Opinião

Crónica de um golpe de Estado (1)

João Melo*

Jornalista e Escritor

No dia 7 de novembro de 2023, a procuradora-geral da República Portuguesa, Lucília Gago, emitiu um comunicado acerca de alegados crimes de corrupção e tráfico de influências no interior do Governo português e que o referido órgão estaria a investigar, do qual constava o seguinte parágrafo:-“No decurso das investigações, surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do PrimeiroMinistro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto supracitado”.

13/03/2024  Última atualização 06H00
António Costa – o Primeiro-Ministro visado – reagiu imediatamente perante essa grave suspeição lançada contra ele: demitiu-se do cargo e propôs ao Chefe de Estado português, Marcelo Rebelo de Sousa, um outro nome para substituí-lo à frente do Governo, respeitando, por conseguinte, a maioria absoluta que o Partido Socialista (PS) tinha alcançado nas eleições realizadas em 2022.

Algumas vozes defendem que Costa fez bem em demitir-se (pessoalmente, tenho as minhas dúvidas, pois as suspeições lançadas por Lucília Gago ainda não haviam sido validadas sequer por um juiz de instrução), mas que não deveria ter sugerido nenhum nome para o substituir, deixando isso à direção do PS. Tudo isso é discutível, evidentemente, mas está longe de ser a questão principal dessa história.

Na verdade - e discussões procedimentais à parte -, parece-me correto que a demissão de um Primeiro-Ministro por, hipoteticamente, estar envolvido em casos de corrupção (o que careceria de ser investigado e provado em tribunal), não deveria implicar automaticamente a queda de um governo eleito com maioria absoluta conquistada pouco tempo antes, mas, sim, a sua substituição por outra figura do mesmo partido, desde que se tratasse, conforme estipula o sistema português, de um parlamentar eleito. A não ser que esse facto (a suspeição anunciada pela PGR) tivesse gerado um estado de comoção social, de incerteza e de perturbação do funcionamento do sistema político, que obrigasse à realização de novas eleições rapidamente. Não foi isso o que aconteceu.

Apesar disso, contudo, o Presidente da República Portuguesa não aceitou a continuação normal do Governo do PS, embora com outro Primeiro-Ministro, tendo convocado o Conselho da República para defender a dissolução do Parlamento, com a consequente queda do Governo e realização de novas eleições, que acabaram acontecendo no passado domingo, 10 de Março de 2024.

A minha primeira leitura, quando foi anunciada, em Novembro do ano passado, a queda do Governo do PS e a realização de novas eleições, foi: é golpe. Partilhei-a com vários amigos portugueses e – confesso – fiquei espantado com o facto de muitos deles não fazerem a mesma leitura, deixando de ver, por conseguinte, que se estava diante de mais um caso de lawfare, idêntico, no essencial, a vários outros já acontecidos em diferentes países.

Não tardou que os factos me dessem razão: poucos dias depois da divulgação do comunicado da PGR lançando a suspeição sobre António Costa, descobriu-se que, afinal, o "Costa” era outro (tratava-se do ministro da Economia, António Costa e Silva; entretanto, mesmo em relação a este último, as "suspeitas” de Lucília Gago não vingaram). Ou seja, se o facto não fosse sério, tratar-se-ia apenas de uma brincadeira, embora de profundo mau gosto.

Além disso, outro facto, sublinhado pelo jornalista, escritor e comentarista político português Miguel Sousa Tavares no passado dia 8 de Março, na sua habitual coluna no semanário Expresso, corrobora, como se tal ainda fosse necessário, os propósitos golpistas do comunicado de 7 de Novembro de 2023 da PGR portuguesa. Escreveu ele:-"Mas quatro meses depois vamos para eleições sem que, ao que o próprio saiba, o MP, agora junto do STJ, tenha avançado um passo na sua ´investigação´: António Costa não foi constituído arguido e nem sequer foi ouvido; o processo não foi arquivado nem ele presente a um juiz, indiciado por crime algum; e aposto que as ´suspeitas´ da sua ´interferência´ se mantêm talqual estavam: devem estar a escutar-lhe o telefone para ver se as ´investigações´ avançam”.

O golpe de Estado judicial que, a 7 de Novembro de 2023, derrubou o Governo português eleito acaba de ser confirmado nas eleições antecipadas do último dia 10 de março de 2024: conforme os resultados apurados até agora, correspondentes ao círculo nacional, a AD (coligação entre o PSD e o CDS) elegeu 79 deputados contra 77 do PS; falta ainda apurar 4 deputados do círculo do estrangeiro, o que, teoricamente, ainda poderá dar a maioria ao PS, mas, a acontecer, isso será uma espécie de vitória de Pirro, uma vez que o conjunto dos partidos de direita conquistou de longe a maioria absoluta dos assentos. O facto é que, no momento em que escrevo o presente artigo, o líder do PS, Pedro Nuno Santos, já admitiu a derrota.

Termino o texto de hoje fazendo menção àquelas que me parecem ter sido as duas razões de fundo para a derrota do PS, além do seu namoro com o neoliberalismo, à semelhança dos outros partidos social-democratas e trabalhistas europeus, pois isso é tema para uma análise mais profunda e global; não esqueço também que, na campanha propriamente dita, o PS teve de enfrentar não apenas os seus adversários, mas também quase toda a imprensa, em especial as TVs e o comentariado nacional, para não mencionar certas intervenções do próprio presidente da República, claramente partidárias. Entretanto, dois erros foram fatais ao PS e à sua campanha incaracterística.

O primeiro foi a sua cobardia, ao não ter denunciado frontalmente o lawfare de que foi alvo. O segundo, talvez mais elementar, foi o facto de não se ter posicionado expressamente contra a corrupção (lembremo-nos de que o Governo anterior caiu por causa uma mal ajambrada suspeição de corrupção contra António Costa), permitindo, assim, que ficasse a pairar no ar uma certa retórica populista e demagógica usada pela oposição contra esse fenómeno, como se o mesmo fosse apenas um problema do PS e não de toda a sociedade portuguesa (em todo o lado, o combate à corrupção tem de ser estrutural e não "dirigido”).

O Chega, partido fascista, foi dos que mais fez uso dessa retórica populista e demagógica, como é apanágio do fascismo, em todos os tempos e lugares. Isso, certamente, foi uma das razões para o seu crescimento exponencial, ao ponto de se ter tornado na terceira força política no novo Parlamento português. Na próxima semana, terei de falar sobre isso.

 

*Jornalista e escritor

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