Entrevista

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“Houve uma redução substancial dos prazos de duração da prisão preventiva”

Nilza Massango

A figura do juiz de garantias completou um ano, no dia 2, desde a sua entrada em funções, em Maio de 2023. A este propósito, o Jornal de Angola entrevistou o vogal e porta-voz do Conselho Superior da Magistratura Judicial, Correia Bartolomeu, que fala dos principais ganhos, como a redução dos prazos da prisão preventiva

04/05/2024  Última atualização 12H35
© Fotografia por: Arsénio Bravo | edições novembro

Um ano depois, qual é o balanço e o impacto dos juízes de garantia na vida do cidadão?

O balanço que o Conselho Superior da Magistratura Judicial faz, desde a entrada em vigor dos Juízes de Garantias, é altamente positivo, porque deu para perceber os efeitos que decorrem destas vantagens. Desde logo, o retorno que recebemos e manifestado pelos vários interessados, quer a sociedade em geral, dos advogados e de alguns cidadãos em conflito com a lei, tem a ver com a redução substancial dos prazos de duração da prisão preventiva naqueles casos que, no passado, havia muitos excessos.

Quer dizer que,com a entrada em funções dos juízes de garantias, estes prazos reduziram?

Sim.Os cidadãos sentem-se mais protegidos e têm garantias cada vez mais eficazes para tutelar os seus direitos. Uma das preocupações que inicialmente se levantava é que não havia um processo célere, um processo conforme, justo e, por isso, existia, às vezes, alguma ilegalidade causada por excesso de poder, ou por excesso de prisão preventiva. Com a entrada em funcionamento dos juízes de garantias, esse quadro foi invertido.

O quadro foi invertido de que forma?

Até 2023, era apenas o Ministério Público que dirigia e fiscalizava as medidas de coação processual na fase de  instrução preparatória. A partir de Maio do mesmo ano, passou a ser o juiz de garantias a fazê-lo, e, inclusive, a aplicar também as medidas mais gravosas, como a prisão preventiva, a prisão domiciliar, a interdição de saída do território nacional, a realização de buscas ou escutas telefónicas. Tudo isso passou a ser da competência exclusiva do juiz de garantias. Claro que o Ministério Público pode ter a iniciativa de aplicar, mas a validação das mesmas compete ao juiz de garantias.

Numa entrevista recente ao Jornal de Angola, o presidente do CSMJ falou de 13 mil processos que mereceram diversos tipos de intervenção dos juízes de garantias. Hoje, esse número aumentou?

Hoje estamos com mais de 18 mil processos com a intervenção dos juízes de garantias. Essa intervenção na fase de instrução processual  só ocorre quando há necessidade de se aplicar uma medida de coação que seja da competência do juiz de garantias. O processo é então submetido ao juiz de garantias para se pronunciar e fiscalizar, de modo a legalizar ou aplicar uma medida adversa daquela que eventualmente foi proposta pelo Ministério Público.

Com isso pode-se afirmar que o país caminha para uma justiça mais justa e equilibrada?

Estamos a fazer um caminho, mas, ao mesmo tempo, a realizar a justiça com equidade, sobretudo nos termos da Constituição e da Lei. A Lei estabelece limites de actuação de todos os entes públicos e particulares, e o juiz de garantias veio, no âmbito da protecção dos direitos fundamentais, garantir que os cidadãos vejam reparadas as situações de violação dos seus direitos, ou de ter um processo justo e conforme a Constituição e a Lei.

Então, o juiz de garantias veio assegurar esse equilíbrio?

Naturalmente! Os juízes de garantias desempenham um papel fundamental. Por um lado, há um ente que dirige a instrução e acusa, e por outro, existe um, imparcial e independente, que nada tem a ver com os interesses em conflito, é parte desinteressada e, por força disso, vai analisar o processo de maneira isenta, imparcial e independente e toma a medida de acordo com os factos apurados e a convicção que tenha formado sobre os mesmos.

Tudo começa na fase da instrução preparatória?

