Opinião

A autonomia financeira do Poder Judicial

Sob o lema “Pela concretização da autonomia financeira e modernização da actividade jurisdicional”, abre hoje o Ano Judicial 2024, cumprindo-se, desta forma, não já uma directriz constitucional, como acontece com o início do ano parlamentar, mas sim com um postulado legal previsto no art.º 7.º da Lei 29/22, de 29 de Agosto (Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.

01/03/2024  Última atualização 06H05
O lema em si acaba por ser a manifestação clara da pretensão do Poder Judicial, de uma maneira geral, e de modo mais acentuado e particular dos Tribunais da Jurisdição Comum que reclamam e clamam, há já muitos anos, por uma verdadeira autonomia financeira de modo a poder os dignificar enquanto órgãos de soberania e fazer face aos seus imensos desafios.

Infelizmente, e se calhar por a Constituição da República (CRA) na definição dos órgãos de soberania reservar aos Tribunais o terceiro lugar, estes têm sido tratados como o "parente pobre”, comparados  aos demais, com reflexos visíveis a todos os níveis.

Num dia em que a solenidade do acto é reservada aos discursos das entidades elencadas na lei, nomeadamente o Presidente da República, o Presidente do Tribunal Supremo, o Procurador Geral da República e o Bastonário da Ordem dos Advogados, pela ordem inversa, espera-se que mais do que discursos circunstanciais, essas entidades possam colocar o dedo na ferida, como soe dizer-se, reconhecerem o momento menos bom por que passa o sector e convergirem na necessidade da rápida concretização da autonomia financeira do Poder Judicial.

Vale lembrar que em 2017 o Presidente da República, João Lourenço, na sua investidura ao cargo de mais Alto Magistrado da Nação reconheceu que "a justiça desempenha um papel central no resgate do sentimento de confiança nas instituições do Estado (…)” e em face disso proclamou alto e bom som que iria "atribuir a devida dignidade ao Poder Judicial, cuja importância para o processo de democratização é indiscutível”.

Passados quase sete anos, esperava-se que por esta altura o Poder Judicial já não precisasse mais abrir um Ano Judicial fazendo apelo à autonomia financeira. Infelizmente este continua a ser um grande desafio e um verdadeiro "calcanhar de Aquiles".

Ainda que do ponto de vista económico e financeiro o país de lá para cá tem estado a enfrentar algumas dificuldades, por conta do que ocorre com a economia mundial, era imprescindível, contudo, que se fizesse um esforço maior do que aquilo que tem sido feito até aqui para a concretização desse desiderato.

Por conta da falta desta autonomia financeira que se regista até hoje, os tribunais da jurisdição comum, com realce para os da primeira instância vivem, hoje por hoje, mil e um problemas que têm estado a afectar o seu normal desempenho, podendo isso gerar consequências desastrosas para toda a sociedade.

Para lá da falta de condições condizentes com a dignidade de um órgão de soberania, os tribunais de comarcas já implementados herdaram, na sua maioria, instalações dos antigos tribunais provinciais e municipais, funcionando em edifícios improvisados e adaptados, com carência de quase tudo, desde meios de trabalho a recursos humanos suficientes, num sinal inequívoco do fraco e tímido investimento no sector.

Como reflexo dessa falta de investimento, os juízes, titulares do órgão de soberania Tribunais veem, cada vez mais, as suas condições de trabalho e sociais afectadas. Até hoje os Magistrados Judiciais regem-se por um estatuto orgânico com cerca de 30 anos; têm um estatuto remuneratório com mais de 20 anos, com a maior parte dos direitos e regalias postergados em virtude das dificuldades económicas e financeiras que o país atravessa.

Ao contrário do que acontece com os demais funcionários públicos, os juízes exercem funções exclusivas, estando-lhes vedado o exercício de outras actividades remuneratórias à excepção da docência e investigação científica. Aos Magistrados Judiciais é ainda proibido o recurso à greve e lhes são impostos uma série de condicionalismos para poder manter a reserva da vida privada.

Longe de se pretender evidenciar qualquer superioridade dos Juízes sobre os demais funcionários públicos, é mister reconhecer, porém, que aqueles servidores públicos necessitam de um olhar e atenção diferenciados por serem os agentes do Estado investidos de autoridade pública para administrar a justiça em nome do povo e dirimir conflitos de interesse público ou privado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática.

As decisões proferidas pelos Tribunais, por via dos juízes, são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (n.ºs 1 e 2 do art.º 174.º da CRA).

Como é fácil de se constatar, os juízes desempenham um papel preponderante na concretização do Estado Democrático e de direito, que estamos a construir nesta Angola desde 1992. Tratá-los sem a dignidade que a Constituição e a Lei lhes reserva é, certamente, colocar em causa a sua independência e a subsistência do próprio estado democrático de direito proclamado na CRA (n.º 2 do art.º 2.º da CRA).

É preciso que os cidadãos voltem a resgatar o sentimento de confiança nas instituições do Estado, como aludiu naquela ocasião o Presidente da República, e os Tribunais, neste particular, têm uma palavra a dizer e uma actuação decisiva. A eles cabe fazer cumprir a Constituição e as leis.

Mas para que possam cumprir com este postulado é importante que se lhes dê a verdadeira autonomia financeira que se vai reflectir na sua independência, imparcialidade, dignidade, celeridade processual e um conjunto de vantagens para o bem do cidadão, das famílias, das instituições, ou seja, da sociedade de uma maneira geral.

Com a abertura hoje do Ano Judicial de 2024 e diante do quadro actual por que passam os tribunais da jurisdição comum, com realce para os da primeira instância, é urgente que se concretize a autonomia financeira do Poder Judicial e se aprove com maior brevidade os principais diplomas legais para vida dos Magistrados Judiciais, nomeadamente os estatutos orgânico e remuneratório, que vão ajudar a dignificar os Tribunais e os próprios  juízes, contribuindo estes para que se alcance o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, a contínua aproximação dos serviços ao cidadão e a melhoria da prestação do serviço púbico.

A. Cicato *Jurista

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