Entrevista

“As artes marciais africanas têm uma história rica”

Analtino Santos

Jornalista

Mestre Cabuenha é um artista multidisciplinar que tem merecido destaque no exterior do país.

10/03/2024  Última atualização 10H26
© Fotografia por: DR

A capoeira e a paixão pelo hungo encaminharam-no para a pesquisa da cultura nacional, com destaque para os ritmos, instrumentos, danças e lutas. Cabuenha defende que as artes marciais africanas, incluindo as lutas e danças, têm uma história

rica e são fundamentais para muitas comunidades  em todo o continente. Este posicionamento não tem passado despercebido aos pesquisadores internacionais. Assim, em Fevereiro deste ano, foi convidado para participar na 6.ª Conferência Bianual CADD - Colégio de dança africana da diáspora nos  Estados Unidos da América.

Este evento serviu de motivo para a entrevista que a seguir  se publica, na qual o artista faz uma abordagem de tudo  o que tem desenvolvido 

Mestre Cabuenha acabou de participar na 6ª Conferência Bianual CADD - Colégio de danças africanas da diáspora nos Estados Unidos da América. Como surgiu o convite?

Foi um evento organizado pela Universidade Duke, da cidade de Durham, Inglaterra,  com o tema "Geografia do Corpo, Mapeando Liberdades”.

Queira explicar o que é o CADD?

O CADD, do inglês Collegium for African Diaspora Dance é uma comunidade de académicos e artistas empenhados em explorar, promover e envolver as danças da diáspora africana como recurso e método de identidade estética. Através de conferências, mesas redondas, publicações e eventos públicos, facilitamos a investigação interdisciplinar que captura a variedade de tópicos, abordagens e métodos que podem constituir os Estudos da Dança Negra.

 
Como o trabalho do angolano Cabuenha chegou a este colégio de académicos? 

O primeiro contacto foi com a antropóloga e professora, Katya Wesolowski, da Universidade Duke, que escreveu um artigo no The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology (A Revista de Antropologia Latino-Americana e Caribenha) de 2020. Neste artigo, examina as cidades africanas como os mais recentes pontos de circuitos transnacionais da capoeira, em que são mencionadas as diversas artes marciais angolanas e o trabalho que eu desenvolvia desde a parte social, desportiva e cultural com o projecto multidisciplinar Yakalakaya. Em Março de 2023, surgiu então o convite do departamento de antropologia cultural para participar na conferência Capoeira Conexões Angola e Brasil. Lá palestrei e dei aulas sobre as artes marciais de Angola, Kambangula e Engolo, assim como apresentei a performance Yakalakaya.

 
Como foi o evento?

A conferência Geografia do Corpo -Mapeando Liberdades -teve abertura com uma procissão dentro do campus universitário ao ritmo dos tambores e uma coreografia de dança reverenciando os ancestrais, passando frente ao museu de arte Nasher até ao Duke Arts, auditório Rubenstein Arts Center, onde foram dadas as notas de boas-vindas pela Dra. Andrea E. Woods. Houve debates de vários temas relacionados com a dança, filosofia e literatura negra. Também, houve aulas de dança e workshops variados. Pude dar um workshop de introdução às artes marciais de Angola. Este evento foi uma oportunidade única de partilha de experiências, conhecimentos e criatividade artística variada. Foi bastante produtivo. Também, pude dar a conhecer a diversidade cultural angolana, em específica das artes marciais, música, danças e seu o contexto histórico.

 
Em que se baseou a sua apresentação?

A minha apresentação tem o título Umbangu, uma palavra em kikongo e kimbundu que significa arte de aproveitar os segredos das ciências para produzir efeitos surpreendentes. É uma apresentação que expõe a exploração visceral das cicatrizes da desapropriação histórica em África, narrando o legado saqueado de obras de arte, ideias e recursos. Simultaneamente, o movimento corporal representa uma Musaka (casulo em kimbundu), cujo renascimento emerge da espiral do tempo e retorna à argila original da terra. Esta transcendência é acompanhada pela música ressonante de Lo-Fi Experience de Shaka’s. "Oh corpo meu, faz de mim um homem que questiona” (Frantz Fanon).


O projecto Yakalakaya, mais uma vez, foi responsável pelo convite. Como está este projecto?

Yakalakaya é um projecto cultural cujo intuito é aceder à herança literária, tradição oral, música, danças e artes marciais angolanas. Neste sentido, o projecto tem o objectivo de promover o conhecimento das raízes e ritmos das danças e artes marciais africanas, por meio de uma performance que expressa a diversidade cultural dos vários povos de Angola. Nasceu do trabalho de pesquisa que, ao longo de vários anos, tenho dedicado ao conhecimento das raízes angolanas da arte capoeira.

 
Há quanto tempo desenvolve este projecto?

