Opinião

Conversa com Fernando Kafukeno

Luís Kandjimbo |*

Escritor

No decurso do segundo semestre do ano passado, há dois acontecimentos que ficaram inscritos na história da literatura angolana, constituindo assim motivos para se falar da eternização da obra. Estou a referir-me à morte de escritores de duas gerações literárias distintas: 1) Henrique Guerra (1937-2023), membro da Geração da Cultura ou de 50; 2) Fernando Kafukeno (1962-2023), pertencente à Geração das Incertezas ou de 80. No talk show sobre literatura angolana que, há duas décadas, animei quinzenalmente, integrado na grelha de programas da Televisão Pública de Angola, tive igualmente a felicidade de conversar com Fernando Kafukeno. Gostaria de partilhar a leitura da transcrição dessa conversa que conserva as marcas da oralidade e da bonomia do entrevistado

25/02/2024  Última atualização 10H30

Da geração literária das incertezas, Fernando Kafukeno nasceu em Luanda, aos 18 de Novembro de 1962, tendo falecido no mesmo mês em que completava sessenta e um anos de idade. Quanto a mim, do ponto de vista ontológico ele pertence, por inteiro, à  geração literária das incertezas. Na década de 80 do século XX, frequentou a sede da Brigada Jovem de Literatura de Luanda em cuja direcção o autor destas linhas se ocupava da investigação e crítica literária. A sua filiação à Brigada ocorreu nas circunstâncias em que surgiu o movimento literário OHANDANJI cujo manifesto veio a público em Abril de 1984, há quatro décadas, nas páginas do suplemento cultural "Vida & Cultura” do Jornal de Angola, então sob a coordenação editorial de Américo Gonçalves, uma eminente figura do jornalismo cultural angolano. Kafukeno estreou-se como poeta nos espaços culturais dominicais desse diário. Publicou "Boneca do Bé-Ô” (1993), "Na Máscara do Litoral” (1997), "Sobre o Grafite da Cera”, (2000) e "Missangas! Kituta”, (2000). Foi vencedor do Prémio Literário Cidade de Luanda. Dessas dinâmicas, de pessoas, lugares e tertúlias, ele fala ao longo da conversa. Parece ser um bom pretexto para uma próxima reflexão sobre a periodização e as gerações literárias, na história da literatura angolana.

                    ***

Luís Kandjimbo – Boa noite amigos. Aqui estamos mais uma vez para um programa, a sua companhia de todas as quinzenas. Mas estaremos aqui hoje, como sempre, para testemunhar a vitalidade e o vigor da literatura angolana. Esse vigor será aqui demonstrado com mais uma daquelas conversas que temos com os nossos convidados, entre poetas e ficcionistas, e ensaístas também. E hoje estará aqui um poeta-revelação, um poeta que se revela exactamente em fins da década de 80 e que traz para a poesia angolana um refinado lirismo, um lirismo elaborado, um lirismo que introduz rupturas, sempre na esteira dos grandes poetas angolanos. É com ele que teremos a conversa esta noite. Fernando Kafukeno, seja bem-vindo a este espaço e sinta-se como se estivesse em sua própria biblioteca. Aqui estamos…

Fernando Kafukeno – Muito agradecido.

 

L. K. – … a tua obra é uma demonstração, já disse aos telespectadores, de vitalidade e de vigor. Um poeta em cuja obra predomina um lirismo refinado. É minha opinião, não é por estares aqui. Justifica-se que falemos dessa poesia, falemos desse poeta e falemos do seu tempo, que é de resto um tempo da história recente. Fernando Kafukeno, qual é, digamos assim, o segredo. E, talvez, seja uma boa revelação para aqueles poetas mais novos, aqueles que se estarão a iniciar na arte da palavra. Dizia eu, qual é o segredo dessa estratégia, que se observa na tua obra, em que esgrimes a palavra, procurando sempre exprimir os emocionais instantes do sujeito poético que se inquieta, levando-o até às últimas consequências, através de um vocabulário situado num espaço predominantemente urbano, como é o caso de Luanda. Qual é o segredo disso? …

FK – Em relação ao espaço urbano, me parece, ter um pouco ou tanto a ver com o facto de ter nascido neste mesmo espaço que é Luanda, não é? Embora tenha incidências de outras vivências do interior, mas que foram tão somente menos marcantes. Quanto ao labor do texto, isto tem a ver, na verdade, com aquilo que eu chamo "ricos anos 80”. Numa altura em que a poesia, a literatura no seu todo, enquanto arte, ela se movimentava, tinha vida. Nós sentíamos isto no ar . Foi por ali, por estes caminhos, onde apurei a palavra, apurei o texto, apurei a língua, e então depois foram saindo esses textos.