A fase da instrução preparatória é muito complicada, porque pode ocorrer a privação da liberdade do cidadão e o legislador constituinte veio dizer que essa privação tem que ser fiscalizada por um juiz de garantias. A existência deste veio, na verdade, fazer cumprir este postulado constitucional e legal. A partir de 2020, com a aprovação do Código Penal e do Código do Processo Penal, ficaram clarificadas as competências do Ministério Público e dos juízes de garantias, no âmbito da instrução processual.

Ficou clarificado, por exemplo, que a prisão preventiva deve ser decretada exclusivamente por um juiz?

Exactamente. É a partir desta altura em que ficou claro que, no que diz respeito aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, a aplicação das medidas mais gravosas, como a prisão preventiva, a prisão domiciliar, a interdição de saída do território nacional, a autorização de buscas domiciliares e de escutas telefónicas, são da competência exclusiva do juiz de garantias. E isso, hoje, o cidadão sente. A fiscalização das medidas de coação pessoal aplicadas, em caso de extrapolamento, de excessos, de ultrapassagem do limite fixado na Lei, os cidadãos têm tido a possibilidade de reclamar ou recorrer ao juiz de garantias. Muitas das vezes têm ainda a possibilidade do recurso à providência de habeas corpus dirigido ao juiz de Comarca.

 

E o que acontecia anteriormente?

Antigamente, era o Ministério Público que exercia essas competências quando houvesse algum excesso de prisão preventiva, violação dos direitos dos arguidos na fase de instrução processual. Quem tinha competência para julgar o habeas corpus era o Tribunal Supremo e não o juiz presidente do Tribunal Provincial. Até que o processo chegasse ao Tribunal Supremo e fosse analisado era uma morosidade, uma burocracia que emperrava o mesmo e, às vezes, quando se decidia, o arguido já estava em liberdade.

Tem havido colaboração entre os vários intervenientes processuais?

Importa clarificar que nunca houve conflitos entre os vários intervenientes processuais que,  na fase de instrução preparatória, são o Ministério Público, as várias polícias e os tribunais. O que houve, num primeiro momento, foi alguma desinteligência ou incompreensões. Sabe que o início de funcionamento de uma nova instituição pode gerar questões que, às vezes, criam alguma resistência à mudança. Mas, no decurso do processo, todos os intervenientes perceberam e concluíram que o juiz de garantias só veio acrescentar valor, sobretudo, assegurar que o cidadão tenha cada vez mais garantias adequadas para a tutela dos seus direitos.

Portanto, há, cada vez mais, uma harmonia e um entrosamento entre os vários órgãos no funcionamento da administração da justiça. Todos têm caminhado no mesmo sentido, que é fazer com que a justiça seja realizada.

Como é que acontece esse entrosamento?

Foi criado um grupo de trabalho conjunto que integra não só os magistrados judiciais, mas também os procuradores e as polícias. Este grupo trabalha quando há um alerta de excesso de prisão preventiva, por exemplo, num determinado estabelecimento prisional. Essa equipa desloca-se imediatamente ao estabelecimento e aqui destaco o de Luanda e de Viana, onde a população prisional é relativamente alta.

Por exemplo, se é apurado algum excesso e estão reunidas as condições para que se altere a situação carcerária do arguido na fase da instrução preparatória, naturalmente, tem sido ordenada a soltura imediata no local, sem necessidade do processo ser submetido às Unidades de Garantias criadas para  a gestão processual, onde os juízes funcionam.

Quais são os principais desafios que se colocam ao juiz de garantias no exercício das suas funções?

Enquanto CSMJ, um dos grandes desafios tem sido criar cada vez mais condições objectivas para um trabalho com mais dignidade. Existem ainda algumas carências e penso que isso é abrangente, não só a nível da função jurisdicional, da jurisdição comum, mas também dos outros órgãos que intervêm nesse processo. Para que o juiz trabalhe, é preciso que o detido ou a pessoa que necessitar dessa assistência, por exemplo, esteja presente na Unidade de Gestão Processual dos Juízes de Garantias. E quem leva os detidos, por exemplo, é a Polícia, quem remete o processo ao juiz de garantias é o Ministério Público. Portanto, esses órgãos também têm que ter condições de trabalho para garantir que haja celeridade na remessa, não só dos processos, mas também no envio dos arguidos que se encontram privados da liberdade, para interrogatório.

