Opinião

O clamor do livro e o grito do pão

Ngola Nobre

Colaborador

Comecei a lidar com livros ainda em tenra idade, em Malanje. Minha memória conserva um episódio doméstico bastante curioso: meu pai, professor do ensino primário, armazenava na estante da sala obras de diversos géneros, dentre elas um antigo livro:“O Nosso Dicionário”. Do outro lado estava uma tarimba de alimentos.

04/05/2024  Última atualização 12H30

O meu olhar entre as duas exposições estava muito mais fixado na tarimba dos alimentos. Por vezes, meu pai lia um livro e seus olhares convidavam-me a fazer o mesmo.

Lembro-me de um amigo do meu pai ter frenquentado a nossa casa com o objectivo principal de consultar o "O Nosso Dicionário”. Quando completei 14 anos compreendi a verdadeira importância daquele livro.

Li um artigo de um renomado articulista estrangeiro, em que o mesmo dizia que o "estado normal de um cidadão culto consiste na ardente sede pela leitura e na natural necessidade de pesquisa, sobretudo, das questões ligadas às suas origens e cultura”.

Existem defensores que sustentam a ideia de que,para se ler depende da situação social. Para estes, o pão é o pré- requisito para o estímulo à leitura. 

A nossa sociedade está em autêntico conflito entre o livro e o pão. Por vezes os dilemas da vida social nos colocam na escolha de duas opções: ler ou comer? Será que se dedicar à leitura é sinónimo de que o pão está garantido? Não se pode comprar livros e alimentos ao mesmo tempo ou um de cada vez? Se os livros estão caros, os alimentos estão baratos? Estas são questões que colocam em desvantagem o livro.

Apesar da estante de livros estar diante da tarimba de alimentos, não tenho memória do meu pai se preocupar primeiro com a tarimba e depois com a leitura. Nem o seu amigo tinha esta preocupação como requisito para ler. Por esta razão, compreendi que ambos carregavam um forte desejo pelo conhecimento e satisfaziam as suas aspirações independentemente de qualquer circunsntâncias.

Deste modo, percebi que ler é uma questão de mobilizar a consciência.É verdade que precisamos de pão sobre a mesa, mas, se não nos educarmos, o livro ficará na estante como um objecto do museu.

Os líderes de opiniões, encarregados de educação, professores, escritores, jornalistas e demais agentes e instituições devem estimular a sociedade para hábitos de leitura e pesquisa. Um povo que lê cresce em forma triangular: social, cultural e politicamente. 

Tenho um colega na Brigada Jovem de Literatura de Angola-BJLA que todo o dia 23 de Abril compra igual número de livros. Ele afirma que faz isso em homenagem ao  William Shakespeare e Miguel Cervantes, operários da palavra que ele tanto admira.  Na referida data celebra-se o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor. É igualmente o dia do nascimento e da morte destes renomados autores. 

Todos grandes autores marcam a vida de bons leitores. Não ler os seus escritos constitui um atentado à intelectualidade. Sempre que vou à Biblioteca Nacional e da União dos Escritores Angolanos sinto que os livros clamam por leitores.

Por outro lado, tenho estranho pressentimento de que o pão grita em alta voz por saber que está a ser consumido agressivamente e o livro de modo moderado. Por isso, temos de mobilizar a mente e criar um programa para que o livro se torne na nossa agenda como o pão diário e seja um bem valioso como qualquer alimento.

 

*Secretário-Geral da Brigada Jovem de Literatura de Angola-BJLA

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