LK – Fizeste referência exactamente à década de 80. Achas que a década de 80 foi importantíssima para a literatura angolana? Pelo menos dizes que foi para ti, mas para a literatura angolana, de um modo geral, também foi?

FK – Passados doze anos depois de 80, foi muito marcante, sim senhor, porque não vi, em 90, a movimentação de 80. Quando eu contava que houvesse, a posterior, um movimento superior, houve um declínio total, drástico até, para não falarmos – talvez surja no decorrer desta conversa – de uma certa banalização até da própria poesia. Portanto, em 80 tínhamos as nossas tertúlias, tínhamos a Brigada, ali no largo Tristão da Cunha, depois tivemos o Ohandanji de que tu mesmo foste um dos grandes animadores…

 

LK – Dizem…

FK – Mas foste, eu confirmo. E era ali no Lar Universitário. Depois… e tínhamos também o Archote. No entanto, em 90 fomos vendo livros feitos, mas naturalmente o movimento literário, a vida literária, a partícula no ar, esta partícula…

 

LK – Tinha desaparecido. Tinha sido completamente liquidada. Estava destruída. Era isso?

FK – Era isso!

 

LK– Mas, ó Kafukeno, é uma constatação interessante essa que fazes, porque – e até seria bom, talvez não coubesse aqui nesta conversa – seria bom que exercitássemos uma reflexão, para vermos onde estará a razão desse declínio, dessa banalização da abordagem da literatura, dos temas literários, da própria vida literária. Seria interessante. Mas talvez não coubesse aqui neste espaço, porque tu próprio és a revelação. Poucos nomes haverá, porque na geração de 80, por razões até que têm a ver com uma certa organização, se quisermos, uma esquematização histórico-literária, diríamos que há na geração vários membros, e alguns, por razões que têm a ver com a idade, com razões etárias estarão no início, outros estarão no fim, tu és daqueles que estão no fim. E estás no fim e muito bem situado, porque termina a definição da geração, com um nome da poesia que se afirma muitíssimo bem. Não é com as palavras em si, mas é com o texto que produz. E talvez isso seja mais interessante agora falar. Mas na tua poesia, – e já falaremos de outros aspectos que tocarão a sociologia do meio literário. A tua poesia é marcada por recorrências, por elementos recorrentes. As dedicatórias são algumas delas. No teu primeiro livro, por exemplo, "Boneca do Bê-Ó” já se anuncia um poeta com um lirismo interessante, mas lá estão as dedicatórias. Todos os poemas, quase, são dedicados a mulheres. Será isso uma estratégia tua para justificar, na verdade a tal busca do lirismo de que eu falava há instantes?

FK – E não só! Não só pela envolvente do próprio poeta, enquanto ser humano. Este livro "Boneca do Bê-Ó” tem muito a ver com uma inserção de leitura, e de visão que, a uma determinada altura passei a ter da mulher. Então surge esse texto, um texto onde eu fui buscar todos os meus refinamentos, indo beber naturalmente dos grandes autores, sobretudo os autores que fizeram o modernismo da poesia de 70, em Angola, e não só, a autores de outras paragens, de língua portuguesa e de língua francesa sobretudo. Mas, diria eu, que se trata ali de um novo olhar sobre a mulher. E este novo olhar surgiu numa altura em que eu me encontrava na província do Huambo em cumprimento do serviço militar, no tempo das ex-FAPLA. Durante a minha estadia lá, ser um indivíduo de origem Kimbundu num meio Umbundu, percebi que as mulheres faziam absolutamente tudo. Fiquei a ver que a mulher tem uma grande capacidade de gestão das coisas e da vida humana. E então eu saí dali sem palavras. Quando acabou a minha missão vim para Luanda, olhei para o Bairro Operário, sabes de todo o contexto pejorativo que por ali passou e de toda a palavra que aí grassa, e então eu disse: "Eh, pá! um livro, Boneca do Bê-Ó, mas com um olhar diferente sobre a mulher”.

