O Cacimbo, iniciado, oficialmente, ontem, causou, uma vez mais, aplausos, mas, igualmente, receios em grupos e subgrupos, de várias espécies consoante gostos e necessidades, em qualquer dos casos, sublinhe-se, acentuados nas últimas décadas.
Quando estive no Huambo por mor do Centro Cultural, todas as noites, na suite do hotel aparecia gente para tertúlia. Eram conversas sobre literatura, política, governança local, a escassez de bens de primeira necessidade e nunca faltava, de forma misteriosa, como se tivéssemos medo uns dos outros, sim, a conversa acabava no Tala.
Há nesta altura um grande sururu em Portugal, “através” de umas declarações do Presidente da lusitana República, Marcelo Rebelo de Sousa, que se lembrou de afirmar, 50 anos depois do 25 de Abril, que o referido país, além de pedir desculpas às suas antigas colónias africanas, deve igualmente pensar em acções de “reparação histórica”. Perdoem-me os leitores este tom inicial, mas tenho dificuldades em comentar a maioria das reacções às declarações do “ti Celito” sem recorrer ao humor caluanda. Apetece-me convocar o meu alter ego – Jota Malanza – para o efeito.
Contudo, contenho-me. Sem perder tempo a comentar – por previsível - a reacção da fascista agremiação que atende pelo nome de Chega, que só faltou ameaçar o Chefe de Estado português de excomunhão, começo por confessar a minha profunda estupefação com as reacções de alguns democratas e até progressistas portugueses, alguns deles meus amigos pessoais, os quais, para dizer o mínimo, misturaram uma série de coisas que não faz qualquer sentido misturar.
Talvez – desconfio – algumas dessas reacções epidérmicas se devam às circunstâncias e ao tom usado por Marcelo Rebelo de Sousa para falar de um tema tão delicado e, em particular, ao facto de uma parte dos portugueses estar agastada com o tom falastrão do seu Presidente. Mas só isso não justifica a reacção da maior parte do público.
Vou dizê-lo: pela parte que me cabe, também desconfio que as declarações em causa foram, pelo menos em parte, uma estratégia do Chefe de Estado lusitano para desviar as atenções do seu papel decisivo do golpe de Estado judicial que derrubou o Governo de António Costa, assim como do caso das crianças luso-brasileiras atendidas pelo Serviço Nacional de Saúde português por causa de uma doença rara, o que, ao que parece, só foi possível graças à intervenção de um dos filhos presidenciais (ou do próprio MRS?). Isso, porém, não explica o conteúdo da maioria das reacções de numerosos democratas e progressistas portugueses ao assunto suscitado pelo respectivo Presidente.
O que, com toda a empatia, julgo indiscutível é que este episódio veio demonstrar que temas como a colonização, as responsabilidades históricas pelo comércio transatlântico de escravos e o racismo continuam muito mal resolvidos pela sociedade portuguesa.
Por exemplo, lembrar que a escravatura existiu historicamente em várias sociedades, que outros países – além de Portugal – participaram no comércio transatlântico de escravos, que, além do comércio através do Atlântico, os africanos também foram comerciados pelos árabes para o hoje Médio Oriente ou que há várias formas de racismo, além do racismo anti-negro – tudo isso reflecte uma atitude defensiva, cujo propósito é, consciente ou inconscientemente, desculpabilizar o papel histórico de Portugal naqueles processos.
Desde logo, é líquido que, em todos esses processos e em outros similares, cada um tem de assumir as suas responsabilidades históricas. O facto de outros cometerem os mesmos crimes não atenua nem justifica os crimes de cada um. No caso de Portugal, lembre-se que esse país foi uma das potências dominantes – se não a principal, pelo menos durante um certo período – na chamada era dos descobrimentos, pelo que, concomitantemente, foi também um dos principais responsáveis históricos por todos os factos e acontecimentos ocorridos durante a referida época.
Os números disponíveis confirmam, por exemplo, que Portugal foi o principal e maior responsável pelo comércio transatlântico de escravos. Está em todos os manuais sérios e actualizados. De igual modo, o Império colonial português foi o mais longo de toda a História; as suas antigas colónias em África só se tornaram países independentes há menos de 50 anos. Como sacudir, pois, a água do capote? A assumpção pelos estados das suas responsabilidades históricas e institucionais é um princípio basilar do direito público internacional; é ridícula, pois, a alegação de algumas vozes portuguesas de que o Estado actual não tem qualquer responsabilidade pelos factos acima referidos.
Outra confusão grosseira é pensar em indemnizações financeiras quando se fala em "reparação histórica”. O agrónomo e intelectual cívico angolano Fernando Pacheco abriu uma possibilidade que todos, africanos e portugueses, deveríamos encarar. Disse ele ao jornal português Observador: - "O mais importante não é pensar em dinheiro, mas em acções (...) como a atribuição de bolsas de estudo (...), apoio ao sistema de ensino em geral ou apoio à investigação (...). A ajuda que seria de fornecer aos nossos países deveria ser canalizada não apenas para instituições públicas, mas também para instituições da sociedade civil que possam, de algum modo, melhorar o desempenho e a cultura democrática dos nossos países”.
Por que não começar a pensar nisso?
* Jornalista e escritor
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