Cultura

A presença de Angola nas canções da revolução em Portugal

Nas vésperas das celebrações do quinquagésimo aniversário da Revolução dos Cravos, trouxemos uma reflexão sobre o contributo de Angola para a queda daquela que é considerada como a mais duradoura ditadura europeia depois da Primeira Guerra Mundial

21/04/2024  Última atualização 11H53
© Fotografia por: DR

Se há quem defenda que a Revolução dos Cravos terá acelerado a proclamação da Independência de Angola, deve-se dizer que ela étambém consequência do Início da Luta Armada simbolizada pela revolta da Baixa de Cassange, o assalto às cadeias em Luanda e às fazendas coloniais no Norte, que abalaram a estrutura do regime no outro lado do Atlântico. Pois, as revoltas em Angola são anteriores à Revolução dos Cravos, daí que historiadores apontam esses actos de bravura dos nacionalistas como uma das causas externas que criaram as condições para o aumento das contestações que precipitaram a queda do regime em Portugal.

 O golpe protagonizado pelos nacionalistas foi tão duro que Salazar teve  de  mudar e adaptar a sua política ao novo contexto que se vivia. No entanto, nessa altura, provavelmente o artífice do regime terá lido as doutrinas do realismo político em "O Príncipe” de Maquiavel, de que, os fins justificam os meios, e as aplicou. Portanto, as concessões e reformas de 1961 falam por si: Angola deixa de ser colónia e passa a ser província, o indígena virou cidadão, aboliu-se o acto colonial, abriu-se o mercado ao tão temido investimento estrangeiro e aplicou-se o plano de fomento promovendo mais oportunidades para os nativos. Entretanto, parece que, para alguns nativos estas reformas chegaram tarde, tanto é que alguém apercebeu-se disso e, segundo Marissa Moormon, denunciou-as na canção "Milhorou”.

Entretanto, é exactamente sobre o ponto do uso da canção nesta fase do nacionalismo angolano e de contestação ao fascismo na metrópole, que gostaria que nos detivéssemos nesta reflexão. Portanto, dentre as várias formas de protesto, a utilização da canção de intervenção política, quer em Angola como em Portugal, foi a arma mais letal apontada contra o regime, tanto pela facilidade que a música tem em atingir as massas, como também pela nossa sensibilidade em apreciá-la e pelo alto índice de analfabetismo nas regiões administradas por Salazar e que impossibilitava que os outros meios, como a literatura, a informação e a propaganda escrita, tivessem o mesmo alcance. Ora, os ideólogos do regime não eram ingénuos. Para contraporem-se a isso, implementaram um conjunto de reformas culturais com o objectivo de supervisionar o conteúdo das letras e alienar a população através da distracção e do entretenimento aliado a propaganda, no qual a canção desassociada da política passou a ser o centro das atenções.

É deste modo que a música do musseque atravessou o asfalto, invadiu a rádio, animou os bairros suburbanos com os kutonocas, entrou na RTP e chegou até a metrópole com o Ngola Ritmos em 1964. Foi assim que o regime asfixiou a canção de intervenção política em Angola enquanto que na metrópole aumentava a sua produção e circulação, principalmente entre os inconformados estudantes de Coimbra, e no exterior no seio dos  imigrantes progressistas exilados em França. Curiosamente, as canções anti-regime que se tornaram célebres e não só, têm uma relação muito próxima com Angola, quer pelo seu discurso poético, como pela relação afectiva e ideológica que os seus compositores e intérpretes tiveram com ela. Uns porque nasceram cá, outros vieram cumprir a vida militar e há ainda quem tenha tido contacto com a realidade angolana através da relação com os estudantes da CEI (Casa dos Estudantes do Império). Mas cá para nós, arriscamo-nos em afirmar que a afronta ao regime protagonizada pelos nacionalistas angolanos em 1961 foi tão impactante para os músicos progressistas que passaram a acreditar que seria possível sim  derrubar a ditadura. Por isso, fizeram da causa de Angola a sua e não deixaram de cantar a Revolução de lá e a Independência de cá. 

Então, temos na canção "E depois do adeus”, que serviu de senha para o início da revolução, os seus versos mais notáveis inspirados e escritos em Angola numa carta que o compositor José Niza endereçou à sua amada, "[...] quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci [...]”. O LP e as canções que fizeram menção pela primeira vez à guerra colonial e que marcaram a génesis da composição anti-regime no exílio fazem referência às causas de Angola, aliás, o título do mesmo diz tudo, "Portugal-Angola: Chants de lutte”, um LP de Luís Cília com 16 faixas musicais gravadas em 1964.

Neste LP o músico dedica três canções a Angola: "O canto do desertor”, "A bola” e "O menino negro não entrou na roda”. Os versos da canção "A bola” são de arrepiar: "Soldados jogam futebol com a bola que pula sangrando no chão de Angola, no solo a cabeça de um negro sangrando, que rola no chão de Angola”, enquanto que em "O canto do desertor”, Cília denuncia a morte de jovens portugueses e angolanos na guerrilha e dedica os últimos versos à Independência da terra que lhe viu nascer "[...] vou cantar a liberdade para minha pátria amada, e para a mãe negra e triste que vive acorrentada [...]”.

Por  outro  lado, José Afonso, o compositor de "Grândola Vila Morena”, a canção que se tornou o hino da Revolução, dedicou a Angola a música "Avenida de Angola” e o grupo pop Quarteto 1111, de José Cid, dedicou também a Angola "A lenda de Nambuangongo”, tal como, curiosamente,    Paulo de Carvalho, o intérprete do "E depois do adeus”, fê-lo com a canção "Nambuangongo, meu amor”. E o grupo Outubro, em gesto de solidariedade ao povo angolano e de apoio ao MPLA dedicou-nos a canção "Viva o MPLA”.

Estes são apenas alguns exemplos, dentre tantas outras canções dedicadas à causa do nosso país pelos músicos anti-fascistas. Entretanto, se nenhuma composição ocorre no vazio, pois tem influência do contexto sócio-político e ideológico em que os músicos estão inseridos, então podemos afirmar que a presença de Angola nas canções da Revolução é também o reconhecimento dos artistas portugueses pelo contributo prestado pelos nossos bravos nacionalistas para a queda do regime que oprimia os dois povos. Tal como afirmou Agostinho Neto no discurso da proclamação da Independência, "[...] a nossa luta não foi nem nunca será contra o povo português. Pelo contrário, [...] poderemos cimentar ligações fraternas entre dois povos que têm em comum laços históricos [...] e o mesmo objectivo: a liberdade [...]”. Com estas palavras, só nos resta desejar felicidades ao povo irmão de Portugal pela celebração de meio século de estabelecimento da democracia e aos angolanos pela preservação da paz e dos ganhos da Independência.

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