 

LK – Uma homenagem à mulher. E está aqui um poema, exactamente, em que resumes essa homenagem, "Mulheres”:

"Nascem dos casulos / Onde as palavras apodrecem / Diferentes das pétalas / Ornamento, ideias frívolas / Depositadas das faces públicas / As suas mãos são diferentes / Quer estejam sobre a face ou sobre o dorso / Sentimo-las com destreza / Amizade, carinho / Comunicam suavemente com os astros / Dizem palavras meigas, doces, afectivas / Dormem em tapetes roliços / (...) / Em chutos pela poeira venial das heras / Que só hábitos cândidos sabem ditar / Escrevem belas tatuagens (…)”

Vamos pedir ao leitor que faça também a sua leitura. Mas está aqui, digamos, a homenagem que fazes. De resto, todo o livro é esse olhar sobre a mulher, não é?

FK – É um olhar diferente.

 
LK– "A Boneca do Bê-Ó”… e porque é que vais buscar este topónimo de Luanda para resumir então a homenagem, a Boneca do Bê-Ó?

FK – Bom, há um aspecto importante que, creio que como leitor, estou diante de um leitor, não é?

LK – Sim, sim. Felizmente sou apenas um leitor.

FK – E então, sabes tu, tudo o que foi produzido pelos autores Angolanos, pelos autores das outras gerações, autores mais-velhos, quase todos discorreram sobre o Bairro Operário, nem que fosse meia palavra, em prosa, em poesia, e tal, e muitos até tiveram vivência neste mesmo bairro. E então, isto tudo resumido, já encontrado no texto em que fui bebendo, e com as informações que fui obtendo no local, e também pelo facto de no Bairro Operário eu ter criado amizades, mesmo nos anos 80, mesmo antes até de entrar para o exército, tinha amizades. Ficava por lá, perdia-me lá, estás a ver, não é?

LK – Estou a perceber, sim senhor!

FK – E então, nem mais, Boneca do Bê-Ó.

LK – Aqui está a homenagem. Mas eu estou aqui a ver um poema em que o próprio Fernando Kafukeno, que é o autor dessa poesia, dedica a uma mulher que mora na rua Jota. E estava exactamente a pensar nisso porque é, digamos, a consagração concreta dessa homenagem, vista nesse espaço que é o Bairro Operário. E concretamente é uma casa que se situa na rua Jota. É apenas o emprego de uma palavra vulgar ou haverá lá uma musa na rua Jota?

FK – Bom, direi que talvez sim, talvez não. Não sei. O poeta às vezes não sabe se existe a musa ou não. Não gosto muito, eu sou daqueles poetas que não gosta muito de cultuar a musa, embora pelo Bairro Operário, talvez eu ande enganado e ande a cultuar essa musa, não é verdade?

 
LK – É, sem dúvida!

FK – Mas o que se passa de facto é que, às vezes, as pessoas pedem-me um poema, "olhe escreva lá um poema para mim, pá, tu até já escreveste para o fulano e para a fulana, e porque é que não escreves um poema para mim? Escreva lá um poema para mim”. E, às vezes, eu fico cinco anos e não consigo escrever um poema para essa pessoa, não é verdade? Então, em Rua Jota aconteceu assim, "escreva lá um poema para mim, eu quero um poema”, "e sei lá como escrever um poema para si!”. Um dia desses, creio que a nostalgia me levou a que escrevesse esse poema. Fiquei muito tempo sem ir ao Bairro Operário. Mudei, fiquei distanciado do Bairro Operário, porque eu vivia ali no Miramar e era próximo. Mudei e então a nostalgia um dia destes "Eh, pá! Aquele poema, aquele pedido de um poema ali para a Rua Jota”. E então um poema saiu. Ele saiu de noite, e de manhã eu vi, "bom, mas ainda não está bom”. Deixei ali. Um desses belos dias, tu estavas nessa altura a editar a "Gazeta Lavra & Oficina” e disseste: "Eh, pá! Um inédito pá”, fui ver os papéis e encontrei. Uma semana depois melhorei e tal fui dando assim uns trabalhinhos, trabalho como o oleiro…

 
LK – …trabalha a sua própria peça.

FK – … trabalha a sua própria peça, o seu barro… e eu disse: "Eh, pá! isso vai para o primo Luís e se ele quiser, ele que coloque lá na Gazeta”. Tu disseste: "Eh, pá! Tens aqui um bruto poema”.

 
LK – Mas esse poema tem ressonâncias como outro que está aqui na "Boneca do Bê-Ó”…

FK – Mas olha, não tem nada a ver uma coisa com a outra!

