Sociedade

Testemunhos de pais que têm filhos com Transtorno do Espectro do Autismo

Alexa Sonhi

Jornalista

Enzo Martins nasceu em 2016. Tal como a irmã mais velha, o menino nasceu lindo, cabelo farto, rosto angelical e cheio de vida. Tudo nele parecia normal e, tão fofo que era, sempre deu gosto de ser carregado ao colo.

02/04/2024  Última atualização 07H29
Depois de quase cinco anos de terapia, o menino já consegue pronunciar frases curtas © Fotografia por: DR

Mas, em 2018, as coisas começam a mudar. Nessa altura, Enzo estava com dois anos de idade, e a mãe, Edna Cauxeiro, levou o filho para uma simples consulta de pediatria. Ao observar o bebé, o médico pediatra informou-lhe que, pelo comportamento, tudo indicava que o menino tinha Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

Apesar de já ter ouvido falar da doença, ao escutar o comentário do pediatra sobre o filho, a reacção foi de negação. Não queria acreditar que o seu lindo menino e, até então o único rapaz, pudesse ter esta patologia.

Como o médico pediatra já estava acostumado a estas situações, acalmou-a e disse ser uma reacção normal, mas que, com o passar do tempo, ela acabaria por lhe dar razão, era só estar bem atenta ao comportamento do filho.

Edna deixou o consultório preocupada e revoltada. Para ela, o médico estava maluco. Entretanto, desde aquele dia começou a prestar muita atenção a todo o comportamento do filho e viu que ele tinha quase todos os sinais de autismo que passou a ler na internet.

Enzo alinhava os brinquedos e se estressava se alguém tirasse um do lugar. Brincava sozinho, não falava, parecia surdo, porque não reagia quando chamassem por ele. Tinha movimentos repetitivos como abrir portas e gavetas várias vezes, gritava de repente, não falava, entre outros comportamentos.

Confirmação do diagnóstico

Com o tempo, Edna acabou por perceber que o médico pediatra estava coberto de razão. Por isso, decidiu levar o filho a uma clínica especializada onde foi confirmado o diagnóstico. Enzo Martins tinha de facto Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

"Chorei que nem uma bebé. Sobretudo, porque os preços praticados na clínica não estavam ao meu alcance. As terapias custavam mais do que o meu salário e eu não tinha hipótese de contar com o apoio do ex-marido e pai do meu filho, que sempre fugiu dessa situação”, lamentou.

Antes de começar a fazer a terapia, Edna conta que Enzo se auto-mutilava, arranhava o rosto, até sangrar, e batia a cabeça contra a parede ou no chão. Com estas reacções, ela percebeu logo que o filho lhe estava a pedir socorro. Por isso, foi atrás de terapeutas que o bolso lhe permitia pagar e conseguiu.

"Gasto tudo o que tenho. Sozinha. O pai limpou as mãos. Houve meses em que não comprei comida para poder pagar as terapias. Felizmente, sempre apareceram anjos em forma de pessoas para ajudar. Ando a pé, debaixo de sol e de chuva, enfrento as enchentes nas paragens, mas nunca vou desistir do meu filho”, assegurou, visivelmente emocionada.

 
Filho está mais tranquilo

Edna conta que hoje, graças a Deus, o filho está mais tranquilo. Fala pouco, mas já consegue ouvi-lo dizer palavras ou frases curtas. "Houve alturas em que o meu sonho era ouvi-lo dizer: "mamã”. Agora entrego-lhe uma caneca azul e ele diz: "não! Verde”.

A mãe do Enzo encontrou uma boa clínica e escola que, apesar de caras, produzem excelentes resultados, porque, hoje, o nível de autismo do menino é moderado. Ele está a fazer terapias duas vezes por semana, por ser o que a mãe consegue pagar na clínica, onde inicialmente desembolsava 129 mil kwanzas.

Na escola especial, Enzo entrou com quase seis anos (hoje está com sete) e ainda não tinha o desfralde completo. Nesta instituição, ensinaram-lhe a fazer "pum pum” na sanita e a higienizar-se como deve ser. "Hoje, o Enzo é uma criança independente, tranquila. Toma banho sozinho (mal, mas toma), veste-se e calça sozinho, é obediente, a compreensão também está óptima, quase 100 por cento, e a desenvolver a tolerância às mudanças de rotina, que é algo muito difícil para um autista”, explicou.

Questionada sobre o valor da propina na escola, além das terapias, Edna disse que, por mês, gasta 150 mil kwanzas e mais 26.500 pelo transporte que leva o filho de casa para a escola e vice-versa.

Mas, por ser uma mãe que luta pelo bem-estar do filho, não falta às terapias, a direcção da Clínica ofereceu a terapia da fala. Agora apenas paga a terapia com o psicólogo, que, ainda assim, é cara.

Edna Cauxeiro reitera que o facto de ser mãe, em si, já lhe faz abrir mão de muita coisa. Mas ser progenitora de um autista ensinou-a a lutar, a perder a vergonha, a pedir ajuda e a não desistir. "Tenho frustrações e momentos tristes. Mas só duram algumas horas. Recuso-me a ficar no chão por muito tempo”, assegurou.

