Opinião

“É o meu filho, é médico veterinário!”

Guida Osvalda

Quando, nos idos de 1968, o padrinho de Kibela, um comerciante da Vila de Catete, anunciou que caso o afilhado terminasse o liceu teria a possibilidade de frequentar a Universidade em Portugal, toda a família rejubilou. Um autóctone, filho de camponês, na Universidade de Lisboa não podia ser notícia melhor. Um filho da terra havia de quebrar o ciclo: não seria camponês, pedreiro ou carpinteiro.

24/03/2024  Última atualização 07H35
Contra todas as expectativas, a família teria um engenheiro ou um médico. Mesmo depois do massacre de 61, o crispar das relações entre colonos e colonizadores, a relação entre os compadres não mudou. Afinal, nem todos os colonos eram maus – pensavam os compadres.

Ah, tirar um negro da sua terra e pagar os seus estudos em Lisboa era uma atitude de louvar. Sô Pereira era pessoa bah!  Kibela deixou os pais na aldeia de Seselo e foi para Luanda, em casa da irmã do Sô Pereira. O rapaz trabalhou como jardineiro naquela casa e também estudou bem. Quando finalmente chegou a altura de viajar, a família chorou. "Vai de barco? Naquele mar todo? E se o barco afundar?”

Apesar do receio da família, Kibela viajou e regressou cinco anos depois. No Seselo foi recebido com pompa e circunstância. Os pais choraram por ver que o adolescente fez-se homem e era médico.

- Assim vais abrir um consultório em Luanda ou aqui mesmo em Catete?

- Ainda não defini...mas acho que vou para Nova Lisboa porque nós aqui não temos animais de grande porte - respondeu com olhar fixo no rosto do pai, tentando entender se ele sabia que era médico veterinário.

- Assim se eu precisar de um médico tenho que viajar? - Um dos tios perguntou antes de prosseguir: - Tens que valorizar a terra, abre o consultório aqui mesmo.

- Sou médico veterinário! Anunciou lentamente como se estivesse a falar para crianças – eu trato de animais, de todo o tipo de bichos, com pêlos, escamas ou penas. Posso cuidar de uma galinha ou de um elefante.

As duas dezenas de pessoas, familiares, amigos e conhecidos, que o cercavam olharam para ele boquiabertos, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Alguns parentes encostaram-se nas paredes da casa de pau-a-pique enquanto outras deslizaram para o chão e ali permaneceram sentadas.

- Assim passastes estes anos todos na metrópole para ser médico dos bichos, mas você é burro d’aonde afinal? – O seu progenitor estava indignado. – As pessoas precisam de ti e foste pensar nos bichos?

Kibela, com muita paciência, explicou que o veterinário é um médico especialista em animais, perito em cirurgia dos bichos e que trabalha com a prevenção e cura das doenças das demais espécies e também dos humanos, num contexto médico.

Os murmúrios aumentavam cada vez mais."É doente… só pode. Desde quando é que um animal precisa de médico?”. "As galinhas, porcos e cabritos nós tratamos com capim e as folhas das árvores, nunca precisamos de médico”. "Afinal é assim? É azar! Esse tirou a comida do prato para comer no chão”. "Ah, esse já lhe enfeitiçaram na barriga da mãe dele. Então frequentou mesmo a Universidade de Lisboa para ser médico dos bichos? Não sabe que Deus cuida dos animais?” - Cochichavam.

- É também minha função realizar exame clínico de animais, diagnosticar patologias, prescrever tratamento, indicar medidas de protecção e prevenção, aplicar sedativos, anestesia e tranquilizantes. –  A decepção dos familiares era quase palpável e Kibela achou que elas tinham direito a um       esclarecimento. - Os animais também precisam da atenção de especialistas.

Já ninguém o ouvia! Os familiares perderam definitivamente as esperanças quando se aperceberam que o jovem falava com alegria sobre a veterinária: -  Se o bicho está doente a gente mata, come e pronto!  Mas quem é que viaja para estudar no estrangeiro para ser médico dos porcos e cabritos? É uma grande vergonha pá! Como é que vamos encarar as pessoas depois de nos gabarmos que temos um médico de verdade? – Diziam uns familiares.

