dia, não estavam tantas pessoas no local, até por temor de confrontos, mas os efectivos do ELNA não se fizeram presentes para dissuadirem os trabalhadores luandenses, que se tinham tornado no inimigo principal da FNLA.

Por isso, nós decidimos chamar ao local, desde esse mês, Largo Primeiro de Maio, reassumido pela UNTA no 1.º de Maio seguinte, em 1976, nome reconhecido até hoje, e mudámos o nome da Escola Comercial Vicente Ferreira, adjacente ao largo, para Escola Primeiro de Maio.

O Largo, precise-se, junta as vias para a Alameda, para a Sagrada Família, para o Aeroporto e para a Estrada de Catete.

 
Politização da sociedade

O Governo de Transição já estava instalado desde 31 de Janeiro com as 4 partes, FNLA, MPLA, UNITA e portugueses. A politização da sociedade estava ao rubro. Os comités do MPLA vinham fazendo um trabalho intenso de agitação, mobilização e organização. A ideia da Independência Completa e Imediata imperava.

A miséria nos «musseques» era extrema, as pessoas viviam em condições indignas, a contradição entre a cidade do asfalto, habitada sobretudo por brancos, e os bairros habitados por negros era enorme.

Eu coordenava a acção política de mobilização dos trabalhadores no Porto de Luanda, Boavista, Cazenga e Viana.

Nas fábricas de Viana, do Cazenga, da Boavista, as diferenças laborais entre trabalhadores brancos e trabalhadores negros era enorme e gritante, a exploração dos africanos era extrema, os salários desiguais, em geral os negros quase nunca passavam de auxiliares, serventes, ajudantes de brancos que, muitas vezes, eram menos competentes do que eles.

O 25 de Abril apanha uma tempestade social e económica muito contida, não havia qualquer tipo de liberdade ou direitos individuais. Forças políticas formam-se então, depois do 25 de Abril de 1974, e nas organizações nacionalistas progressistas pontificam jovens que vão desenvolver uma actividade de apoio ao MPLA que congregará a sociedade africana como um todo. As estruturas centrais dos movimentos de libertação começam a chegar a Luanda, a partir dos fins de 1974, com os acordos já assinados com Portugal e, em Luanda, pelo menos o MPLA encontra um ambiente político favorável à sua implantação.

Dentre os grupos mais activos sobressaem os Comités Henda e os Comités Amilcar Cabral (CAC), vindos sobretudo da Universidade de Luanda e dos liceus e escolas secundárias. Os CAC levam as palavras de ordem do «MPLA» a todos os cantos da cidade de Luanda e também a Benguela e ao Huambo, onde Fadário Muteka organizra as Frentes de Kimbo, primeiro embrião de autarquias.

Os comités apoiam-se em órgãos de comunicação escritos em stencil e policopiados aos milhares que têm muita aceitação entre a população negra. Os CAC produziam um órgão teórico, «Revolução Popular», e outro órgão «para as massas», «Libertação Nacional», distribuído nas principais fábricas das zonas operárias de Luanda. Os Comités Henda, por sua vez, produziam o jornal «4 de Fevereiro» e instalaram-se na garagem do DIP central do MPLA, na Vila Alice, lançando a primeira agência de notícias da Angola prestes a ser independente.

A UNTA-União Nacional dos Trabalhadores Angolanos, fundada no Congo-Kinshasa no início de 1960, fazia a sua primeira aparição mas ainda sem implantação nos meios operários, dirigida por Pascoal Luvualu. Foi Aristides Van Dunem, o dirigente executivo, que conseguiu que a central sindical, tutelada pelo MPLA, apoiasse o dinamismo dos jovens militantes da «extrema esquerda», com os quais se aliou.

Mas foi sobretudo Agostinho Mendes de Carvalho quem se deslocava às empresas e fábricas para mobilizar os trabalhadores africanos para a Independência e para a luta pela igualdade salarial entre brancos e negros. Acompanhei-o muitas vezes e eu me recordo de que conseguíamos não raro um caixote para ele ficar numa posição mais elevada em relação ao ajuntamento dos trabalhadores, para assim ficar mais visível e audível. Ele era um grande mobilizador e fizemos uma boa equipa.

Janeiro de 1975 começa com os acordos de Alvor, com a instalação do Governo de Transição, a primeira vez que FNLA, MPLA e UNITA chegam ao poder em Angola, mas também é desencadeada a I Semana do Poder Popular, pelos Comités Amílcar Cabral do MPLA, que culmina num sábado à tarde com uma Grande Assembleia Popular de Luanda no Campo de S. Paulo - na qual nos incorporámos - com cerca de 40 mil pessoas transportando instrumentos de trabalho. Como havia o risco de o acto ser atacado por forças do ELNA/FNLA, pedimos protecção militar ao COL do MPLA, que enviou «in extremis» alguns jovens militares das recém-formadas FAPLA para as extremidades do campo.

Neste contexto de grande radicalização da vida política, com greves numa série de fábricas, a «extrema esquerda» do MPLA, que tinha assento no CC, organiza o acto de massas do 1.º de Maio, quinta-feira, no Largo que ficou com este nome.

Do caderno reivindicativo aprovado no comício do dia 22 de Maio, consta a destituição do alto-comissário português Leonel Cardoso, acusado de favorecer a FNLA, o protesto contra os massacres em Luanda, Huambo, Tomboco, Ambrizete, Sazaire, Mbanza Kongo, Luena, pelos "lacaios internos do imperialismo" (designação para a FNLA de Holden Roberto). É exigido o encerramento da "imprensa fascista e reaccionária manipuladora da opinião pública”, um dos pontos reivindica o salário mínimo nacional, as 40 horas de trabalho semanal em 5 dias, contra os despedimentos indiscriminadps, a fuga de técnicos e a inflação. O comunicado termina com a consigna "Os trabalhadores só estarão com o Governo de Transição se este estiver com os trabalhadores".

Eram os primeiros passos para a dignificação dos trabalhadores angolanos, vítimas de discriminação nos locais de trabalho, e para a sua consciencialização contribuiu o trabalho político diário de jovens militantes que se ligaram às "massas populares" para apoiarem as suas reivindicações, numa sociedade que apenas estava a sair de uma época em que o poder estrangeiro ditatorial dominava em absoluto. Agora havia um Governo que incluía os movimentos de libertação com projectos de Independência diferentes e por vezes antagónicos o que, além de legítima expectativa, criava também desconfianças mútuas e muita intolerância e sectarismo.

A fuga dos técnicos europeus estava na ordem do dia, o comércio externo era dominado por quem estava a ir embora do país nascente, a matéria-prima escasseava, muitas fábricas faziam impossíveis para manterem a produção. Em muitos locais como na IFA, Curtumes Cazenga, Mabor, Tudor, Fabal, Textang, Sadil, os operários tentaram controlar a gestão esvaziada pela fuga dos anteriores gestores. Uma equipa dirigida por Rui Cristina e João Pessoa foi nomeada para ajudarem os operários a organizar-se com eficácia para não pararem a produção, um esforço ingente de jovens que dedicavam todo o seu esforço à causa nacionalista.

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