 Há ainda outros desafios?

Outro desafio que se coloca é o de permitir que a nível nacional, e é uma perspectiva que o Conselho vai ponderar nos próximos tempos, a necessidade de se estabelecer junto das divisões ou unidades policiais, em função do movimento processual, a existência de turnos para juízes de garantias durante os finais de semana e, sobretudo, feriados, para evitar que alguém que seja detido, por exemplo, numa quarta-feira, à tarde ou à noite, sendo quinta-feira feriado, sexta-feira ponte, depois vir o sábado e o domingo, fique  cinco dias detido, quando a Lei obriga que este seja apresentado ao juiz de garantias dentro de 48 horas. Portanto, estes são os desafios que vamos começar a ponderar para, no decurso deste ano, ser implementado. Isto é essencial e fundamental para salvaguardar os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Os juízes de garantias estão bem instalados?

Existem as condições necessárias para se poder trabalhar. Claro que ainda não são muito condignas e, num ou noutro sítio, ainda se trabalha em condições precárias, mas, na maior parte dos casos, já estão instalados em locais razoavelmente adequados que permitem desenvolver a actividade. O que tem nos criado alguns constrangimentos são os meios de transporte colectivos. Há necessidade das Unidades de Gestão Processual dos Juízes de Garantias terem  viaturas para o transporte dos  magistrados, em caso de deslocação ao local onde os detidos se encontram.

E a nível das restantes províncias?

Nas restantes províncias, estamos a criar condições em todos os locais onde, de acordo com o mapa  judiciário, se prevê instalar  uma Comarca, colocar um juiz de garantias e evitar os constrangimentos com as longas deslocações.  A identificação das áreas para a instalação das comarcas foi feita de acordo com o estudo da densidade populacional e da proximidade, de modo a garantir uma justiça cada vez mais próxima do cidadão. É um processo que já está em curso. Há, nesta altura, a colaboração dos órgãos do Estado para a criação de condições para o fornecimento de viaturas. Recentemente, recebemos algumas que vão minimizar essa carência de transporte.

 O país tem quantos juízes de garantias?

Estamos com 359 juízes de garantias, dos quais, 177 já em funções. Os restantes, nomeados recentemente, deverão tomar posse a qualquer momento. Estamos apenas a criar condições para que o fundo salarial seja regularizado e esses juízes entrem em funções. Não vão apenas desempenhar funções de juízes de garantias, mas desenvolver também outras tarefas tendo em conta o volume processual nas Comarcas.

Esse número cobre as necessidades em função do volume de processos?

Se tivermos em atenção o rácio da população e o número de processos que recebemos, esse número ainda é insuficiente. Mas, se com 177 juízes temos dado conta da situação e as coisas estão a funcionar,  com mais 182 vai haver um aumento substancial e uma melhoria constante. Com este número, estaremos mais ou menos bem servidos. Não é o desejável, mas é  suficiente, num primeiro momento, para darmos satisfação às necessidades que hoje a tutela jurisdicional clama, sobretudo, nesta fase. Por isso, a formação é um processo contínuo.

O CSMJ só se preocupa com a formação dos juízes?

Não podemos só pensar nos juízes, mas também nos funcionários, aqueles que trabalham com os juízes, que no dia a dia lidam com a própria gestão do processo, que praticam os actos em geral de secretaria e que, sem eles, os magistrados podem não funcionar. Então, é um processo contínuo e, enquanto existirem verbas financeiras, o quadro de pessoal vai aumentando, de modo a optimizar os serviços e garantir que haja zero pendência no futuro. 

Esses magistrados estão distribuídos em todas as províncias?