 - Tomara que não tivesse voltado! Aliás, todos sabem distinguir um animal doente de um são e para evitar contágio basta matar o bicho e problema resolvido! Nunca foi preciso médico!  Existem filhos que não sabem dar orgulho aos pais – lamentava o progenitor.

Apesar de ter consciência de que já não era ouvido, Kibela continuou a esclarecer que era seu trabalho garantir a saúde física e emocional dos animais, sejam eles de estimação, de produção ou selvagens.

A notícia do médico dos bichos espalhou-se como um rastilho de pólvora por todas as aldeias de Icolo e Bengo: Tari, Seselo, Calumbunze, Mazozo, Calomboloca, Caxicane, Maria Teresa, entre outras. Não se falava de outra coisa. "Sabem da grande maka? O filho do ti Jacinto Almeida é doutor dos bichos”. "Qual filho? O Kibela? O que foi estudar na metrópole voltou mbora médico das galinhas e dos outros bichos”.

Em Catete e arredores as pessoas tentavam entender como é que alguém sai de Angola, vai para o estrangeiro e perde a oportunidade de ser engenheiro ou médico. "Se calhar não está bem da cabeça, o coitado precisa de ser saquelado (tratado tradicionalmente)”. "Mas os animais falam? Como é que vai saber quais são os sintomas? Afinal, existem remédios para os bichos?”.

Kibela virou motivo de piada em todas as aldeias."Eu não sou como o Kibela, estás a ouvir? Eu sou homem que fala com gente e não com animais”.

Kibela saiu de Icolo e Bengo enxovalhado e instalou-se na periferia de Luanda, onde realizava o seu trabalho.

O pai estava tão zangado que não queria saber dele, até que, certo dia, algumas galinhas começaram a apresentar estranhos sintomas e a morrer. Duas semanas depois, três porcos apresentaram um quadro de hemorragia, dificuldade para andar, manchas na pele e em menos de 72 duas horas estavam mortos. O veterinário do comissariado estava ocupado e não explicava nada ao Regedor sobre o assunto e para piorar a situação o sexto sentido do pai de Kibela lhe dizia que os bichos provavelmente tinham alguma doença infecciosa.

A mãe de Kibela lembrou-se dele e no autocarro da tarde, que saía de Catete/ Luanda, enviou o recado: "diz no Kibela p’rá vir com as corridas, os porcos e as galinhas estão a morrer à toa”. 

Na manhã seguinte o veterinário estava na aldeia dos pais com todo o material necessário.Feito o diagnóstico, Kibela informou aos moradores que as galinhas estavam com  laringotraqueíte, bronquite infecciosa e salmonelose, que pode transmitir a bactéria da  salmonella, entre outras doenças, e causar intoxicação aos humanos.

-  Já a situação dos porcos é muito mais grave. – Kibela prosseguiu: - Trata-se da peste suína e todos os animais que tiveram contacto com os bichos mortos devem ser abatidos imediatamente… 

- O quê? Os porcos andam à vontade no capim. Vão à aldeia do Domingos João, Inácio, Seselo. Passo até nas baixas… como é que vamos matar todos? – O protesto foi geral. Ninguém tinha a pretensão de matar os seus porcos e enterrar, quando, até, não se comia a carne com frequência. 

Depois de muita discussão, Kibela conseguiu convencer os membros da comunidade a separar os porcos aparentemente saudáveis para quarentena e orientou que fossem criadas novas pocilgas e feita a desinfestação completa das aldeias.

O doutor veterinário realizou uma prevenção epidemiológica activa, controlando a movimentação dos animais e realizando a inspecção da carne e ovos,  a procura de sinais de doenças que pudessem ser transmitidas ao homem. 

Diante do olhar de admiração e respeito de todos, Kibela permaneceu algumas semanas em Icolo e Bengo para uma vigilância cerrada nas zonas infectadas e arredores.  O pai, por onde passava, dizia orgulhosamente: - É o meu filho, é médico veterinário!

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