Entrevista

Salgado Maranhão considera a voz poética a mais alta dimensão da língua

Isaquiel Cori

Jornalista

É um dos mais importantes poetas do Brasil, distinguido com os principais prémios literários do seu país (Jabuti, Pen Clube e da Academia Brasileira de Letras), com livros traduzidos e publicados em várias línguas e estudados em prestigiosas Universidades do seu país e dos EUA.

18/02/2024  Última atualização 12H30
Salgado Maranhão, poeta e compositor brasileiro © Fotografia por: DR

Salgado Maranhão é, igualmente, compositor de reconhecidos dotes, com parcerias firmadas com cantores renomados. Também é jornalista. Conhecemo-lo nas redes sociais, meio em que, depois de várias conversas, realizámos a entrevista que a seguir se publica. O poeta valoriza de tal forma a poesia que a considera "a mais alta dimensão da língua”. Afirma conhecer a poesia angolana e diz que alguns dos poetas angolanos "estão a produzir uma das melhores poéticas do mundo actual”

Considera-se um poeta profissional? A poesia para si é uma necessidade de sobrevivência espiritual, tanto quanto de sobrevivência material?

Considero-me um poeta em tempo integral. Aquele que não sabe ser de outro modo. Um jeito de olhar a realidade e suas implicações na minha existência e na dos demais. A poesia é essa forma de linguagem verbal que raspa o fundo do inconsciente humano naquilo que ele é mais profundo e inconfessável. Deste mergulho vêm as paixões circunstancias, vêm as questões míticas e simbólicas, vêm os conflitos políticos e as alegrias e tristezas da vida corriqueira, que o poeta põe em palavras como uma necessidade vital de expressar-se e de afirmar-se como indivíduo, através da voz poética, que é a mais alta dimensão da língua.

 
Como é que se tornou ou se descobriu poeta? Alguém o fez acreditar nisso?

Eu nasci em uma comunidade muito humilde do Nordeste brasileiro (estado do Maranhão), de família camponesa, onde as relações quotidianas não tinham mediações sofisticadas. Não havia médico, advogado, juiz, polícia, nem escolas. O equilíbrio da vida de relações acontecia através dos mais velhos. Quando isso falhava, ocorriam sérios conflitos, o choque dos contrários era iminente. Minha sábia mãe, que não possuía qualquer instrução formal, era a cirurgiã do lugar (operava os contendores feridos à faca). Só duas vezes por ano um padre passava por lá para fazer baptizados e casamentos. Porém, nessa comunidade havia uma cultura popular muito forte. Danças e cantos tradicionais de origem africanos e cantadores repentistas foram minhas primeiras influências poéticas. Como não havia a figura do livro, a língua era puramente ágrafa, transmitida por via da memória. Só aos 15 anos de idade, eu fui viver na capital de um outro estado (Piauí), onde descobri a leitura da poesia canónica e nunca mais fui o mesmo. Camões, Gonçalves Dias, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Baudelaire e tantos outros mais, abriram-me as portas da palavra iluminada.

 
O enorme mercado livreiro brasileiro é, por si só, garantia para um determinado autor viver da venda dos seus livros?

No Brasil (e creio que em muitos outros países), não é possível sobreviver somente da produção de poesia. Há que se exercer uma outra profissão para manter-se a si próprio e à família. Porque, ainda que a população brasileira seja grande, o leitor de poesia é sempre um grupo reduzido em relação ao mercado livreiro, poiss que a linguagem poética, por sua densidade e sofisticação, não é alcançada por todos. Normalmente, o trabalho do poeta está ligado ao magistério e ao funcionalismo público em geral. No meu caso, sou jornalista, mas, actualmente, vivo de fazer minhas palestras dentro e fora do país. Além da actividade de compositor popular para artistas de sucesso.

 
Sabemos que valoriza muito a poesia escrita nos países africanos de língua portuguesa. Este ponto de vista deriva do seu lado afrodescendente ou é o resultado de uma leitura crítica?

Sim, é verdade. Não é de hoje que eu presto atenção na poesia africana de língua portuguesa. Desde a geração de Agostinho Neto, Noémia de Sousa, David Mestre, José Craveirinha, Corsino Fortes e tantos mais. Porém, quando a minha amiga brasileira, Denira Rozário, na década de 1990, fez uma antologia com a recente poesia de Angola e Cabo Verde, eu vi a grande qualidade literária desses poetas. A propósito de terem recém-saídos de uma guerra terrível, não buscaram o caminho do panfleto nem da vitimização. Ao contrário, aprofundaram, de forma original e equilibrada, o mergulho na larguíssima tradição mítica africana, com um domínio invejável da norma culta da Língua Portuguesa, por vezes, mesclada com termos dos idiomas originários. Não tenho a menor dúvida que estão a produzir uma das melhores poéticas do mundo actual.


