Entrevista

Especialista defende investimentos para a inserção dos médicos de família nas comunidades

Alexa Sonhi

Jornalista

Cerca de 85% dos problemas de saúde no mundo são resolvidos pelos médicos de família, ou seja, as inquietações dos pacientes são atendidas sem a necessidade destes se deslocarem a um estabelecimento hospitalar. Os deputados à Assembleia Nacional defenderam, no passado dia 2 de Janeiro, a implementação de estratégias que permitam a implantação dos médicos de família nas comunidades.

02/02/2024  Última atualização 08H25
Israel Kussumua, presidente do colégio de medicina geral e familiar da ordem dos médicos © Fotografia por: Armando Costa| Edições de Novembro
Em entrevista ao Jornal de Angola, o presidente do Colégio Angolano de Medicina Geral e Familiar, o médico Israel Kussumua, elogiou o posicionamento do Parlamento, tendo em conta que é uma necessidade sentida por todos os angolanos, mas defendeu que haja um maior engajamento político, que passe por investimentos amplos e abrangentes nos cuidados primários de saúde. 

Que atribuições tem o Colégio Angolano de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos de Angola  (ORMED) e com que efeitos junto dos utentes?

Antes de mais, permita-me saudar todos os leitores do Jornal de Angola, em nome do Colégio de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos de Angola. Os Colégios de Especialidade são órgãos técnicos consultivos da ORMED. Tal como qualquer outro Colégio dentro da Ordem, este tem o dever de garantir a valorização do conhecimento dos médicos de família e o exercício da Medicina Geral e Familiar, de forma a atingir os mais elevados padrões, para o benefício da saúde das famílias e comunidades angolanas.

Recentemente, os deputados à Assembleia Nacional defenderam a necessidade de se institucionalizar a figura do médico de família. Como especialista em Medicina Familiar e presidente do Colégio Angolano de Medicina Geral e Familiar da ORMED, o que tem a dizer?

É uma necessidade sentida por todos os angolanos e os deputados estiveram bem em defender a sua divulgação e implementação efectiva; mas é um longo caminho que temos a percorrer, que não deve ser visto apenas na perspectiva de institucionalização da figura do médico de família. É preciso trabalhar a base e envolver todos os especialistas em atenção primária. Note que o modelo de atenção existente deve ser modernizado, ampliando o seu escopo de actuação, tornando-se menos selectivo e focado em acções programáticas de saúde.

Por que afirma que será um longo caminho a percorrer?

Porque, por mais competentes que sejam os médicos de família, não serão capazes de mudar o cenário da saúde angolana sem o engajamento político, consubstanciado em investimentos amplos e abrangentes nos cuidados primários de saúde. Os investimentos em recursos humanos não se devem limitar à educação médica, mas incluir o envolvimento directo de enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, dentistas e gestores de Saúde.

Como define a Medicina Familiar?

A Medicina Geral e Familiar é, por excelência, a especialidade dos cuidados de saúde primários. Visa promover cuidados de saúde de forma abrangente, personalizada, contínua e acessível a todos os utentes, quer sejam indivíduos, famílias ou comunidades, independentemente da idade, género, etnia ou estado de saúde. Um indivíduo, família ou comunidade acompanhada por médico de família tem maior probabilidade de ser alertada para eventuais factores de risco para doenças, diagnosticada para a maioria das condições crónicas, seguindo com critérios de diagnósticos mais rígidos.

Até que ponto é fundamental a existência dos médicos de família nas comunidades?

São fundamentais na identificação de riscos pré-nupciais, no diagnóstico e seguimento de condições médicas muitas vezes negligenciadas, como  os casos dos problemas de saúde mental (psicose e esquizofrenia) e de dependências químicas, como alcoolismo e adição a drogas. Os médicos de família  também identificam precocemente factores de risco para condições médicas que podem ser fatais e desenham planos de intervenção precoce para contornar o problema; uma quebra do actual paradigma em que, cada vez mais, os exames complementares substituem o profissional de saúde.

Se a medicina familiar já é uma realidade entre nós, como é que damos pela sua existência na sociedade?

A especialidade está a dar os seus primeiros passos no país. Notamos a sua existência na nossa sociedade pelo aumento de formandos no nosso país e pela qualidade da assistência médica nas unidades hospitalares em que já temos a sua presença.

Que papel a Ordem dos Médicos de Angola terá em todo esse processo que deverá culminar com a institucionalização do médico de família?

