O Cacimbo, iniciado, oficialmente, ontem, causou, uma vez mais, aplausos, mas, igualmente, receios em grupos e subgrupos, de várias espécies consoante gostos e necessidades, em qualquer dos casos, sublinhe-se, acentuados nas últimas décadas.
Quando estive no Huambo por mor do Centro Cultural, todas as noites, na suite do hotel aparecia gente para tertúlia. Eram conversas sobre literatura, política, governança local, a escassez de bens de primeira necessidade e nunca faltava, de forma misteriosa, como se tivéssemos medo uns dos outros, sim, a conversa acabava no Tala.
A guerra na Faixa de Gaza, que já custou a vida de cerca de 1500 israelitas e 34 mil palestinianos, vai ser o principal teste para a credibilidade e imagem do Tribunal Penal Internacional (TPI), percebido em muitas latitudes como uma instância judicial focada em líderes e políticos de países que não gozam do apoio do Ocidente.
Sabe-se que, com 124 membros permanentes, o TPI pode processar indivíduos por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e agressão, tendo se tornado comum a abertura de investigação por casos que envolvam aqueles quesitos e, nalgumas circunstâncias, a emissão do mandado de prisão internacional, como sucedeu com alguns Chefes de Estado. Contrariamente à ideia absurda nos seus pressupostos, segundo a qual o TPI actua apenas lá onde chega a sua jurisdição, como se à parte disto os outros lugares estivessem livres de "acolher” crimes de guerra contra a humanidade, genocídio e agressão, na verdade, esta assumpção é claramente falsa.
E os territórios palestinianos da Cisjordânia e Faixa de Gaza, depois da subscrição do Tratado de Roma, que criou o TPI, por parte da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP), em 2015, os dois espaços, estão dentro da completa jurisdição do TPI. Nesta fase, uma eventual investigação do TPI seria independente e separada do caso de genocídio iniciado contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ), também com sede em Haia, na medida em que uma entidade judicial trata de litígios entre Estados e a outra lida com a responsabilidade penal individual.
Na verdade, sobre a Faixa de Gaza, o TPI já vai tarde porque desde a última refrega de grande dimensão ocorrida entre o Hamas e Israel, em 2014, que tinha prometido investigar e "dizer alguma coisa”, entenda-se, responsabilizar os líderes militares israelitas e dos grupos Hamas, Jihad Islâmica, entre outros eventualmente com responsabilidades criminais.
Em Novembro de 2023, Karim Ahmed Khan, procurador-chefe do TPI tinha advertiu que estava a investigar a situação em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, incluindo acções relacionadas com a guerra Israel-Hamas, que começou a 7 de Outubro.
Mais de seis meses depois e atendendo aos resultados da carnificina, um eventual silêncio daquela instância judicial comparativamente às outras situações similares que sucederam em outras latitudes, desde os Balcãs, África e, recentemente, com o Presidente russo, vai abrir um precedente perigoso, dando razão àqueles que insinuam que o TPI foi criado apenas para ter como foco algumas lideranças e deixar outras impunes.
Hoje, o que se passa com a população palestiniana, quer na Faixa de Gaza, como nos vários campos de refugiados da Cisjordânia, se não forem casos susceptíveis de se lhes aplicar os pontos, artigos e alíneas do Tratado de Roma, de nada servirá ir atrás de outros líderes. O mesmo se aplica para as matanças do Hamas no dia 7 de Outubro.
É expectável que o TPI, inclusive para a preservação do que ainda lhe resta como instituição credível, séria e comprometida com o Tratado de Roma, para o fim da impunidade e barbárie neste século, responsabilize os líderes dos dois lados. Não se pode aceitar que o TPI tenha tanta "pressa e vontade” de "perseguir as lideranças africanas” e deixar impunes pessoas como Benjamin Netanyahu, Yoav Gallant, ministro da Defesa, o tenente-general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (IDF, sigla em inglês), e do lado do Hamas, Mohammed Deif, comandante militar das brigadas Qassam, o braço armado do Hamas, o líder político em Gaza, Yahya Sinwar, apenas para mencionar estes. Espera-se, esta semana, um eventual pronunciamento do procurador-chefe do TPI, numa altura em que as autoridades israelitas se mostram preocupadas e olham para os seus principais parceiros para um possível bloqueio às iniciativas de Karim Ahmed Khan. Era só o que faltava e com toda a falta de vergonha, sobretudo, quando se pressiona para os outros casos.
Pretende-se que as potências ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça, curiosa e ironicamente países que não subscreveram o Tratado de Roma e que muito fazem para que os outros o adoptem, para bloquear uma iniciativa que serve o Direito Internacional e cuja inobservância apenas reforça a vergonhosa realidade de que algumas personalidades estão cobertas de impunidade.
E para se ter uma ideia de inaceitável defesa da impunidade atente-se para o que o antigo embaixador americano em Israel, David Friedman, escreveu, há dias, na rede social X, dizendo que o ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou que o TPI fosse sancionado "se indiciasse os líderes israelitas, mas Biden rescindiu a ordem. É hora de Biden restaurar as ameaças de sanções antes que o TPI se torne um tribunal canguru”.
Com que moral, por exemplo, se arrogam os Estados Unidos de exigir que o mandado de prisão contra Vladimir Putin se efective, quando poderão, eventualmente, se atrever a "sancionar o TPI” por causa de uma possível intimação dos principais rostos do chamado "gabinete de guerra” do actual Governo de Israel?
Até onde vai Karim Ahmed Khan, o procurador-chefe do TPI, para salvar a credibilidade, imagem e bom nome que se espera que a instância penal internacional possa, ainda, preservar ou vai acabar por sucumbir às pressões das potências ocidentais, que não se coíbem de defender, claramente, double standard (dois pesos e duas medidas) como premissa elementar das suas diplomacias? Esperemos para ver se o TPI, primeiro, vai "dizer alguma coisa” e, em segundo lugar, vai passar ao teste à credibilidade e imagem.
* Jornalista
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