O que é que conhece do panorama actual da poesia desses países, particularmente de Angola? Nomes, livros… Tem contactos com poetas desses países?

Os escritores actuais africanos conheço vários. Alguns vão muito ao Brasil - como Ondjaki, Agualusa, Lopito Feijó, Ana Paula Tavares - outros, eu  tenho-os  encontrado nos eventos em que participo na Europa e nos EUA. Tenho falado, com uma certa frequência, com o João Melo, que foi ao lançamento do meu livro em Lisboa, em 2022, depois, nos encontramos, em 2023, em Washington. Devo dizer que muito me alegra interagir com meus irmãos africanos, pela identidade estética e pela força da origem. Há pouco mais de um mês, Ana Paula Tavares veio ao Rio de Janeiro e eu fui-lhe dar um abraço. Foi um reencontro de afecto e admiração à grande dama da poesia angolana.

 
Como encara a afrodescendência? Como um lugar simbólico e imaginário, como uma condição ou ainda como uma situação?

Encaro a afrodescendência como um património simbólico e imaginário, que, ao mesmo tempo, se impõe como uma condição histórica relevante. Uma condição que já é, por si só, uma bandeira hasteada com múltiplos significantes. Quem vir um homem ou uma mulher de cor, depara-se com duas realidades sobrepostas: a de um indivíduo livre e autónomo nos dias de hoje que, há pouco mais de um século, seus ancestrais eram escravos. Por isso, é tão difícil o processo de integração, porque, quando o próprio indivíduo consegue superar o seu trauma, a sociedade trata de lembrá-lo com a prática abominável do racismo. Por outro lado, a poesia, na sua incessante busca de desvendar a alma humana,  compraz se desses confrontos reais, em que o alargamento da percepção alcança o ouro das profundezas.

 
A sua poesia é amplamente reconhecida no seu país e tem sido traduzida em várias línguas. É estudada em universidades nos EUA e na Europa. Quais são as suas metas enquanto criador?

Minhas metas como criador seguem sendo as de sempre: produzir novos livros e comover o leitor tanto quanto possível. A quantidade deles não depende de mim, bem como o reconhecimento do que faço. Contudo, fico feliz com o alcance que a  minha poesia tem auferido dentro e fora do meu país. Nos últimos 12 anos, estive várias vezes nos EUA, convidado por mais de 100 universidades, em 35 estados americanos - palestrando e lançando os cinco títulos que tenho por lá, traduzidos pelo grande tradutor, Alexis Levitin.

 

O Mundo está numa encruzilhada. A palavra guerra abre diariamente os noticiários na televisão e está na capa dos jornais. As imagens de morte e destruição correm o mundo. O que é que um poeta pode fazer diante dessa realidade? A poesia ainda faz sentido?

O mundo, em sua longuíssima história, desgraçadamente, nunca viveu sem guerra. Heráclito de Éfeso já nos disse que a guerra é a origem de tudo. É, sem dúvida, uma afirmação muito dura. Porém, nossa compreensão sobre este facto já não é a mesma: cresce, a cada dia, o número de descontentes com ele. E como o descontentamento é o motor da mudança, a poesia servirá sempre para expressar este mal-estar da existência, enquanto o humano existir.

 




Já esteve em África? Tem planos de vir a Angola?

Ainda não tive a oportunidade de visitar a  mãe África, a nem um país, mas, acalento este sonho há muito tempo. Algo me diz que estou perto de realizá-lo. Há mais de um ano, levei o Mia Couto a um evento literário, que promovo no Nordeste do Brasil, e ele sugeriu que me convidaria a Moçambique, mas, ainda não ocorreu. De qualquer modo, eu sigo sonhando. O tempo é o senhor da razão.

 
O que nos pode dizer, resumidamente, a respeito do cenário actual da literatura no Brasil?

A actual literatura produzida no Brasil está passando por um momento de rápida transformação. Novos actores que antes eram impensáveis no debate literário, tais como a mulher negra e os indígenas, estão a ter voz activa e dizendo suas experiências de uma forma nova. Pela primeira vez na história da Academia Brasileira de Letras, um indígena assume uma cadeira. O que resultará desse movimento das peças no tabuleiro, precisamos esperar para ver, o vôo é sempre livre, só o destino é que não é.


