Especial

4 de Fevereiro de 1961: data da fundação de uma nova era

Rui Ramos

Jornalista

Celebro a data em que os africanos foram os sujeitos e protagonistas da sua História. Honro a data em que patriotas ousaram romper as algemas e os grilhões do colonialismo, da opressão, da escravidão e do trabalho forçado. Celebro o acto pioneiro da soberania nacional

04/02/2024  Última atualização 07H54
© Fotografia por: DR

«Ivwenu, ivwenu, jinjangu pe ku maku ni jimbangala we, anangola, twala boba, etu twondo vutuka!». Oiçam, filhos de Angola, com catanas nas mãos estamos aqui e voltaremos!

A manhã quente de sábado nasceu diferente nos rostos de brancos e de negros em Luanda. Tinha acontecido qualquer coisa, «misteriosa», ali mesmo, em Luanda, na capital dividida entre bairros asfaltados de brancos e bairros pobres de negros. Eu tinha 15 anos e vivia na fronteira do Bairro Operário com os meus pais e a minha irmã. Viemos para a rua, onde grupos de pessoas brancas se reuniam e falavam muito alto, nervosas.

Frases como «Os pretos mataram polícias lá para baixo nas barrocas», «Estamos indefesos, a metrópole não nos manda soldados», «Temos de resolver isto por nós próprios”, «Foi lá para baixo, nas barrocas!», eu ouvia nas faces e gestos inquietos dos pequenos colonos que viam a sua segurança de repente ser posta em causa por «pretos».

«São pretos de Luanda e de Malanje, os bailundos não nos faziam isto», reconfortavam-se. «Ingratos, a gente alimenta-os e eles mordem-nos as pernas, cães!». Outros respondiam: «Isto não é coisa dos nossos pretos, estes vieram do Congo!»

Nesse dia não houve aulas, a sociedade branca estava inquieta, «os pretos atacaram polícias e houve mortos», falava-se nos numerosos grupos de colonos. Mas a informação era dispersa, os boatos circulavam por ruas e bairros, aumentados geometricamente, não havia ainda redes sociais e muito menos comunicação social livre. A grande imprensa era «A província de Angola», de manhã, e o «Diário de Luanda», à tarde, a rádio era a Emissora Oficial de Angola e todos  os conteúdos direccionavam-se, a partir de alguns dias depois, sem excepção, para os «ataques de terroristas», aguardando as ordens do Governo Geral, baixadas pelo CITA-Centro de Informação e Turismo de Angola. Fui com o meu pai, a pé, ao limite das barrocas, no Miramar, lá ao fundo era a estação ferroviária do Bungo e mais adiante a Casa da reclusão que, diziam, tinha sido atacada. Centenas largas de brancos reuniam-se em grupos numerosos no cimo das barrocas e olhavam para baixo, muitos apontavam «foi ali, queriam libertar os terroristas!».

No meio da multidão alguém atirou: «Se a metrópole não nos protege nós vamos proteger-nos, não precisamos da metrópole para nada».

Não se viam pessoas negras, nem a sua sombra, naquele momento tornaram-se inexistentes, de repente, pressentindo um generalizado perigo de morte, transformaram-se em nada. O medo, instintivamente, tomou conta dos bairros africanos, sabiam que iam ser castigados mas ainda não tinham a noção exacta dos contornos desse «castigo» que o «poder dos brancos» ia impor, o medo ainda não se tinha transformado numa imagem nítida.

As roupas pretas dos nacionalistas

Então, na generalidade das casas dos colonos, onde trabalhavam inúmeros rapazes negros forçados como serviçais para todo o serviço, começa a vistoria às roupas (calções e camisolas interiores) dos «criados», na tentativa de se descobrirem roupas pretas, símbolo dos atacantes.

E as patroas, exteriorizando terror, mais uma vez interrogavam os jovens serviçais sobre a sua origem. Se ouvissem a palavra «bailundo» ficavam descansadas. O poder branco considerava os «bailundos» como «pretos fiéis», ao contrário dos de Luanda, Catete, Malanje, considerados «falsos». A ideologia colonial definia quem eram os «pretos bons» e quem eram os «pretos maus e falsos».

Recordo-me muito bem. Foi um instante. O poder branco organizou-se espontaneamente em autodefesa contra os que apelidava de «terroristas». Num ápice, todos os brancos eram «nós» e todos os negros eram «eles», os outros, aqueles em quem os brancos não podiam confiar.

Foi tudo num repente. O funeral dos polícias mortos no 4 de Fevereiro, assistido por dezenas de milhares de pessoas brancas, corria com normalidade, até descobrirem, já na saída, algumas pessoas negras a olhar, numa serração de mármore do outro lado da estrada de Catete. Então um grito colectivo: «Terroristas!!!». Não sei se alguma daquelas pessoas negras que ali estava quietas a olhar para os brancos sobreviveu. É que naqueles dias os negros não podiam sequer olhar para os brancos, era considerado um «desafio», um «confronto», tinham de baixar o olhar, como se interiorizassem um sentimento de culpa aliado ao de inferioridade.

Nesses dias, logo a seguir ao 4 de Fevereiro, quando a sociedade colonial soube, através dos seus jornais de Luanda, o que tinha acontecido, o medo aliou-se à vingança, à repressão sem piedade, qualquer negro era considerado terrorista «até prova em contrário» e muitos jovens negros, a caminho da escola, com livros, eram mortos ou linchados. Nas ruas de Luanda começou a caça. Pessoas negras com óculos ou com aspecto «intelectual» eram sumariamente abatidas, por parecença com Lumumba. Colegas meus foram mortos assim, sem saberem por que morriam.