 
Apoios do Estado

Devido aos custos das terapias e escolas especiais para ajudar crianças com necessidades especiais a serem independentes, Edna Cauxeiro apela ao Estado que apoie as famílias que têm pessoas com esse e outros transtornos. "Cuidar de pessoas especiais não é fácil, nem barato. Porque o dinheiro que sobra não chega para uma mãe de um autista pagar um terapeuta para ela mesma”, disse.

Segundo Edna Cauxeiro, quem cuida de pessoas especiais também precisa de ser cuidada. "E, por falta de apoio, cuido de mim como posso, faço terapia a mim mesma. Mas desistir de mim ou do meu filho não está no meu dicionário”, concluiu.

Edna Cauxeiro aconselha os outros pais com filhos autistas a não terem vergonha de assumir a situação. Devem falar sobre a doença, pedir ajuda, não esconder o filho, porque, quanto mais cedo começarem as terapias, mais depressa a criança supera algumas debilidades.


MÉDICO NEUROPEDIATRA
Número de casos tende a aumentar

O serviço de neuropediatria da Clínica Girassol, em Luanda, diagnostica, em média, 50 a 60 casos de autismo em consultas, por mês, segundo o médico neuropediatra que presta serviço na instituição, Walter Diogo.

Ao Jornal de Angola, Walter Diogo explicou que, se forem visitadas outras unidades sanitárias, os números serão altos, porque os casos de autismo tendem a aumentar a nível do país e do mundo.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a nível do mundo existem mais de 70 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e uma em cada 36 crianças apresentam traços da doença.

O especialista em neurologia pediátrica define o autismo como sendo o distúrbio que ocorre a nível do neurodesenvolvimento e caracterizado por desenvolvimento atípico, manifestações comportamentais, défices na comunicação, na interacção social, padrões de comportamentos repetitivos e um repertório restrito de interesses.

Walter Diogo explicou que o autismo nunca aparece sozinho. Em regra, nas crianças está sempre acompanhado do transtorno do défice de atenção, hiperactividade, pulsividade, dificuldades motoras e crises epilépticas.

Já na fase adulta, prosseguiu, pode apresentar transtornos do ponto de vista psiquiátrico, como depressão, ansiedade, esquizofrenia, distúrbio do sono e desvio de conduta.

De acordo com o especialista, os sinais de alerta surgem nos primeiros meses de vida, mas é importante que a confirmação do diagnóstico da doença seja feita entre os dois e três anos de idade.

Porque, acrescentou, nesta fase, o cérebro sofre um processo de neuroplasticidade que deve ser estimulado desde  tenra idade, a fim de se obterem resultados eficazes muito mais cedo.

Segundo o médico, a maioria das crianças aparece nas consultas de neurodesenvolvimento a partir dos três anos, um ano depois do indicado pela literatura, e isso, muitas vezes, dificulta o progresso dos pacientes.

"Logo, quanto mais cedo se diagnostica o autismo, mais cedo se começam com as terapias, quer seja da fala como do comportamento, para tornar a criança mais independente, quer do ponto de vista emocional como físico”, realçou.

 
Tipos de autismo

O médico Walter Diogo esclareceu que existem três tipos de autismo, nível um ou leve, dois ou moderado e o três ou severo. No nível leve, a criança precisa de pouco apoio, no nível dois, a necessidade de apoio aumenta, já no nível severo, essa necessidade é elevada, implicando, às vezes, o uso de medicamentos para controlar as crises.

Nos três casos, adverte o médico, é importante que as crianças comecem cedo as terapias, para que possam progredir.

Sobre os sinais da doença, Walter Diogo disse que, em regra, as crianças com autismo apresentam atraso anormal na fala, não respondem quando são chamadas, demonstram desinteresse pelas pessoas  à sua volta e objectos, têm dificuldades em participar em actividades e brincadeiras em grupo, preferem sempre fazer tarefas sozinhas e não conseguem interpretar gestos e expressões faciais.

Outros sinais apresentados são as dificuldades para combinar frases ou repetí-las com frequência. Incomodam-se diante de ambientes e situações sociais, apresentam movimentos repetitivos e incomuns, como balançar o corpo para a frente e para trás, bater as mãos, coçar algumas partes do corpo (como ouvidos, olhos e nariz), pulam de forma repentina, reorganizam objectos em fileiras ou em cores.

 
Causas e tratamento

Walter Diogo frisou que ainda não se sabe ao certo o que ocorre com o cérebro das pessoas autistas, mas alguns estudos indicam que factores genéticos, biológicos e ambientais podem estar na base destes transtornos.

De acordo com neuropediatra, o autismo ainda não tem cura. E cada paciente exige um tipo de acompanhamento específico e individualizado, onde a participação dos pais e outros membros da família é muito importante.

As pessoas com autismo, disse, devem ser assistidas por uma equipa multidisciplinar, onde estejam presentes fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos e pedagogos, de forma a incentivar o indivíduo a realizar sozinho as tarefas quotidianas, desenvolver formas de se comunicar socialmente e de ter maior estabilidade emocional.

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