Opinião

Estudantes e excursões (1)

Manuel Rui

Escritor

Tive, sempre, azar com excursões. Quer fossem de passear ou de aprender. Uma vez organizaram excursão das marchas populares de Nova Lisboa, para irem de comboio até Lobito-Benguela e fazerem lá desfile na cópia das marchas populares de Lisboa.

11/04/2024  Última atualização 07H10
Eu tinha a noção de distância e lugar na estrutura racial da cidade. Ficava no meu lugar: no meio. Aí, nunca me candidatei a nenhuma marcha. Como arranjar dama.

Era quase tudo meninas brancas, lindas, e algumas mestiças de cabelo esticado com aqueles ferros. Só se fosse na marcha do Bairro Benfica, das famosas rebitas do Pepino.

Nem aí, magro, camapunha e ainda com a oposição de meu pai "não te metas nisso são coisas do Salazar.” Mal saberia eu que hoje tenho paixão pelas marchas populares de Lisboa e sou fã da Marcha da Mouraria!

Uma vez, no colégio D. João de Castro, do professor Cabral e da dona Ana, decidimos organizar uma excursão à Silva Porto. O colégio não tinha dinheiro e era perseguido por causa do professor Cabral ser maçon e contra a situação. Aí arranjámos uma comissão que foi bater várias portas, Câmara Municipal para o machimbombo pequeno, motorista com dinheiro para combustível. Batemos à porta do Bispo D. Daniel Junqueira, que adiantou um bocado de dinheiro. Organizámos uma fraca equipa de basquetebol, de voleibol e de futebol para, em Silva Porto, jogarmos contra os Maristas.

E lá saímos a cantar "foi na loja do mestre André…” e "Se um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais… se dois…”

O motorista era um cambuta de óculos, conhecido por nós, pois fazia trabalho nos machimbombos que iam da cidade alta até à baixa, em marcha bem divertida, mas sempre sem acelerar, não obstante o pedido de alguns de nós, "acelere, acelere.”

Parávamos nas vilas desde Boas-Águas e depois por aí adiante. O que mais nos impressionava eram os rios, os vendedores à beira da estrada e uma onça que atravessou a estrada perto da Bela Vista.

Quando chegámos a Silva Porto procuramos uma pensão. Para nós, cara. Alugámos quartos. Assim que anoitecesse dormíamos três num quarto, logo de manhã chuveirada fria e cá para fora.

Ainda no segundo dia fomos ver a embala do sertanejo Silva Porto, que comercializava pessoas e, ao que diziam, suicidou-se embrulhado na bandeira de Portugal e pegando fogo a um barril de pólvora. A lenda dizia que ele deixou descendência, uma senhora mestiça. Não achámos graça nenhuma.

Trazia uma encomenda numa caixa de papelão embrulhada em papel de várias cores e uma fita amarela para entregar a uma irmã do célebre futebolista Carinhas.

Fui lá, uma freira foi buscá-la, parecia indiana, agradeceu, e eu fiquei com os olhos nos volumosos seios dela que pareciam querer rebentar a renda da blusa azul.

Vieram os jogos contra o colégio dos Maristas. Levamos surra em tudo. No voleibol e basquetebol, de batina jogava o célebre irmão Mariano, padre que iria ficar famoso como educador.

O dinheiro havia acabado mesmo nos bolsos dos mais ricos que repartiam com todos. O Gasosas, o pai era dono da fábrica de gasosas atrás da minha escola 33, era o mais hábil em futebol e a roubar na pastelaria e outras lojas. Eu tirei-me de cuidados e fui à livraria do mais velho Fançony. Levei um raspanete: "então Rui, não procuraste o teu tio avô? A excursão está com má fama. Vai buscar as tuas embambas e segues lá para casa e o outro tempo livre podes ler os livros que quiseres aqui. Sabes que nesta terra respeitam-me como se fosse um branco, entendes?”Aí, fiquei armado e desarmado.

Um dia convidei o Gasosas para ir comer na casa do tio Fançony, que tinha uma panela onde punha a água a ferver e depois era cenoura, nabo, couve, batata, nem era sopa nem nada, parecia comida para porcos, segredou-me o Gasosas no ouvido.

Na verdade, era intragável, mas o tio insistia para que repetíssemos aquilo que, para ele, era um pitéu.

O Gasosas não voltou e fiquei eu,  na comida daquela panela até lhe perguntar "o tio não come galinha? Ando cheio de fome.” "Não mato animais. Mas amanhã passas a almoçar no hotel. Ao jantar vens para cá.”Juntei-me à malta. Era sábado. Todos na piscina a fazer mergulhos e as moças do colégio de freiras sentadas na pequena bancada. E, de repente, vi, mesmo de perto, a garota dos seios a querer rebentar a blusa, quis estilar, falhei e bati de costas na água, para a gargalhada geral. Mas, de compensação, em Nova Lisboa a piscina do ferrovia tinha uma tabuleta: "só é permitida a entrada a brancos.”

O avô Fançony mandou o empregado comprar uma maleta de cabedal. Encheu-a de livros e entregou-me: "Olha faz uma excursão por estes livros que são os melhores amigos do homem. Boa viagem com o astral superior que tu conheces bem, pois o teu pai também é espirita do centro redentor.”Andei por várias excursões depois do vinte e cinco de Abril, a Revolução dos Cravos que também celebro. Estava com residência fixa em Portugal sem saber. Recordo que antes fui preso pela PIDE e ancorado na cadeia do Aljube, hoje museu e ia a interrogatórios e torturas à sede.

Mas, muito antes, matriculei-me em Coimbra na cadeira de Italiano na Faculdade de Letras, mesmo ao lado da minha, de Direito.

No fim, os melhores teriam direito a excursão à Itália. Era isso que eu queria. Ir à Itália e pirar-me para o Éme.

Mas veio a luta académica, as greves, a luta contra a polícia de choque e adeus excursão à Itália.

Quando leccionei um mestrado na Suécia, entrava, os alunos, na maioria mulheres, levantavam-se, cantavam o nosso hino nacional e, em algumas turmas, pediam uma definição prática da figura literária que é a crónica.

E eu definia e depois falava que ia contar a crónica de uma excursão. A Silva Porto.

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