Opinião

Ai uê, estragaram o “negócio” da Miloca

Guida Osvalda

Todos os dias, antes de clarear, por volta das 4h00 da manhã, Miloca tem de saltar da cama, arrumar-se rapidamente para as 6h00, pontualmente, chegar no término dos autocarros do Capalanga, Viana. Sair do meio do Capalanga até à paragem exige disciplina rígida, pois se perder o primeiro autocarro, que sai dez minutos antes das seis da manhã, chega tarde ao Largo 1º de Maio.

04/02/2024  Última atualização 10H16

A moça, de 23 anos de idade, quando sobe no autocarro parece uma funcionária pública. Uma executiva que trabalha num escritório. Tem sempre o cabelo preso num coque perfeito e usa roupas elegantes, compradas nos fardos, mas de marca. Miloca é continuamente elogiada no bairro por ter "bom olho” para detectar, no meio dos fardos, as boas peças e as de marcas renomadas.

Sentada confortavelmente num dos bancos do autocarro do trajecto Capalanga/Largo das Escolas, nunca ninguém, jamais, havia de imaginar qual é a ocupação dela: mendigo.

Miloca conhece o significado de mendigo, pedinte, indigente, sem-tecto ou sem-abrigo. Sabe que são pessoas que vivem em extrema pobreza, não conseguindo obter as condições mínimas de salubridade e conforto com meios próprios. E definitivamente ela não se enquadra naquela situação. Ela sabe que em Luanda existem muitas famílias em extrema pobreza que ficam à beira da estrada para mendigar, e umas tantas, como ela, que estão na rua por vigarice.

No Largo das Escolas, no término dos autocarros, a jovem dirige-se por detrás de um quiosque desactivado, situado num espaço entre o edifício da Universidade Católica e as escolas 1º de Maio e Ngola Kiluanje para trocar a indumentária que trouxe de casa. Eram aproximadamente sete da manhã e o movimento no Largo, apesar de não ser ainda frenético, já era considerável. 

Rapidamente, Miloca amarra um pano sujo na cabeça para esconder o cabelo muito bem arranjado. Gostaria de usar tranças postiças. Eram muito mais práticas, mas isso chamaria a atenção das pessoas sobre a sua real condição social. Junto do quiosque troca as roupas elegantes por outras. Mas não é uma muda de roupa qualquer. São roupas sujas e muito amarrotadas. Junto de uma viatura estacionada vê o seu reflexo no espelho e sorri satisfeita. Está agora com a aparência de alguém miserável e extremamente carente. Sai do Largo das Escolas e junto da rotunda do 1º de Maio começa a estender a mão para que alguém "de boa-fé” coloque 200 ou 500 kwanzas na sua mão.

Não gosta do que faz, mas é já um hábito que aprendeu com os pais. Miloca começou a "trabalhar” quando tinha 10 anos de idade. Os pais que já se faziam passar por mendigos decidiram introduzi-la no "trabalho” quando descobriram que os automobilistas tornavam-se sensíveis diante de uma criança com a mão estendida. No princípio ela ficava com vergonha e uma certa inveja brotava dentro dela quando via as outras crianças vestidas de batas brancas em direcção às escolas que existem no naquele largo. Com o passar dos anos ela habituou-se.  Os pais lhe ensinaram que era melhor pedir, apelar para a caridade de alguém do que roubar.  Começou então a acreditar que era uma forma honesta de ganhar dinheiro. Mendigar é um "trabalho”cansativo que exige muita astúcia e paciência.

Todos os dias Miloca "aluga” uma criança de dois a quatro anos de idade. Estas crianças são os filhos das vendedoras de iogurte, doces ou paracuca nas imediações da Escola 1º de Maio. Os petizes estão bem instruídos: sabem quando saltar para o colo de Miloca e a expressão que devem ter estampada  no rosto para tocar no âmago dos automobilistas. As crianças estão "adestradas” para ter uma fisionomia de "extremamente famintas”. Têm sempre um farrapo amarrado na cabeça e são magras, pois ninguém fica com dó de alguém que carrega uma criança bem nutrida. Dependendo de quanto ela ganha, quando tem uma criança ao colo, Miloca paga uma percentagem para a mãe do pequeno.

