Opinião

A voz das universidades que falam

Manuel Rui

Escritor

1936. Salão Nobre da Universidade de Salamanca. Uma conferência com a presença da esposa do ditador general Francisco Franco. Estudantes, professores e os falangistas – fascistas espanhóis.

02/05/2024  Última atualização 14H35

O Orador, Maldonado, bradou um ataque contra a Catalunha e o País Basco, "o fascismo redentor da Espanha saberá exterminá-los.”

Os fascistas já haviam assassinado o poeta Frederico Garcia Lorca. Quando o general Astray e outros falangistas gritaram "Viva a morte abaixo a inteligência”, o reitor, Dom Miguel de Unamuno, bradou: "Este é o templo da sabedoria e eu o seu sacerdote.” A universidade falava. Unamuno mereceu prisão domiciliária. Os falangistas vestiam camisa azul e esticavam o braço direito.

Em Maio de 1968, na Universidade de Nanterre começou um movimento estudantil contra a velha ordem. Nascia um movimento que se transformou num rastilho de contestação mundial contra a velha ordem.

 O Maio de 1968 converteu-se num movimento político em França que, marcado por greves gerais e ocupações estudantis, tornou-se ícone de uma época onde a renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura jovem.

A ressaca da guerra da Argélia com "retornados” de extrema direita que se haviam batido contra a independência e a contestação sobre De Gaulle, o então presidente francês e ainda o Vietname invadido.

O líder principal foi Daniel Cohn-Bendit. O movimento reivindicava um ensino melhor, havia anarquistas e marxistas, contestavam as casas de banho separadas, reivindicavam uma sexualidade sem tabus e queriam destruir a "velha ordem” simbolizada pelo presidente De Gaulle, herói nacional depois do desembarque pensado por Churchill, o marinheiro dos charutos.

Espalhou-se para os trabalhadores que invadiram e ocuparam seus locais de trabalho e uma greve que mobilizou dez milhões de trabalhadores franceses.

Este movimento teve reflexos no cinema, na música (por exemplo Caetano Veloso em "É proibido proibir”), na literatura, nos jogos eletrónicos e na televisão.

Paris foi o epicentro para o global de Pequim a São Paulo, de Paris a Dakar, de Praga à cidade do México e de Córdoba a Berlim.

1968 é o ano de Angela Davis e o ano do assassinato de Martin Luther King.A Primavera de Praga também é reflexo do Maio Francês.

Em Portugal, na minha universidade, em Coimbra, o Presidente da República, um fantoche corta-fitas, inaugurava o novo edifício da  faculdade de ciências quando o estudante e líder associativo Alberto Martins, de megafone em punho, fez um discurso antifascista e, depois, a malta começou a gritar, palhaço, palhaço, palhaço.

Estava aberta a luta contra o salazarismo. Combates de rua contra a polícia. Eles com balas de borracha e sprays e nós a arrancar com ferros desmonta  as pedras da calçada para arremesso.

Um pormenor...Falei em minha universidade porque tinha uma preferência pelos romances de Gorki, principalmente "A Mãe e A Minha Universidade”. Mais tarde, quando soube que Gorki trabalhava para a bófia e meteu vários colegas na cadeia e deportados para a Sibéria, sofri um pesadelo imenso. A vida é assim.

Agora. Na América. Estudantes ocuparam prédio da Universidade da Columbia em protestos pró-Palestina. "Lembrei-me da cantiga: "a alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo.” E eu estou a dar uma de palhaço. Porque o circo está mesmo a pegar fogo por causa das universidades que falam. Pelo menos 39 universidades têm acampamentos.

Mais de 800 prisões, incluindo a de um candidato à Presidência e muitas suspensões, barricadas com tudo o que é possível porque, na terra da democracia e do sonho americano, a polícia agride os estudantes barricados, enquanto um presidente democrata e a União Europeia não levantam a voz contra o genocídio que Israel comete contra crianças, tirando-lhe a água e a comida.

As universidades que falam defendem a Palestina, enquanto o ocidente "civilizado” manda armamento sofisticado para Israel.

Ainda bem que sou de uma universidade que falou e deu início à queda do fascismo em Portugal e as óbvias decorrências até ao 25 de Abril.

O ocidente cristão está movendo uma verdadeira cruzada contra o Islão. O mundo tem dois lados. Eles são os civilizados e os outros são terroristas. E até já há um vocabulário próprio que comentadores doutorados em guerra aparecem todos os dias na televisão a explicar como se faz um drone, como é este míssil e como é outro e aqueloutro como se falassem de comida, como a feijoada da mãe da celebridade do futebol que eu também admiro.

Honra-me a minha universidade que falou. A minha vénia e solidariedade com os estudantes americanos que se manifestam, que se barricam com tudo o que for possível para não serem incriminados por protestarem contra os crimes. A que ponto chegou a humanidade. É crime denunciar genocídios.

O meu abraço às universidades que falam. E a minha tristeza pelas universidades que não falam e apodrecem no silêncio de quem quer um diploma nem que seja comprado…

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