Opinião

Classe média nacional em média baixa

António Quino

Da boca de um amigo ligado às finanças ouvi que tem sido frequente, na banca nacional,um esquema supostamente recorrente de um misto de despedimentos, promoções, substituições e outras acções que ferem a lógica das boas práticas.

25/02/2024  Última atualização 10H27

Conta esse amigo que muitos bancos têm dispensado pessoal qualificado, a quem pagavam altos salários, para recrutar jovens sem experiência, no intuito de pagarem a metade, ou um terço, do que remuneravam o despedido. Falou-me de bancos que dispensam os serviços de gerentes ou gestores de contas experientes, para os substituir por algum assistente comercial (operador de caixa) que recrutam num outro banco, apenas com o fito de poupar no salário, pois se o anterior ganhasse por exemplo 400 mil, o novo por vezes nem 200 mil recebe, mas fica satisfeito com a aparente promoção, não lembrando sequer de exigir prémios à dimensão do novo cargo.

Desse alegado esquema, podemos ver um bancário que sai de assistente comercial a gestor particular num banco concorrente, de tesoureiro a subgerente num outro banco, etc. Para o dispensado, será uma injustiça. Para o bancário inexperiente, será uma promoção, por vezes a representar mais 20 ou 30 mil kwanzas no seu salário, mesmo sem poder ainda beneficiar de prémios a que teria direito. Para o banqueiro, foi mesmo o poupar de menos 200 mil por cada funcionário sénior dispensado. Sob o débil olhar do sindicato dos trabalhadores bancários, há ainda aqueles casos de bancos que põem o gerente a responder por mais de um balcão, ou mesmo aqueles que omitem a figura do subgerente, para não falar da quebra regular do "senhor Sistema”, que prejudica enormemente a freguesia, podendo desaconselhar potenciais clientes atransferirem ou depositarem o seu dinheiro no banco.

Se o jovem inexperiente fica inicialmente satisfeito com a promoção, o grau de exigência da profissão o demonstrará a míngua salarial devido ao elevado custo de vida, à exigência da indumentária, da casa, do carro, da creche ou escola dos filhos, do crédito bancário não adequado ao seu novo nível profissional, etc. Se juntarmos a isso as tentações próprias do seu labor (trabalha diariamente com muito dinheiro alheio), perceberemos por que muitos não resistem ao assédio.

Isso é conversa do meu amigo que, com outro que é guarda prisional, me convidaram inclusive a visitar cadeias do país e verificar quantos bancários se encontram enjaulados por razões ligadas à actividade bancária fraudulenta. Logicamente, factos como a insegurança e a incipiente protecção da conta bancária afugentam muitos cidadãos do circuito bancário.

A introdução dessa conversa surge pelo facto de, cada vez mais, se privilegiar o lucro fácil em detrimento de um trabalho profissional mais qualificado. Esse tipo de situações de preferência de mão-de-obra menos qualificada para aumentar o lucro, é frequente em outras áreas, como educação, comunicação social, ensino superior, saúde, comércio, seguros, indústria, etc., onde ocorre com relativa constância em prejuízo da classe média nacional.

Esse é um dos dois motivos da presente pedra no charco. O outro apresento-o no final.

 
Desafios da classe média nacional

A classe média é uma categoria social presente no chamado capitalismo moderno, que convencionou tratá-la como um grupo de pessoas que se situa numa posição intermediária em termos de renda, possuidora de um poder aquisitivo e de um padrão de vida e de consumo razoáveis. Quem pertence à classe média terá, mensalmente, rendimentos entre 7 e 25 salários mínimos e, necessariamente, desempenhará um papel significativo na economia, na cultura e na sociedade, contribuindo para o desenvolvimento do seu país.

No caso de Angola, aclasse médiaabrange uma variedade de ocupações, como profissionais liberais, funcionários públicos, empresários e empreendedores, jornalistas, professores, médicos, oficiais superiores de organismos militares e paramilitares, todos eles cujos rendimentos familiares lhes permitiria suprir as suas necessidades básicas e também desfrutar de algumas formas de lazer e cultura.

Entretanto, segundo a nossa base de cálculos, – até 2022, e conforme o Decreto Presidencial n.º 54/22, o salário mínimo nacional em Angola era inferior a 33 mil Kwanzas por mês, valor que rondavaos 57 euros na ocasião – o mínimo admissível para se pertencer à classe média seria um salário de 231 mil kwanzas mensal, uma renda equivalente a cerca de 258 euros por mês (em Moçambique, são 833 euros; na Namíbia, são 651 euros; em Cabo-Verde, são 882 euros; no Botswana, são 805 euros, e na África do Sulsão 1.480 euros).