Nos bairros de brancos a população começou a organizar-se e a fazer turnos de vigilância nocturnos.

Na fronteira dos bairros Sambizanga, São Paulo e Bairro Operário, grandes grupos de pequenos colonos armados saíam à rua, em torno do cinema Colonial, para caçar «terroristas». Bastava tão-só uma denúncia, um gesto parecido com uma «ameaça» e… «este é terrorista, matem, matem!…» e os tiros das pistolas partiam em busca de mais uma vítima inocente.


Um rapaz ardina assassinado

Um rapaz ardina apregoando o "Diário de Luanda” caiu de borco na minha frente, na Rua de São Paulo, atingido por disparos. Ele, como os outros, corriam pelas ruas de Luanda  com os jornais e nesses dias era proibido a um negro correr, qualquer negro que corresse era considerado «terrorista» pelos brancos e passível de ser abatido. Olhei para ele, talvez um pouco mais novo do que eu, um último olhar suplicante e arregalado para mim, «Eu não fiz nada…»

Nos bairros africanos instalou-se a denúncia, porta a porta. A polícia política portuguesa, a PIDE, instalava-se e recorria a informadores negros e a muitos cabo-verdianos que viviam nos "musseques”.

Uma zona do Sambizanga foi considerada «esconderijo de terroristas» e incendiada numa noite com os moradores dentro das casas. O meu pai era porteiro no cinema Colonial e nós fomos até perto das chamas, que ainda vivem na minha memória, bem como os gritos de sofrimento sem defesa dos moradores, passados 63 anos.

Foi a altura em que acabaram os batuques nos bairros, audíveis nas noites por toda a Luanda, batuques de óbitos em volta das fogueiras, os bairros estavam a ferro e fogo, o medo, o terror tomavam conta de todos os becos e «cubatas», as movimentações eram controladas por informadores, os brancos receavam «invasões» vindas do Congo. Nas casas dos brancos os colonos insistiam na pergunta, inseguros, «Também és terrorista?» E a resposta era invariável, «Não, patrão».

No liceu, os poucos alunos negros eram olhados com suspeita pelos colegas brancos, eu próprio, mesmo branco, era acusado de «terrorista» por alguns colegas brancos porque não condenava o 4 de Fevereiro. A clivagem branco-negro foi levada ao inimaginável e a ideologia colonial do «bom negro», do «negro fiel», do «negro falso», do «negro ingrato que morde as pernas dos brancos» estava no auge.

Nas aulas do liceu, politizadas, havia professores que apregoavam a luta contra os «terroristas» e mesmo «contra os pretos» e a noite da cidade de asfalto, reservada aos brancos, conheceu um recolher obrigatório autoconsentido, todos os brancos se fechavam em casa, espreitando o perigo do «terrorismo» que podia vir da rua vestido de preto.


Prisões em massa

Então, a polícia política colonial, a PIDE, organiza a repressão e a prisão contra os negros, as cadeias de S. Paulo, Casa da Reclusão,  Fortaleza de S. Pedro da Barra ficaram sobrelotadas com milhares de «suspeitos», uma parte dos quais foi assassinada.

Certa tarde, um grupo numeroso de brancos dirigiu-se para a Missão Evangélica Americana, ali onde hoje é a Igreja Metodista, aos gritos de "terroristas, terroristas”… Os pastores norte-americanos, todos brancos, refugiaram-se no interior do templo e os colonos agarraram nos seus carros Cadillac, Chevrolet, Pontiac, a que nós chamávamos "espadas”, desceram a Robert Hudson com eles, passaram o Hotel Universo e atiraram os carros à Baía, em cujo fundo lodoso ainda devem estar passados 63 anos.

Ao mesmo tempo os colonos vociferavam em coro: "o padre da Sé está com os terroristas, tinha catanas escondidas atrás do altar!” O padre era o cónego Manuel das Neves que daí a pouco tempo seria deportado para sempre para a "metrópole”, onde faleceu, na maior solidão, e enterrado de noite em segredo pela polícia política.

Um mês depois, ainda não recompostos do 4 de Fevereiro, outro «terrorismo» cai no colo da sociedade colonial: o 15 de Março, que também vivi diariamente em Luanda. Desta vez havia muitos mortos, matanças lá longe, nos "confins” do Uíge, chegavam informações dispersas a Luanda, novo terror se instalou entre os brancos, ainda não refeitos do 4 de Fevereiro, e desta vez muitos homens brancos optaram por mandar as mulheres e filhos para a metrópole, enquanto as turmas do liceu Salvador Correia se enchiam de jovens brancos deslocados das regiões do Norte onde a guerra crescia. No Uíge pontificava o «Jornal do Congo», com grande tiragem, que passou a ser feito em Luanda, aparecendo como defensor dos interesses dos colonos do Norte, que se sentiam desprotegidos e desprezados pela metrópole e chegavam a defender uma «autonomia branca».

Esta foi a madrugada em que um grupo de nacionalistas ousaram afrontar o poder colonial atacando as suas cadeias políticas para libertar os presos patriotas. Um acto de extrema coragem e entrega das suas vidas à causa da luta pela soberania nacional. O poder colonial pensava que prendendo e assassinando em massa podia parar a História. Enganou-se, porque a luta não mais parou.

No  ar quente  e  húmido de Luanda, voava o grito dos que ousaram enfrentar o cruel e opressivo poder colonial: «Ivuenu, ivuenu, jinjangu pe ku maku ni jimbangala we, anangola, twala boba, etu twondo vutuka!». Voltaremos!

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