Entrevista

“Preservação de valores culturais deve iniciar na família”

O resgate dos valores morais e cívicos, bem como a preservação da cultura são processos que devem iniciar no seio da família, por ser o núcleo de qualquer sociedade, defendeu o director do Gabinete Provincial do Uíge da Cultura, Turismo, Juventude e Desportos, Gomes Lino Costa, na entrevista que a seguir se publica.

24/03/2024  Última atualização 10H30
Lino Costa, director provincial do Uíge da Cultura © Fotografia por: DR
Como encara a questão do resgate dos valores morais e a preservação da cultura na província do Uíge?

É com muita seriedade e preocupação, pois não há um povo sem identidade cultural. A cultura é uma bandeira, é uma origem, é uma identidade inalienável que todos devem carregar. O resgate dos valores morais e culturais é tarefa de toda a sociedade, mas devendo, em primeira instância, partir do seio das famílias, além do papel que outros actores sociais devem igualmente exercer, como são os casos das autoridades tradicionais, professores e líderes religiosos.

Estão a ocorrer muitos fenómenos contrários aos valores culturais endógenos?

Nos dias de hoje, estão a ocorrer muitos fenómenos sociais que representam desvios comportamentais e que trazem práticas nocivas no seio das famílias. Estou a falar, por exemplo, do abuso sexual contra menores, o incesto e outros fenómenos que estão a ser encarados com muita preocupação e como um problema social.

As novas tecnologias e o uso das redes sociais têm alguma influência nisso?

O desvio comportamental está, também, associado ao mau uso das redes sociais, porque a influência digital leva o indivíduo a optar por um comportamento que pode ser bom ou mau. Daí o nosso apelo aos progenitores, para não darem liberdade total aos filhos no uso das redes sociais. É fundamental que haja limites.

A nível do sector que dirige, o que está a ser feito para se evitarem os desvios comportamentais?

Estratégias existem e se consubstanciam, fundamentalmente, na realização de acções de sensibilização dirigidas à juventude. As famílias, as autoridades tradicionais e religiosas, como digo sempre, têm um papel preponderante neste processo. O Gabinete Provincial da Cultura, Turismo, Juventude e Desportos, com os seus parceiros, com destaque para o Conselho Provincial da Juventude, realiza algumas acções neste domínio. Por exemplo, um dos elementos principais é olharmos para o actual estado da juventude, em termos de comportamentos desviantes. Queremos, com isto, congregar jovens de vários estratos sociais, de modo a alertá-los sobre as consequências nefastas da má conduta.

Como está a província do Uíge quanto ao uso das línguas nacionais?

O Uíge está bem neste quesito. Os habitantes falam e conservam as suas línguas locais. Neste momento, embora não seja de uma forma abrangente, já temos algumas localidades da província onde os professores ensinam na língua Kikongo. Isto indica que estamos a preservar a nossa língua local. Vamos continuar a criar soluções para a eficácia deste processo, apesar da influência das novas tecnologias de informação, que estão a retirar um pouco o papel das autoridades tradicionais na transmissão de hábitos e costumes nas nossas comunidades.

Que factores influenciam o processo de conservação da cultura no Uíge?

São vários os elementos que podemos citar. Vamos destacar o alembamento, que tem sido uma das obras-primas em várias famílias da etnia Kikongo. Por exemplo, quem pretender uma mulher nos municípios de Quimbele, Maquela do Zombo, Milunga e Damba, só para citar alguns, o alembamento é um elemento característico e obrigatório para uma união familiar. Destacamos estes municípios, onde se pode constatar a conservação dos hábitos e costumes adquiridos a partir dos ancestrais.

Ainda assim, há muitos jovens que formam os seus lares sem observar este dever tradicional…

Isso tem muito a ver com a globalização. Se olharmos para as populações que vivem em zonas urbanas, e fazendo uma análise comparativa com as comunidades, que vivem mais afastadas das cidades, vemos que encaram este elemento cultural, o alembamento, de forma diferente. Quem está na cidade acha pejorativo trazer a realidade dos nossos antepassados, que é o alembamento, mas para as pessoas que vivem nas comunidades rurais, isso faz parte dos usos e costumes e o seu cumprimento é obrigatório.

Qual é a realidade do teatro na província?

O teatro na província está em crescimento. Se olharmos um pouco para o passado, vamos recordar que o Uíge tinha menos de cinco grupos teatrais. Temos, actualmente, um registo de mais de 50 grupos teatrais, apesar de que grande parte precisa de incentivos para dinamizarem  as suas actividades.