Já houve tempos em que esses 231 mil kwanzas tinham a sua relevância na capacidade aquisitiva de quem o auferia, tendo chegado a equivaler a dois mil e trezentos euros. Não é assim hoje, pois esse rendimento mensal de um indivíduo que, pela sua categoria ou posição sócio-profissional, deve pertencer à classe média (caso de professores, jornalistas e mesmo médicos), não supera sequer 300 euros por mês.

A desvalorização do kwanza em relação ao dólar é um dos principais factores que contribuem para essa situação actual e que coloca a classe média angolana aquém de outros países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) ou dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), se compararmos, por exemplo, o salário de um docente universitário com o seu par na mesma categoria em Moçambique, Namíbia, Botswana, Cabo-Verde ou África do Sul.

Dessa base de cálculo para a classe média em Angola, exceptuo funcionários de certas empresas, como petrolíferas, AGT, Unitel ou banca, cuja renda permite-lhes, inclusive, beneficiar de crédito à habitação em Portugal, onde fazem aplicação dos seus salários, encontram estabilidade financeira, segurança, saúde e, sobretudo, melhor formação para os seus filhos.

É inegável a importância da classe média no desenvolvimento de Angola, como o é noutras grandes nações. Devido ao seu poder aquisitivo e de consumo, torna-se um pilar da economia, pois contribui para a estabilidade financeira, geração de empregos, consumo de bens e serviços diversos, desde educação e saúde, lazer, cultura e participação política e social activa na vida do país, pois são detentores de maior instrução, informação e, inclusive, consciência cívica.

Além de que muitos empreendedores e inovadores surgem desse grupo sócio-económico, cada indivíduo da classe média é um potencial empregador, desde a empregada doméstica, o segurança, o motorista, o jardineiro, o lavador de carro, o explicador dos filhos ou ATL, etc. De igual modo, ela demanda serviços e produtos que impulsionam a necessidade de mão-de-obra, desde um simples trabalho de remodelação da residência à reparação do carro ou manutenção dos aparelhos de ar condicionado em casa. Os grandes centros comerciais também confirmam a importância dessa classe.

Ou seja, se a classe média não prospera, não há circulação de dinheiro, não há criação de mais postos de emprego à dimensão do expectável e há um entrave no crescimento de sectores como comércio e serviços. Pelo contrário, quando a classe média prospera, o país beneficia-se num todo.

É, por isso, imperioso que se invista em políticas que promovam a ascensão da classe média, algo essencial para um desenvolvimento sustentável e inclusivo do país. Tal como consta da cartilha do governoem exercício inerente ao desenvolvimento, inclusão e igualdade de oportunidades, o Executivo angolano anunciou que assenta a melhoria das condições de vida no reforço da qualidade do capital humano, pelo que há toda a necessidade de se proteger melhor o emprego (a nova Lei Geral do Trabalho vem nessa lógica), em defesa da mão-de-obra qualificada.

Um grande desafio colocado ao Estado, no geral, e à classe média nacional,em particular, está relacionado à estagnação dos rendimentos, ao aumento do custo de vida e à vulnerabilidade financeira. Mas, para mim, o maior de todos os reptos está ligado à valorização do Kwanza, cuja instabilidade permanente tem provocado graves consequências para os cidadãos, desde o encolher do seu poder de compra, impacto nos seus investimentos (muita volatilidade cambial), ao desincentivo à poupança e ao planeamento financeiro familiar.

Perante um quadro tão desafiante, além de a equipa económica do Executivo atribuir-se a competência de estabilizar a moeda, a banca comercial também deve participar mais no fomento da cultura de poupança e de investimento, oferecer mais produtos e serviços financeiros adequados às necessidades e capacidades do cidadão, nomeadamente crédito, poupança, investimento, seguros, etc.

À classe média também cairia bem ouvir a tomada de algumas medidas que podem contribuir para a sua prosperidade, como programas acessíveis de aquisição de bens duráveis, como imóveis ou veículo (por meio de parcerias, linhas de crédito específicas ou taxas de juros bancários daquelas quenão promovem o endividamento) e de apoio a Micro e Pequenas Empresas(gerariam empregos e ajudariam a assegurar a diversificação económica sustentável, inclusiva e liderada pelo sector privado).

Quanto ao que falámos no início do esquema supostamente recorrente na banca nacional de um misto de despedimentos, promoções, substituições e outras acções em desfavor de quadros qualificados, estamos igualmente preocupados com o efeito cascata nefasto, que advém dessa atitude reprovável, e chamar a atenção aos reguladores e fiscalizadores, porque isso pode redundar numa certa instabilidade sistémica no sector e incitar efeitos significativos para a economia nacional e, consequentemente, na vida das pessoas.

Com o Kwanza forte e a banca estável, a classe média estará em melhores condições de contribuir para o crescimento económico do País, porque terá um maior poder de compra, melhorado acesso a crédito e empréstimos, facilidade nas transações financeiras e até apoio ao empreendedorismo.

Portanto, está lançada a pedra no charco.

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