Desde 2018 que a especialidade é oficialmente um dos ramos da carreira médica em Angola. É papel da ORMED velar pela qualificação técnica dos seus quadros, oferecer assessoria técnica e científica ao Ministério da Saúde em matérias dos cuidados primários,  acompanhar o processo de formação de novos especialistas, acreditar as instituições formadoras e contribuir para a melhoria da prestação desses cuidados.

A Ordem está preparada e pronta para dar contributos na eventualidade de ser chamada para o efeito?

O Colégio de Especialidade de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos de Angola, como entidade que congrega o maior número de especialistas dos cuidados primários, sempre esteve disponível para oferecer a assessoria técnica necessária para a melhoria da atenção primária no país.

O maior desafio do nosso Sistema Nacional de Saúde continua a ser a atenção primária. O médico de família virá para alterar esse quadro?

Na verdade, o estabelecimento da figura do médico de família no nosso Serviço Nacional de Saúde poderá trazer melhorias significativas no actual modelo de prestação de cuidados de saúde primários, elevando a capacidade da atenção primária para resolver  cerca de 85% dos problemas de saúde da população. Os médicos de família tornam o Sistema de Saúde menos oneroso para o Estado e reforçam o sector da atenção primária.

Noutras realidades, aproximadamente 85% das queixas dos pacientes são resolvidas por um médico de família, sem necessidade de encaminhamento. A ideia da institucionalização do médico de família entre nós visa, também, alcançar esse desiderato?

Sim, de facto. Mas é óbvio que isso não depende apenas da figura do médico de família que, apesar de ser fundamental em todo esse processo, deve contar com outros profissionais como enfermeiros comunitários, psicólogos, dentistas e outros técnicos que, juntos, formarão as múltiplas equipas que darão vida às unidades de saúde das famílias e comunidades. É, de facto, um grande desafio que acreditamos ser possível de se efectivar.

Temos condições humanas e materiais para efectivar esse processo, contando com o número de médicos que temos?

Apesar de melhorias verificadas nas infra-estruturas e políticas de Saúde Pública, o país conta, actualmente, com 290 especialistas em Medicina Geral e Familiar, entre os quais 120 nacionais. O número é certamente insuficiente para uma população que se aproxima dos 36 milhões de habitantes, mas vamos continuar a trabalhar.

O médico de família é um especialista que vai além das doenças, cuja actuação é baseada na relação médico-paciente. O actual número de médicos de família não vai atrapalhar o rácio médico por habitante?

Estão em fase final de formação mais de 400 novos médicos que servirão de reforço deste contingente. E é importante que ela continue, porque a formação em Medicina Geral e Familiar torna o profissional mais sensível para identificar e diagnosticar problemas, sem necessidade de recorrer  a diagnósticos de alta complexidade.

Neste caso, qual seria o principal desafio?

O principal desafio é a mudança do actual modelo de prestação de cuidados de saúde que, por ser muito fragmentado e programático no seu escopo de acções, está longe de ser abrangente e integral e já não responde aos actuais desafios do país.

Diz-se que o atendimento do médico de família não acontece apenas quando existe um problema de saúde. A ideia é, sobretudo, a vertente do trabalho de prevenção?

O médico de família cuida da pessoa, previne doenças,  trata dos doentes, garante a continuidade dos cuidados de saúde, a reabilitação dos utentes e reinserção social do paciente.

Culturalmente há uma grande propensão de se ir ao médico apenas com enfermidade. O que vai mudar com a institucionalização do médico de família?

Com as dinamizações das acções de promoção de saúde nas famílias e comunidades, esperam-se melhorias na literacia em saúde das populações, que certamente estarão mais interessadas na manutenção da sua saúde, de tal forma que a procura pelo médico de família se torne uma rotina.

Diz-se que, quando um paciente é encaminhado para outro especialista, o médico de família deve manter-se próximo e, se possível, coordenar as actividades da equipa para garantir o melhor resultado. É assim? 

Sim. O médico de família é, em última instância, o responsável pelo utente. Cabe a ele coordenar as interconsultas com outros especialistas e garantir a continuidade dos cuidados que o paciente precise. Uma vez estabilizada a condição que obrigou a reavaliação por outro especialista, o paciente deverá ser devolvido ao seu médico de família que é, na verdade, o que melhor conhece o indivíduo, especialmente quando há necessidade de se continuar o seguimento de outras condições crónicas já estabelecidas

É falso concluir que uma eventual institucionalização da figura do médico de família vai dispersar os médicos da presença hospitalar ou reduzir o tempo que se deveriam dispensar aos casos hospitalares?