O que significa o prémio arrebatado pelo Grupo MZ-Teatro?

O grupo MZ-Teatro arrebatou, recentemente, o Prémio Nacional de Cultura e Artes em Teatro. Este prémio chama à responsabilidade de todos os agentes culturais na província do Uíge, para trabalharem cada vez mais e melhor, porque o prémio demonstra que houve um crescimento.

Como avalia a música produzida na província?

Há, nesta altura, boa música folclórica, Kizomba e Gospel, a ser tocada e cantada no Uíge. Estamos a crescer neste domínio. Diariamente surgem novos talentos que demonstram alguma capacidade, em termos de composições musicais. Nos últimos tempos, estão também  a surgir alguns estúdios musicais, não obstante muitos não estarem ainda reconhecidos. Mas estão sob o controlo dos nossos agentes da Acção Cultural, que fiscalizam a qualidade das mensagens veiculadas pelos músicos.

Qual tem sido o papel do estúdio em homenagem ao músico Socorro?

O estúdio "Socorro” é um investimento do Governo da Província, que está localizado no quintal do Museu Etnográfico do Uíge. É público, todos os utentes que quiserem fazer uso têm as portas abertas até aos finais-de-semana. Tem condições para se gravar boa música, bem como serviços publicitários. Mas, como sabe, para manter os equipamentos operacionais, é necessária uma manutenção periódica e não tendo uma rubrica voltada para esta finalidade, é importante que se faça uma comparticipação para manter os equipamentos em funcionamento. Não se praticam preços de mercado, mas sim, uma comparticipação simbólica.

Qual é o estado da dança na província?

Vários grupos de dança estão a fazer o registo no nosso Gabinete e posso assegurar que estamos no bom caminho. Quero, contudo, alertar à classe artística, no sentido de se organizar em associações, porque as associações são parceiras directas do Estado. Isso ajudaria na organização de manifestações culturais e os filiados serem inseridos na Segurança Social.

O plano de acção do Gabinete da Cultura para este ano tem, como uma das bandeiras, juntar os artistas à mesma mesa, no sentido de os persuadir em relação à necessidade de haver maior organização.


"Museu Etnográfico aguarda  pelo estatuto orgânico”

Como é que está o projecto de recuperação do acervo do Museu Etnográfico do Uíge?

É um trabalho que já começou e continua. O levantamento está concluído e aguarda-se pela aprovação do seu Estatuto Orgânico, cujos trabalhos estão na fase final. A aprovação deste Estatuto vai trazer um elemento muito importante, que é a criação de uma estrutura que vai fazer funcionar o museu de forma autónoma. O Estatuto vai, igualmente, permitir a nomeação de um director, chefes de departamento e de outras secções. Quando isso estiver concluído, os responsáveis vão trabalhar na recuperação acelerada deste acervo museológico.

Quantas peças existem no museu?

O nosso museu conta, actualmente, com 300 peças museológicas e mais de mil livros, porque o museu do Uíge comporta, também, uma biblioteca, a primeira pública que conheço na nossa província, enquanto alguém ligado à Cultura.

Existem peças fora do museu e que precisam de ser recuperadas?

Precisamos recuperar cerca de dez peças que estão à espera de restauração, muitas das quais na fase final. São peças açambarcadas por terceiros, mas graças ao testemunho de algumas pessoas, foi possível chegar até onde estavam as peças e negociar o seu retorno. As que se encontram fora do país, o processo é o mesmo.  Temos estado a interagir com as nossas fontes.

Tem havido interesse nas pessoas em visitar o museu?

A adesão é satisfatória. Diariamente, recebemos visitas.  Elaboramos um programa, para facilitar as instituições públicas, privadas e pessoas singulares saberem um pouco mais sobre o nosso acervo cultural.

Sobre o turismo, como é que a província do Uíge está?

Somos uma província abençoada em termos de recursos naturais, temos, neste momento, mais de cem locais turísticos já catalogados e o processo de catalogação de novos sítios prossegue, de modo a agregarmos valor acrescentado ao que já existe.

Que políticas públicas existem para a dinamização do turismo?

A dinamização do turismo na província passa pela divulgação do seu potencial. Temos vários recursos turísticos naturais já localizados e que precisam de ser explorados e divulgados. Por isso, o gabinete local da Cultura está a criar condições favoráveis para a abertura de um centro de informação turística e a capacitação de guias turísticos, de modo a facilitar os interessados no acesso aos vários encantos existentes na região. O centro estará ligado ao Gabinete da Cultura e poderá funcionar no Museu Etnográfico do Uíge.