Faz oito anos que tenho vindo a trabalhar no projecto Yakalakaya, que é multidisciplinar, através da poética no falar, aproveitando os movimentos das artes marciais e das danças angolanas. O contador de histórias, o uso dos instrumentos musicais angolanos com uma linguagem sonora contemporânea e o "akwa kuta” desenhador de Sona, o poeta.

Fale de algumas apresentações feitas no exterior?

Apresentei em países como Itália, Brasil, Portugal, Emirados Árabes Unidos, República Checa, Espanha, Eslováquia, Alemanha, Suíça e Estados Unidos. Tem sido uma experiência reveladora elevar o nome de Angola ao mais alto nível da expressão artística. Desde 2016, tenho apresentado a performance Yakalakaya, com propostas artísticas distintas. Em 2016, o Yakalakaya Imoxi,   fruto de uma residência artística na Sardenha, Itália, em que apresentei o Voz, Instrumento e Movimento -VIM. Depois surgiu o Yakalakaya 432Hz, em 2019, e na comemoração dos cinquenta anos do LP Angola 72 de Bonga, em 2022, apresentei o Kubalumuka. Exibi o Angwivelela Izua Ioso, resultado da residência artística "Dance the Political” em Genebra, Suíça, em 2023. Ainda no ano passado, o Ondjando, num projecto colectivo em Lecce, Itália. E agora o Umbangu, na Carolina do Norte, EUA.

 
O que o levou a pesquisar sobre as lutas e danças angolanas?

Fui impulsionado por uma compreensão mais profunda das tradições culturais e dos significados por trás delas. As artes marciais africanas, incluindo as lutas e as danças, têm uma história rica e são fundamentais para muitas comunidades em todo o continente. Elas não são apenas formas de expressão física, mas também veículos de transmissão de valores culturais, espirituais e sociais. As artes marciais de Angola, por exemplo, reflectem não apenas habilidades físicas, mas também filosofias, éticas e valores morais. Elas muitas vezes estão integradas em cerimónias e rituais, e são uma parte essencial da identidade cultural de muitos grupos étnicos. Da mesma forma, as danças angolanas desempenham um papel crucial na vida quotidiana e em eventos importantes, como nascimentos, casamentos e funerais. Elas são formas de comunicação e conexão com os ancestrais, carregando consigo uma riqueza de significados simbólicos e espirituais.

Ao revisitar e estudar estas práticas tradicionais, estamos nos reconectando com a nossa herança cultural e dando voz aos praticantes e mestres destas artes. É uma oportunidade para entender melhor como o movimento do corpo, carregado de subjectividades e enraízado na tradição, dialoga com a música, os ritmos e os símbolos que permeiam a cultura angolana e africana como um todo. Esta reflexão nos permite apreciar e preservar estas formas de expressão únicas e valiosas.

 
Faça um paralelismo entre estas e a capoeira. Cite algumas e as regiões…

O paralelismo entre diversas expressões culturais e a capoeira ressalta a profunda influência das tradições angolanas, como do Cunene, o Engolo, a Kambangula e o Ondyunbu. Estes elementos representam não apenas movimentos de luta, mas também aspectos culturais intrínsecos das comunidades angolanas. Dentro da capoeira, estes elementos são evidentes, revelando uma conexão histórica e uma influência mútua entre as práticas culturais de Angola e a capoeira. Esta interacção entre as tradições angolanas e a capoeira enriquece não apenas a prática da arte marcial, como também a compreensão da história e da diversidade cultural brasileira.

Fale também da relação com o Mestre Kamosso e outras iniciativas que desenvolveu em Angola…

A relação com o Mestre Kamosso foi profundamente marcada por uma dinâmica de mestre para discípulo, na qual a linguagem musical com o hungo desempenhava um papel essencial na transmissão de sabedoria e na expressão cultural. Ao longo deste relacionamento, o meu objectivo sempre foi valorizar o Mestre como um guardião do conhecimento e da vivência, reconhecendo-o como um símbolo de resistência cultural. Esta reverência e respeito são estendidos a outros grandes mestres das culturas Ambundu e Ovanyaneka, tais como, Mesene Kituxi, Raul Tollingas, Utomba Chindonga, Galiano Neto, Ernesto Wapateca, António Nepela, Maurício Nepela e Kahani Waupeta. É crucial reconhecer e honrar esses mestres como os verdadeiros detentores do saber, utilizando termos autóctones como "mpovi” do kikongo ou "onjende” do umbundu em vez de adoptar termos estrangeiros como griot. Este enfoque reflecte não apenas um compromisso com a preservação das tradições culturais angolanas, mas também um profundo respeito pelas línguas e práticas ancestrais que constituem a identidade do povo angolano.

 
Para quando o lançamento do livro sobre danças africanas?

Brevemente, teremos o livro "Artes Marciais de Angola”.

 
Nos fale dos mais de dez projectos sociais que têm desenvolvido?