Como disse anteriormente, a figura do médico de família já é oficial dentro da carreira médica  desde 2018. O que precisamos é multiplicar o número de especialistas, definir claramente o perfil ocupacional destes profissionais dentro do nosso Serviço Nacional de Saúde e redefinir o Modelo de Prestação dos Cuidados de Saúde Primários no país, ou seja, a forma como estes  são oferecidos à nossa população. Quando tudo isso for estabelecido, teremos os médicos de família a realizar o seu trabalho especialmente nas unidades de atenção primária e junto da população.

Estarão os nossos médicos preparados com o espírito de equipa, postura empática e disponível para lidar com a nova realidade ligada ao surgimento da figura do médico de família?

A melhoria da rede primária de atenção é um imperativo para o nosso Sistema de Saúde. Os profissionais da carreira hospitalar precisam do estabelecimento dos médicos da carreira de Medicina Geral e Familiar, que são profissionais de excelência para a actuação no nível de atenção primária, bem como das equipas de saúde comunitária para diminuir a demanda de pacientes nos níveis terciários de atenção à saúde e melhorar a qualidade dos serviços prestados nos hospitais de referência.

Acha que o conhecimento que os demais profissionais de saúde têm, e a população no geral, sobre os médicos de família é suficiente?

Estamos cientes de que é preciso divulgar mais a importância do médico de mamília tanto entre profissionais de saúde quanto entre a população em geral. É o que temos vindo a fazer desde que assumimos a liderança do Colégio e os resultados são satisfatórios. Porque temos consciência que os médicos de família tornam o Sistema de Saúde menos oneroso para o Estado e dão força aos cuidados primários.

Para a nossa realidade, pode dizer-nos como poderá ocorrer o processo de desdobramento da figura do médico de família nas nossas comunidades?

Espera-se que estes liderem a estratégia de saúde das famílias e comunidades, actuando na assistência médica a nível das unidades de saúde primária, gerindo e acompanhando listas de utentes captados das consultas nos centros médicos, hospitais municipais ou das visitas familiares e comunitárias. Estes profissionais devem, também, participar de acções de promoção de saúde e prevenção de doenças junto das comunidades, promovendo a investigação científica com foco nos cuidados primários de saúde. 

As famílias terão a oportunidade de entender e, eventualmente, escolher qual a especialidade que se encaixa no seu perfil e histórico de problemas de saúde?

Cada indivíduo, família e comunidade poderá, a longo prazo, ter a possibilidade de pertencer a uma lista de utentes seguidos por uma equipa de saúde familiar. É claro que isto será um processo gradual. Neste momento, decorre o processo de formação acelerada de especialistas em Medicina Familiar em todo o país. À medida que se vão formando os especialistas, terá de haver, da parte do Governo, iniciativas para aperfeiçoamento do nosso modelo de prestação de cuidados de saúde primários e a criação das equipas de saúde familiar. Só depois disso poderemos ver, efectivamente, os resultados dessa medida.

Pela experiência que tem como médico e membro do Colégio Angolano de Medicina Geral e Familiar, que contributos acha que outras especialidades, como Antropologia, Sociologia e Geografia, podem dar?

Pela natureza da profissão, o especialista em Medicina Geral e Familiar poderá, sempre que possível, solicitar o apoio de outras especialidades como Psicologia, Antropologia, Sociologia e outras, para lidar com condições específicas de cada utente, família e comunidade.

Atendendo aos casos mediatizados de aparente negligência médica, parece haver um elevado défice de consciência sobre a importância da relação médico-paciente e pessoa. O que se passa realmente?

Disse muito bem! São casos de aparente negligência médica. Muitos destes casos estão ainda sob investigação e é prudente observarmos o princípio da presunção de inocência. O que podemos dizer é que é muito triste assistir à perda de vidas humanas em hospitais de nível terciário (e noutros), curiosamente por doenças que seriam potencialmente evitáveis, se fossem oportunamente tratadas no nível primário. Lamentamos as vidas perdidas e endereçamos os nossos sentimentos de pesar às famílias cujos familiares tiveram casos de saúde com desfechos fatais.

Tudo isso não se deve ao facto de termos, em todas as especialidades, poucos médicos para aquilo que é a demanda populacional?

O facto é que estamos a viver um contexto de difícil manejo. Temos 0,21 médicos para cada 1000 habitantes, a demanda de pacientes nos hospitais é muito grande, o ambiente e as condições de trabalho nem sempre são das melhores, a carga assistencial é muito grande, exigindo do profissional esforço redobrado. A maioria dos casos ocorre com médicos em fase de formação especializada e em instituições em que o rácio formador/formando não satisfaz. Tudo isso propicia a ocorrência de acontecimentos desfavoráveis, tanto para o profissional quanto para o utente. Temos de trabalhar todos para mudar o quadro.

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