Para o funcionamento do centro, o Gabinete está a criar um roteiro turístico, onde vão constar todas as imagens e informações de locais turísticos da província, como a localização geográfica, distâncias e a natureza de cada um dos sítios. O roteiro  depois da sua conclusão será, também, distribuído nas unidades hoteleiras, de modo a que o turista antes de chegar ao centro de informação, em qualquer hotel onde estiver possa entrar em contacto com algumas informações preliminares. A par disso, vamos formar guias turísticos que conhecem os locais e o histórico de cada zona. Neste momento, contamos apenas com dez guias já capacitados, número inferior para se dar resposta às necessidades.

Quais são os locais que mais chamam atenção aos turistas?

Temos a Lagoa do Tedi Tedi e a Gruta do Mpambo - a Nsinga Nzambi, ambos no município do Bembe; a Gruta do Nzenzo, que é o maior cartão postal da província, por ter sido eleita uma das Sete Maravilhas de Angola, no município de Ambuíla; as quedas de água na comuna do Wando, no Mucaba, o Cemitério dos Reis, as figuras rupestres de Cabala, a Lagoa do Feitiço, no município do Quitexe, a Lagoa do Mufututo, no município do Songo, entre outros.

Há condições para a mobilidade dos turistas?

Este é um dos grandes problemas. Sabe-se que temos dificuldades de acesso em algumas localidades. Recentemente, fizemos a catalogação de alguns pontos turísticos, cujos acessos são precários, como o caso  das quedas do rio Luanga, na localidade de Camancoco, município do Uíge. Recebemos garantias de que será feita uma intervenção rápida na referida via, bem como do troço de três quilómetros do Cabari até ao rio Luanga, porque são recursos turísticos muito próximos da cidade do Uíge.

O Governo trabalha em colaboração com agências de turismo?

Sim. Temos, neste momento, a surgirem duas ou três agências de turismo e estamos a fazer contactos com a Tregogel, que é uma das maiores agências turísticas e com ela temos um "expert” em turismo. Costumamos dizer, nos meandros turísticos, que o senhor Cândido Carneiro, proprietário desta agência, conhece o país e a nossa ideia é trazê-lo ao Uíge.

Existem políticas públicas que possam apoiar as iniciativas dos empresários que pretendem investir neste domínio?

Sim, políticas existem, julgo que falta, por parte dos empresários, o espírito de iniciativa. Tenho dito que o importante é começar, para depois o governo quando olhar a iniciativa do empresário, decidir se pode ou não apoiar. Por exemplo, a construção de um pequeno restaurante, um resort ou esplanadas, são iniciativas boas que podem merecer um impulso, por parte do governo local.

Sobre a juventude, que políticas estão a ser implementadas para dar resposta às várias inquietações, sobretudo no domínio da habitação?

No âmbito dos vários programas do Governo, a juventude não foi esquecida. Por exemplo, se olharmos para o programa habitacional, grande parte dos beneficiários na Centralidade Horizonte do Quilomosso são jovens. O projecto do Catapa, apesar de não ter terminado, deu moradia a muitos jovens. Face a isso, o Governo provincial concebeu um projecto de loteamento de terrenos em algumas reservas fundiárias, sobretudo na sede municipal do Uíge, onde os jovens já começaram a beneficiar dos terrenos, para a auto-construção dirigida.

E em que ponto estão as obras de construção da Casa da Juventude?

A obra está a bom ritmo. Recentemente, o governador provincial, José Carvalho da Rocha, terá, até, convidado jovens de vários extractos sociais a visitarem as obras de construção da Casa da Juventude e da Mediateca. Estamos a trabalhar no sentido de resolvermos a carência de salas de teatro, por isso, dentro de dias vamos trabalhar na recuperação de algumas salas já existentes na região.

PERFIL

Nome completo:  Gomes Lino Costa

 

Filiação:  António Costa e Isabel Lino

 

Formação académica: Licenciatura em Língua Portuguesa pelo Instituto Superior de Ciência da Educação do Uíge (ISCED)

 

Outras Formações: Formado em Artes Cênicas, pela Escola de Artes da Baía, no Brasil e pela Companhia de Artes Horizonte Njinga-Mbandi, em Luanda. É, também, jornalista de profissão.

Funções:  Já exerceu, entre outras funções, as de chefe do Departamento de Comunicação Institucional e Imprensa do Governo da Província do Uíge, chefe do Departamento do Turismo do Gabinete Provincial do Uíge da Cultura e administrador municipal-adjunto do Uíge para  a  Área Social

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