Como é que os seus poemas são musicados: são adaptados para a música ou escritos especialmente para serem musicados?

Meus poemas são adaptados para virar canções de várias maneiras. Por exemplo: o compositor Ivan Lins musica poemas meus que já estão em livros ou então eu escrevo letras para ele musicar. Com o Martinho da Vila, também, levo o poema já com um certo ritmo para entrar a melodia. Às vezes, nos reunimos para trabalhar juntos. É uma actividade instigante e prazerosa.

 

Pode se dizer que a música realça a poeticidade do poema?

Não há a menor dúvida de que a música dá realce às palavras do poeta. Porém, não é qualquer poema que funciona numa canção. Muitas vezes, um poema com muita densidade verbal, com palavras difíceis, fica pesado para virar música e difícil de cantar. Outras vezes, uma letra, aparentemente frágil, gera um casamento perfeito com a melodia e ambas ganham asas e o coração de quem escuta. É tudo um grande mistério, que se resume à palavra adequação: não se deve ir à praia com roupa de festa; nem à missa com roupa de banho.

 

O poeta angolano, Manuel Rui, diz que prefere escrever já em cima da melodia. Qual é o seu método de composição musical?

Mando um forte abraço ao grande poeta Manuel Rui, que conheci, pessoalmente, nas Correntes D’Escritas, em Portugal. Eu também costumo trabalhar a letra sobre a melodia. Neste momento, estou a escrever uma para um xote do meu parceiro Ivan Lins. É um trabalho meticuloso, de ajuste técnico preciso, porque música é matemática e as tónicas verbais têm que cair nos lugares certos. Além de respeitar o sentimento que a melodia está pedindo.

 

Tem cantores para os quais escreve letras especialmente?

Eu e meus parceiros temos feito muitas músicas a pedido de cantores ou cantoras. Claro, é necessário entrar na atmosfera do artista. Já fiz letras com esse fito para a Elba Ramalho, para Ney Matogrosso, Dominguinhos, Zeca Baleiro e tantos outros.


Biobibliografia

Salgado Maranhão é o pseudónimo literário de José Salgado Santos Costa, nascido em Caxias –estado do Maranhão Brasil- aos 13 de Novembro de 1953. Na adolescência, mudou-se com a sua família para Teresina, no estado do Piauí. Muito cedo, começou a trabalhar, empregando-se como faz-tudo numa cadeia de lojas, passando a frequentar a biblioteca local diariamente. Encantou-se pela poesia, principalmente, com a obra de Fernando Pessoa. Em busca de reconhecimento, migra para a cidade do Rio de Janeiro, onde estuda Comunicação e Letras e dedica-se ao Tai Chi Chuan, uma arte marcial de origem oriental, de que se torna mestre. Enquanto compositor, fez parcerias com os músicos Paulinho da Viola, Alcione, Ivans Lins, Elba Ramalho, Ney Matogrosso, Martinho da Vila, Elton Medeiros, Zeca Baleiro e outros.

Em 1998, recebeu o Prémio Ribeiro Couto da União Brasileira dos Escritores. Nesse mesmo ano, publicou "Mural de ventos”, agraciado no ano seguinte com o Prémio Jabuti. Em 2011, foi distinguido com o Prémio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com o livro "A cor da palavra”. Em 2014, recebeu o Prémio Pen Clube de Poesia, pela publicação de "O mapa da tribo”. Em 2016, foi novamente vencedor do Jabuti com o livro "Ópera de nãos”. Em 2023, publicou a colectânea de poemas em alusão aos seus 70 anos "A voz que vem dos poros”. Tem poemas traduzidos para o inglês, italiano, francês, alemão, sueco, hebraico, japonês e esperanto.

O crítico brasileiro, Vagner Amaro (citado em letras.ufmg.br/literafro/autores/416-salgado-maranhao), afirma ser a poesia de Salgado Maranhão tão universal quanto a de Fernando Pessoa e arremata: "Dos poros que a voz poética de Salgado ressoa, uma característica ancestral e afrodiaspórica se faz presente (…). É deste ponto de vista que o autor apresenta a sua pluralidade temática, complexa, com destaque para a representação dos animais como recurso poético, a zoomorfização, o afecto pela vida e pelos outros, a sedução, a interiorização dos dramas humanos, a alteridade como forma de encontro, deslocamento e/ou provocação/inspiração para o leitor e a brasilidade ora crítica, ora apaixonada”.

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