Nós, da Abadá Capoeira Projecto R5, temos o orgulho de estar envolvidos em uma variedade de projectos sociais que têm impactado positivamente várias comunidades em Angola ao longo dos anos. Um dos pilares fundamentais dos nossos projectos é a responsabilidade social, que se manifesta em diversas iniciativas em todo o país. Entre essas iniciativas, destacam-se campanhas de doação de sangue, onde incentivamos a participação da comunidade para contribuir com esse acto solidário que salva vidas. Além disso, realizamos doações de cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade, proporcionando alívio imediato e apoio em momentos difíceis. Também estamos envolvidos na doação de uniformes, garantindo o acesso igualitário a recursos essenciais para aqueles que mais precisam. Como parte integrante desses esforços, temos desempenhado o papel de dinamizar a capoeira como um instrumento sócio-cultural e educacional. Através da capoeira, buscamos não apenas promover a saúde e o bem-estar físico, mas também transmitir valores de respeito, cooperação e superação pessoal para os participantes, especialmente para os jovens nas nossas comunidades. Estamos comprometidos em continuar expandindo e aprimorando os nossos projectos sociais, sempre com o objectivo de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e inclusiva em Angola.

 
Fale um pouco do seu histórico com a capoeira aqui em Angola, destacando o seu papel como um dos seus principais dinamizadores…

Iniciei a minha jornada na prática da capoeira em Luanda, no ano de 1998, e, actualmente, sou coordenador dos trabalhos desenvolvidos em diversas províncias de Angola, incluindo Cabinda, Uíge, Cuanza-Norte, Malanje, Namibe, Benguela, Huíla, Cunene, Moxico e Cuando Cubango. O nosso objectivo é promover a valorização da diversidade cultural, fortalecendo os alicerces da identidade angolana por meio da prática da capoeira, cultivando a auto-estima, a tolerância e a paz.

"A capoeira deve ser vista sob uma perspectiva educacional, uma vez que promove o desenvolvimento físico, social, cultural e musical dos seus praticantes. Além de envolver disciplina, trabalho em equipa e respeito mútuo, a capoeira proporciona uma compreensão profunda da história e da cultura. Sua prática também fomenta o auto-controlo e a cooperação, tornando-a uma actividade educativa holística e enriquecedora. É fundamental ressaltar a importância do mestre como transmissor de sabedoria e vivência na capoeira, assim como nas práticas ancestrais. No contexto da capoeira, compreendemos que o tempo é crucial, mas mais importante ainda é o que fazemos com este tempo que dedicamos à prática. Devemos nos lembrar de que o título não deve ser mais importante que o propósito que nos guia”.

Esta adição enfatiza a importância do papel do mestre na capoeira, além de ressaltar a ideia de que a qualidade do tempo dedicado à prática é mais significativa do que a quantidade de títulos ou reconhecimentos.


Biografia

Mestre Cabuenha é professor de capoeira, activista social e cultural e artista multidisciplinar. A diversidade é o seu outro nome, a criatividade é o seu sobrenome. Cabuenha Júlio Janguinda Moniz nasceu a 1 de Julho de 1980, em Luanda. Pratica capoeira desde 1998. Entre os seus projectos artísticos, é de realçar a coordenação dos trabalhos da Abadá – Capoeira em diversas províncias e a investigação e divulgação das manifestações culturais angolanas. Participou no videoclipe "Amba”, do músico Paulo Flores e escreveu para a cantora Irina Vasconcelos a letra da canção "Xikomba”. Participou na curta metragem "Unique groove of Luanda”, realizada pela Red Bull Music Academy Angola 2012.

É membro da Associação Abadá Projecto R5, que se dedica à promoção sócio-cultural através da capoeira. São directrizes da associação a responsabilidade social, ritmo e movimentos africanos, retiro ecológico, refúgio do mestre e resgate das raízes da capoeira. Em 2011, criou a campanha SOS Mestre Kamosso do Hungo, para o enaltecimento e valorização do Mestre, como transmissor de vivências, sabedoria e símbolo de resistência cultural. Desde 2007 que faz pesquisa in loco nas províncias do Cunene, Benguela, Luanda, Namibe, Cabinda, Zaire, Moxico, Cuando Cubango e Huíla sobre as artes marciais de Angola, danças e instrumentos musicais. Organizou os Encontros Nacionais de Capoeira de 2007 a 2023 em que se introduziram oficinas para enaltecer a diversidade das expressões culturais angolanas.

Em 2016, estreou o projecto e performance Yakalakaya, com o objectivo de dar corpo às suas investigações culturais. O espectáculo já foi apresentado em Angola, Portugal, Cabo-Verde, Rússia, Espanha, Itália, República Checa, Eslováquia, Alemanha, Suíça, Brasil, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos. Foi-lhe atribuído o Artes Marciais Awards Angola pelo resgate da cultura angolana e os estudos que tem dedicado às artes marciais no país.

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