Opinião

As pulgas de Noé

Pedro Kamorroto

A orelha humana é por vezes palco de pulgas, percevejos, joaninhas, bichos-serralheiros e outros parasitas irritantes.

04/02/2024  Última atualização 10H17

Tentei sacudir os kissondes, nada de nada.

Tentei iludi-los com pedaços de pão-mecânico, sobras mortais de um farto banquete, onde a kilométricas distâncias, no excludente eldorado ecoam gargalhadas e arrotos, mas mesmo assim, nada de nada.

Adicionei soda-não-cáustica no pão que já tinha a má fama de assassino, dei-lhes uma garrafa grande de plástico de bebe-e-me-deixa, cheia até à cabeça, mas esta confiante cartada foi um fiasco autêntico.

Dos meus aparelhos oculares saíam descontroladamente rios e outros kwanzas como afluentes.

Ninguém acreditava que eu voltaria a fracassar nos meus intentos.

Que arredaria os meus pés por causa de criaturas minúsculas.

As pulgas, kissondes, salalés e outros parasitas, pareciam que há muito já haviam assassinado barbaramente a fome. Já não viam (n)ela calcanhar de Aquiles.

Continuavam irredutíveis, perseverantes nos seus quereres.

Vociferavam em uníssono – resistência até ao próximo grande dilúvio, até que o tataravô Noé nos recolha e deixe-nos estar confortavelmente na sua arca.

Fiz uma análise SWOT da situação. Claro, foquei-me nos pontos fracos.

Quis saber onde estava o ponto que remeteria fracasso e ameaça às pulgas. Não consegui vislumbrar nenhum buraco favorável. Parecia que tinham mais pontos fortes que fracos.

Mas uma análise SWOT que se preze não é inclinada, não recorre a estereótipos, (satis)faz as exigências da lupa. Praticamente é um bom cabo às ordens do seu comandante.

Como é que não me lembrei da lição outrora aprendida? Monologuei comigo mesmo.

Mas quem mal aprende, não apreende. Só tive mesmo que me penitenciar.

Há erros que são soros, nos matam lentamente via intravenosa. Queixei-me de mim mesmo.

Defensor ferrenho da filosofia segundo a qual: "só erra quem trabalha”.

Imbuído deste espírito, voltei a trabalhar, a bolar as directrizes dum plano para lá do estratégico que visava eliminar, purgar duma vez por todos estes bichos irritantes, mas parecia que os astutos insectos se riam de mim. Palhaço eu?

Sabiam como me deixar fora de mim. Actuavam no meu psicológico, brincavam com o meu emocional.

Sabendo das minhas reais intenções jogavam na antecipação. Qualquer plano macabro que arquitectava contra eles, num roer das unhas, agigantavam-se, multiplicavam-se infinitamente. Por vezes dividiam-se em vários grupinhos para melhor se protegerem.

Farto deste jogo dos contrários, decidi acolhê-los, abrigá-los para sempre na parte externa do meu aparelho auditivo. Agora fazem parte do rol de adereços que possuo.

Quando me vêem na rua a passar, atónitos, cochicham nos cantos: "olhem para aquele  senhor aí, cheio de pulgas e outros parasitas a hospedarem-se nas suas antenas”.

Quando dou por mim, olho para as coisas inverosímeis contidas na arca-do-velho, puxo uma cadeira de fitas, refastelo-me e consequentemente digo para mim mesmo que "os humilhados de hoje serão os exaltados de amanhã”.

Mas eu não tenho lupas para enxergar parábolas e seus respectivos significados.

Detesto literatura(s) e todo o tipo de escudo que são contranatura. Que tentam em nome dos custos todos levantar barricadas.

Sem alvos específicos gastam munições na escuridão.

Espio pela fresta do escombro e vejo muitas mãos em riste. Vejo muitas mãos calejadas, cada uma à sua maneira a tentarem se salvar ou pelo menos chegar a um ponto de visibilidade. Quem as salvará? Quem se comportar qual fénix ressurgirá por si mesmo das cinzas do escombro? Quem será exaltado do escombro chamado humilhação?

Vejo ainda da mesma fresta quem tiver mais unhas escandalosas, conseguirá chamar atenção aos que estão do lado de fora somente a apreciar com toda a tranquilidade do mundo a situação no escombro.

Há sítios em que não basta gritares, vozeares. Um simples aceno resolve-te a vida.

Mas é preciso acenar insistentemente bem lá no fundo.

"Com toda intromissão, já viste alguém que conheces, próximo a ti, que foi-lhe resolvida a vida nestes moldes?”, perguntou-me uma voz desconhecida do alto da sua curiosidade.

"Vejo todos os dias na Te que nos Vê no horário mais n/p/obre” – retorqui.

A voz desconhecida continuou a dizer coisas que a mim soavam estranhas, não sei ao certo o que queria (re)colher de mim.

A voz desconhecida usava muito a indagação irónica, a maiêutica:

"Que sonhos gostas de comprar na Te-que-te-Vê?Acreditas mesmo em sonhos ou eles não passam de drogas viciantes?A esperança é ou não é uma forma de mentira, de utopia reconfortante? Há mentiras e utopias que supostamente reconfortam”, dizia a voz desconhecida, mas enfatizava:"uma vez inoculada em nós acabam por ter um efeito de laxante”.

Os analgésicos viciam, aliviam, mas não curam. Parece que ninguém quer a cura de tudo que lhe apoquenta. A cura é árdua, não é um caminho fácil, por isso, o bicho racional recorre ao efémero, ao paliativo, aos atalhos.

Há uma mentira que lhe doma e lhe controla os passos. Vive encurralado na lama da mentira e na utopia mais reconfortante qual um suíno. Já que abomina e não dá cavaco à cura, pelo menos devia procurar por um meio menos árduo, a profilaxia.

Que ao fim e ao resto acaba por fazer parte da legião da cura.

Como um estribilho, a voz desconhecida repetiu: "Há mentiras e utopias que (supostamente) reconfortam. Uma vez inoculada em nós os seus efeitos colaterais são duradouros”.

Todo o cuidado é pouca dura como o sol.

Por mais que carreguem nas suas artérias o suavizante aroma,são como perfumes e desodorizantes, não eliminam na totalidade os cheiros inconvenientes. Para gozarmos de sensações do género proporcionadas por estes artefactos, temos que os usar para todo o sempre, criando assim uma dependência assaz crónica.

Estes acessórios têm o seu quê de importância, de utilidade, mas jamais devem substituir o fundamental.

"Prudência acima de tudo” – sentenciou a voz desconhecida e, num repente, desapareceu em meio ao nada, como se nunca tivesse existido, como se fosse um vulto, como se fizesse apenas parte do onírico.   

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