A rua Ho Chi Minh é a melhor praça. Há sempre muito movimento e gente disposta a ajudar as "pobres crianças”. O irritante é quando os automobilistas insistiam em oferecer comida. A comida de nada serve para gente como ela que usa o disfarce da mendicidade. Ela também não aceita moedas de 50 kz. O que se compra com 50 kz? Sempre que assim sucede agradece educadamente e rejeita.

De vez em quando aparecem automobilistas que fazem propostas indecentes, enquanto outros lançam impropérios como: "Sai da rua vagabunda!”,"Vai lavar roupa e passar a ferro!”,"Com essa saúde toda ficas a explorar as crianças alheias!”…, entre outros insultos.

Inclusive alguns automobilistas chegam a oferecer emprego para tirá-la da rua. E ela quer lá saber de emprego algum! Não está interessada em ter um emprego que lhe obrigue a aturar um patrão ou um chefe mal-humorado, sempre a exigir dela alguma coisa. As pessoas não imaginam as vantagens de estar na rua como pedinte!, pensa.

Os mais de 10 anos como pedinte nas ruas permitiram que os pais de Miloca reconstruíssem a casa onde viviam, aumentando o número de cômodos e comprassem um segundo terreno onde foi construída uma segunda casa com anexos que foram arrendados. Portanto, a condição social e financeira da sua família não é má, comparando com alguns vizinhos do Capalanca.

Miloca é instrumentalizada pelos pais e não sabe fazer mais nada para além de mendigar. Depois de ser retirada da escola para "trabalhar” na rua, aos 17 anos voltou a matricular-se no ensino de adultos e agora pensa no que poderá fazer no futuro. Entretanto, estar na rua como pedinte tinha se tornado o seu modo de vida.

Como em todos os negócios, havia altos e baixos, dias muito bons e também péssimos. Os dias bons eram quando passava por ela algum estrangeiro ou um "boss” que deixava dois mil ou cinco mil kwanzas.Os péssimos eram aqueles em que os carros do GPL passavam para recolher todas as crianças pedintes para serem colocadas em lares de acolhimento.

Os trabalhadores do INAC e GPL sabiam da existência de gente, como a Miloca, que se fazia passar por mendigo. Gente vigarista que se misturava no meio das pessoas que realmente são carentes, em situação de pobreza extrema, para ter algum benefício. Para o desespero de Miloca, nos últimos meses o Governo local realizou mais de três campanhas para a recolha de crianças pedintes.

E para piorar a situação, os agentes do INAC, GPL e Polícia Nacional recolheram mais de 45 crianças, com idades compreendidas entre 03 e 17 anos e entre estas estavam as que Miloca "alugava”.

Os pais, assim como Miloca, quando viram os carros da Polícia fugiram e só souberam do paradeiro dos filhos através de campanhas de divulgação junto das igrejas e nas redes sociais para que as mesmas fossem encontradas.

As crianças recolhidas da rua foram encaminhadas para diversos centros de acolhimento e para voltarem para o seio das famílias,os pais tiveram que dirigir-se aos centros com a respectiva identificação e foram advertidos sobre a possibilidade de serem responsabilizados criminalmente por usarem os filhos para a prática condenável.

O objectivo do GPL, que visa proteger os menores, geralmente instruídos pelos pais para se adaptarem à condição de "pedintes”, estragou o negócio de Miloca.

Depois deste trabalho do Governo, os rendimentos de Miloca reduziram drasticamente, porque as mães estão receosas e recusam-se a "alugar” os filhos. Mas como precisa de "ganhar o pão”, ela permanece na rua, sempre atenta para não ser surpreendida por uma patrulha do INAC ou do GPL. 

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