 
LK – Tem a ver com as ressonâncias, porque o tal lirismo que tu tens na tua poesia apresenta particularidades. Quer dizer, só lendo é que se pode chegar a essa conclusão. E lendo fundamentalmente toda a poesia angolana.

"Passas por mim indiferente, / Dizes-me "olá” / Como se nunca tivesses feito/  Navegar o meu barco / Na foz do teu ser.”

Não é na rua Jota evidentemente, mas é o poeta a lamentar o facto de haver um desdém. Os poetas gostam muito de ser vítimas, não é?

FK – Eu penso que não.

LK – Às vezes para poderem produzir alguma coisa têm de se sentir mais ou menos à margem.

FK – Não. Eu acho que nós nunca nos sentimos à margem. Eu, pelo menos, não gosto de cravejar-me nem que me cravejem. Olha, nessa perspectiva, não é que nos situemos sempre à margem. Mas eu não acredito num poema, às quinhentas, o indivíduo deixa o seu aprumo moral, deixa a sua dignidade, e por meia página, deixa cair tudo por terra. Não creio! Então nós sofremos com os que sofrem, e nos sentimos satisfeitos com os que se sentem satisfeitos. Não é tanto isto! E quando alguma coisa nos cai mal, cai-nos mesmo mal. O poeta é um fingidor, como dizia…

 
LK – Fernando Pessoa…

FK – … Fernando Pessoa, mas na verdade acaba não sendo, porque é dotado de uma sensibilidade que não permite tanto fingimento assim, e talvez seja este fingimento a que Fernando Pessoa se refere, que as pessoas dizem "eles estão sempre à margem, vivem sempre à margem”. Mas não, nunca estamos à margem de nada, nós estamos constantemente atentos.

 
LK – Aliás só assim é que se compreende, que, efectivamente, os poetas consigam produzir textos, que revelem serem pessoas atentas até aos pormenores que têm a ver com as relações humanas. As relações, enfim, como estas em que estás tu a falar. Para a Dete, para uma hipotética figura, uma personagem que existe, a lamentar o facto de ela não ser capaz de estabelecer uma relação humana, sem para tal introduzir desdém. É o caso.

 

FK – Foi salutar, é um caso real até… e depois recebeu um recado a dizer: "Olha, diga a ele para me mandar o livro, senão vamos continuar assim”. E então eu pus o livro num envelope. Coisas caricatas da própria poesia dos poetas.

 

LK– E lá foi.

FK – E lá foi o livro. E tudo mudou.

 

LK – Tudo mudou. A Dete já não dizia "olá” com indiferença, não é?

FK – Não, cumprimentava agora com dignidade. Talvez, este chamamento que a poesia faz, permitiu-lhe concluir que afinal de contas eu tinha uma outra visão sobre ela, e não aquela que ela pensava.

 

LK – É verdade. Aí talvez esteja a sugerir a ideia de que, por vezes também os poetas são, os poetas, os escritores são confundidos com homens que têm olhares vulgares sobre os outros, o que não é o caso. Estarás tu a querer dizer, portanto, que de facto, a não ser verdade isso, a Dete acabou por se convencer que efectivamente estava perante uma pessoa que até tinha uma sensibilidade refinadíssima. Pois, mas publicaste a "Boneca do Bê-Ó”, isto foi em 1993, e depois seguiu-se um outro livro "Na Máscara do Litoral”. Bom, quem lê, ou quem leu a "Boneca do Bê-Ó”, ficou na expectativa, confesso que eu fiquei na expectativa. Embora tivesse dito "cá está, temos aqui alguma coisa”. Mas quando publicaste "Na Máscara do Litoral”, bom, estava, digamos, provado, que um poeta acabava de nascer para a literatura angolana. E tens aqui um livro com um tipo de poemas, uma poesia que no plano formal se caracteriza pela contenção também, pelo uso de versos curtos, com versos feitos de palavras sugestivas, como este, textos como este, "Rito de Sabão”:

"Papagaio de sabão / Lombola / Em sonho de cartão.”

Estavas aqui a fazer um exercício, porque todo o livro está mais ou menos feito assim nesta base, fazer um exercício em que tinhas alguns poetas como imolo. Estavas a fazer uma imolação com alguma poesia, com alguns poetas de gerações anteriores? Há pouco falaste na geração de 70.