Os juízes que foram nomeados no início do ano  foram colocados em todas as comarcas do país. Temos 64 comarcas, com apenas 37 a funcionar, onde os juízes foram distribuídos proporcionalmente, de modo a garantir que funcionem sem sobressalto. É claro que Luanda tem o maior índice de litigiosidade, a  procura da tutela penal é maior, tendo em conta a densidade populacional e um terço da população prisional. Mas, a nível das outras províncias, tem sido dada a mesma atenção.

 

Como é feita a distribuição dos magistrados nas comarcas?

É feita em função do movimento processual  e tendo em conta as estatísticas. Distribui-se vários juízes numa só comarca para dar vazão à procura e à necessidade de se resolver os processos que se encontram a tramitar nela. Por exemplo, numa Comarca podem ser colocados quatro a cinco juízes, e noutra, oito a dez , além dos que já existem. Portanto, depende muito do volume processual. E, com isso, fez-se uma distribuição proporcional de modo a garantir que todas recebam o número necessário para garantir o seu bom funcionamento. 

Ainda se impõe a questão da melhoria dos salários dos juízes?

Sim. A melhoria das condições sociais e de trabalho, de remuneração, não só dos magistrados, mas dos funcionários, é uma necessidade. Aliás, o país vive isso e, neste domínio, o CSMJ trabalhou no pacote legislativo da orgânica e também do Estatuto Remuneratório dos magistrados e funcionários judiciais, a fim de permitir que este pacote legislativo seja apreciado pelo Conselho de Ministros e, depois, submetido à Assembleia Nacional  para aprovação. Como sabe, a remuneração dos magistrados judiciais tem que ser fixada única e exclusivamente por Lei. É um processo que está em curso e o primeiro elemento são as medidas legislativas que vão permitir a alteração do Estatuto Remuneratório e, com isso, ver melhorada esta parte.

 "Actualmente temos um sistema de justiça penal mais funcional"

Hoje isso já não acontece?

Hoje não. A aprovação  do Código do Processo Penal, em 2020, veio alterar o quadro com vista à simplificação e garantia de que essas medidas sejam analisadas e apreciadas dentro da razoabilidade esperada. Foi atribuída competência de conceder o habeas corpus ao juiz presidente da Comarca. Portanto, o interessado pode escrever para o juiz de Comarca, este vai apreciar os fundamentos e, depois, tomar a decisão que lhe cabe em função dos argumentos apresentados, ou pelo próprio arguido, ou por outro ente interessado na instrução do processo.

Apesar dos avanços de que fala, ainda há muitos cidadãos que não confiam na justiça. Tem conhecimento disto?

É normal que um ou outro cidadão diga que não confia na justiça, porque nem sempre agrada todos.  Mas hoje devemos informá-los que a justiça está a ser feita. Actualmente, temos um sistema de justiça penal mais funcional, em que o cidadão, sempre que vir os seus direitos violados, tem garantias impugnatórias,  não só de recorrer ao juiz de garantias para reclamar alguma medida que tenha sido aplicada pelo Ministério Público ou de algum excesso, por exemplo, como também das decisões dos juízes de garantias. E, por isso, há aqui uma espécie de reforço das garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos que, a todo tempo, se verificada alguma situação de injustiça, ilegalidade ou de alguma inconstitucionalidade nos actos que  foram praticados, têm o direito de recorrer à tutela jurisdicional efectiva, por via do juiz de garantias ou do juiz presidente da Comarca.

Que apelo é que deixa? 

Os cidadãos devem confiar na justiça. Aliás, nos Estados de Direito, a justiça estadual é aquela que todos preferem e vinca para efeito da tutela dos direitos penais. Por isso, reitero o apelo para que continuem a acreditar na justiça, pois não há melhor caminho do que o sistema judicial que hoje está a ser construído com a perspectiva de melhoria nos próximos anos. Por outro lado, devem participar na administração da justiça, denunciando por exemplo, os actos violadores dos direitos, liberdades e garantias fundamentais junto das instituições competentes. Cada um, ao seu nível, tem que colaborar para que a justiça seja feita.

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