Sociedade

Violência contra a criança camuflada como repreensão

Yara Manuel |

Jornalista

Nos últimos dois meses, o Instituto Nacional da Criança(INAC) registou 269 denúncias de agressão física contra menores. Um número alto que demonstra a violência que alguns menores passam dentro de casa.

06/03/2024  Última atualização 07H42
Responsável da instituição que protege os direitos dos menores diz que a agressão física não é um método de educação © Fotografia por: Alberto Pedro | Edições Novembro

Algumas crianças são vítimas de violência física, desde tenra idade, muitas vezes são camufladas como uma forma de repreensão. Os pais ou encarregados de educação apoiam-se em teorias sobre a forma de educar uma criança em que a "palmatória" se torna uma referência de disciplina no meio familiar. Actualmente, a violência infantil tem sido muito debatida em diferentes franjas da sociedade, pelo desconhecimento do que é violência no sentido amplo da palavra.

Para Paulo Kalesi, director do Instituto Nacional da Criança (INAC), não há violência leve e violência grave, "pois toda a acção intencional ou não que provoca danos é violência".

"As agressões de grande repercussão que vemos na media, contra crianças, começam sempre por um "coco", um puxão de orelha e culminam em fortes agressões", disse.

Todas as semanas lemos, nos jornais e escutamos nas rádios actos bárbaros contra crianças que são vítimas de pais agressivos que, algumas vezes, por motivos banais, têm a violência como a solução para educar os filhos. Casos de maus tratos, trabalho infantil, acusação de feitiçaria, entre outros, trazem à tona a realidade social de muitas famílias.

 
História de José

José, um menino de 10 anos, vivia com o pai e a madrasta, no município de Viana, em Luanda. Era o mais velho de dois irmãos, passava o dia a limpar a casa, antes e depois da escola. O pai, ausente por causa do trabalho, deixava as crianças sob tutela da madrasta. José era maltratado pela "mãe", como a tratava carinhosamente, sofria constantes ameaças e era espancado "por tudo e por nada".

O menino, mal-amanhado, ia para a escola com feridas expostas e quando era questionado dizia que tinha caído. A vizinhança ouvia os choros mas não compreendia o que se passava, até que, no ano passado, o menino não aguentou e contou a uma amiga o que estava realmente a acontecer.

A amiga, por sua vez, contou à sua mãe, que denunciou o caso ao INAC e a madrasta foi levada para prestar declarações no Comando Municipal da Polícia Nacional. Hoje, José encontra-se alojado na casa de parentes mas ainda sofre com as lembranças do que viveu na casa do pai.

Para Paulo Kalesi, este caso não é diferente do que acontece em vários pontos do país. "São situações que provocam danos, traumas e sentimentos de revolta e deixam marcas na vida da criança", lamentou.

 
Aumento do nível de frustração

Para a psicóloga clínica Domingas Tabu, o crescente agravamento do custo de vida no país leva ao aumento do nível de frustração dos pais. Com isso, disse, tornam-se intolerantes, com o sentimento de inutilidade muito elevado, o que leva a responderem com agressão a todo o comportamento da criança.

"O sentimento de impotência de não se sentir capaz de prover alimentos e dar o básico torna este pai e mãe em pessoa agressiva a todo acto da criança, perdendo a capacidade de olhar para o filho e compreender o que realmente ela quer", salientou.

 
Pessoas emocionalmente doentes

Para a socióloga Fátima Matono, pais que espancam brutalmente os filhos são pessoas emocionalmente doentes e, na sua maioria, também cresceram no seio de muita agressão familiar e acabaram por tornar esse fenómeno como normal.  "Por conseguinte, os filhos tendem a se tornar futuros agressores, porque é essa a linguagem que vivenciam durante a formação da sua personalidade", alertou.

A socióloga sublinhou, contudo, que a agressão é sempre um fenómeno negativo. "Existem vários meios com os quais os pais podem se comunicar com os filhos e, definitivamente, a agressão está excluída”, frisou.

 
Consequências

Fátima Matano apontou várias as consequências da agressão familiar, como a falta de atenção nas crianças, que acaba por ter problemas no processo de ensino e aprendizagem, a violência repetida, por meio daquilo que vê os pais a fazerem. Além disso, acrescentou, o menor pode tornar-se agressiva, até com outras crianças, e recorrer ao uso de álcool ou drogas por sentir que, neles, existe alguma "luz" ou "esperança " para fugir da realidade.

"Muitos casos de depressão ou que culminam em suicídio em adolescentes têm alguma ligação com alguma agressão física ou emocional", concluiu.

A psicóloga clínica Domingas Tabu reforça a ideia de que uma criança vítima de violência constante vai reproduzir aquilo que viveu e pode se tornar um adulto com comportamento desviante, propenso a cometer delitos que podem custar a sua liberdade ou a própria vida.


Acções do INAC

Segundo Paulo Kalesi, o INAC realiza acções de sensibilização das famílias que usam a violência como forma de repreensão. "Os pais devem conhecer melhor os filhos. A agressão física não é um método de educação. Cada criança é uma criança, com o seu carácter e atitude.  Não são as crianças que devem adaptar-se à educação dos pais. São os pais que devem adaptar-se à realidade de cada criança. Se percebermos isso,  teremos uma sociedade melhor", sublinhou.

O INAC direcciona alguns pais para especialistas que ajudam a lidar com crianças hiperactivas ou com alguns transtornos de personalidade. "Muitas crianças autistas ou com o coeficiente de inteligência acima da média têm comportamentos diferentes. Para alguns pais, essas são atitudes desviantes que  procuram mudar por meio de palmatórias e castigos severos. Daí surgirem casos de agressão física que acabam em ferimentos, queimaduras e, nas situações mais graves, em morte", lamentou.

A instituição promove campanhas de sensibilização e envia para os tribunais os casos graves. Para o director do INAC, todos devem ser responsabilizados pelos actos ilícitos contra a criança. Porém,"muitas vezes deve se fazer um acompanhamento psicológico ao agressor para mudar a sua mentalidade, pois muitos repetem o acto mesmo depois de cumprirem a pena", lamentou.

Para Paulo Kalesi, a violência não deve ser tolerada em nenhuma circunstância pois, "hoje deu um puxão na orelha, depois uma chapada e amanhã vai queimar o braço do menor ou até, o mais grave, matar".

Para proteger a criança contra a violência, o INAC dispõe de uma linha telefónica SOS-Criança, com o número 15015, para a qual as pessoas podem ligar para denunciar qualquer tipo de violência contra os menores.

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