FK– Mas deixa-me dizer uma coisa. Em "Boneca do Bê-Ó” dizias que normalmente poemas dedicados a alguém, geralmente a mulheres…

 

LK– Iniciaste aqui… não deixaste de fazê-lo. A paratextualidade continua.

FK – Iniciei. As dedicatórias continuam aí. Aí há dedicatórias para homens. Este poema é dedicado a um tio meu. Mas que todo o trabalho que é feito neste livro, neste texto, tem a ver com um consumo de toda a literatura angolana, de toda a poesia, até da própria prosa, que eu tinha em mim. E então começo em "Boneca do Bê-Ó”. Se vir muito bem a "Boneca do Bê-Ó”, há marcas dos poetas da geração da Mensagem…

 

LK – Sim, da geração literária de 40.

FK – … de 40, e então eu venho para aqui e faço um outro exercício. Entro mais ou menos no mutismo dos autores de 70, e de 60 até, e então tento esgrimir isto nesta obra. E não paro. Não paro porque fica-me ali uma preocupação. Este livro entra para o mercado, e muita gente que gostou deste já não estava ali. Só para dar um exemplo, que quase todo o mundo gostou neste livro, no outro as pessoas acharam muito refinado, poesia para ensaístas, para críticos…

 

LK – Intelectuais.

FK – … para intelectuais, "então agora escreveste para os poetas? Escreva para nós”. Mas era necessário este exercício, era necessário esmiuçar tudo isto, e o livro saiu, circulou como circulou, as pessoas quiseram tê-lo, foram tendo, eu ouvi as opiniões daqueles que me circundam, e não só, e deixei segui-lo.

 

LK – Para um poeta que se revela na década de 80, um poeta maduro, maduro no sentido que está a apontar para uma maturidade ainda superior. Está maduro aqui, quer dizer, o poeta está feito um poeta aqui "Na Máscara do Litoral”. Está feito um poeta, sem dúvida, sem dúvida. E eu falava há pouco, a poesia com a qual emulavas. Eu estou a pensar, falaste da geração de 70, estou a pensar na poesia feita por poetas como David Mestre, que de resto, na década de 80, ainda estava vivo, infelizmente já não faz parte do mundo dos vivos, a alma dele descanse em paz. Mas na década de 80 David Mestre andava por aqui, e de facto tu te interrogavas sobre essa poesia, não é? Pelo menos eu lendo "Na Máscara do Litoral”, eu sinto isso, em que medida é que essa poesia, por exemplo, eu lembro-me nessa altura, de"Nas Barbas do Bando”.  Em que medida é que essa poesia podia ser tida em conta, para se produzir um discurso novo? É essa pergunta que colocavas?

FK – Tu colocaste "Nas Barbas do Bando”, também coloco eu assim. Então este refinamento e esta contenção da palavra interessou-me bastante, porquanto pensava eu, para me debruçar muito sobre a palavra num poema e perder-me, antes valia escrever um romance, um conto, uma novela, e porque não entrar nos meandros que estes poetas apontam? Isto também tem a ver com… depois de um certo período de relação pessoal que tive com alguns autores. O primeiro autor grande com quem tive relação foi o escritor Eugénio Ferreira, também já falecido. Frequentava a casa dele, livros, leituras e tal. Depois, o Henrique Abranches também e o David, finalmente. Ele é tudo, o David é tudo. Depois ele olhava para os textos. Tive a honra de saber que ele viu esses textos da Máscara do Litoral. Eram tantos que, depois de ler, ele disse: "Eh, pá! Tu andas aí com tanta sorte pá, que eu ainda pego no lápis e risco qualquer coisa aqui. Isto não presta”. E então, fui trabalhar no gheto. Nesta altura ele despediu-se. Despediu-se, não! Ele disse-me: "Eh, pá! Daqui a pouco vou-me embora. Vou para Portugal”. E então, em casa do David, e a cena do David, ia buscar Rui Belo: "olha eu vou ler o Rui Belo, tu ficas sentado porque o poeta aqui sou eu”.

 

LK – Grande poeta português…

FK – "…e tu tens que aprender a declamar poesia comigo”…Então lá ele declamava, e depois atirava-me o livro, "esse é para ti pá, tu és um poeta, e não aceites que ninguém desminta isso, porque o que carrega a tua carruagem, muita gente não consegue”. Dizia-me ele assim em casa dele.

 

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral  

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