Opinião

Fragilidades no sistema de prestação de contas

Ismael Mateus

Jornalista

No início deste mês de Fevereiro, a ministra das Finanças, Vera Daves, voltou a afirmar, na abertura do seminário sobre regras de execução do Orçamento Geral do Estado (OGE – 2024), que as regras orçamentais, reguladas e a aprovadas todos os anos, pretendem "assegurar maior eficiência e eficácia na forma como arrecadamos as receitas e realizamos as despesas”.

26/02/2024  Última atualização 09H10

Assegurou que a gestão cada vez mais eficiente das receitas públicas e a desconcentração determinam que o OGE 2024 "venha a ter uma execução de respeito, de forma ainda mais firmes com os princípios essenciais que norteiam a acção governativa e, em particular, os princípios da legalidade e do interesse público”.

Também, neste mês de Fevereiro, foi publicado o relatório de execução orçamental referente ao terceiro trimestre de 2023.

No terceiro trimestre de 2023, do total de 164 administrações municipais, apenas 46 remeteram as devidas prestações de contas.

Das 18 províncias que constituem Angola, somente quatro (Cuanza-Norte, Malanje, Huambo e Namibe) justificaram os gastos "por completo", segundo o documento em posse da Assembleia Nacional.

"Das 88 missões diplomáticas e consulares, apenas 23 prestaram contas de forma regular, 36 prestaram contas de forma irregular e 29 não prestaram contas.

A quantidade e a qualidade destas irregularidades só são possíveis num ambiente de enormes fragilidades dos mecanismos de controlo e responsabilização. Ficam evidentes também vulnerabilidades nos sistemas de prestação de contas, da eficácia dos mecanismos de gestão de prestação de contas e de controlo da transparência, parcimónia e legalidade do uso dos recursos públicos.

O controlo dos gastos públicos e do uso dado ao dinheiro dos contribuintes é, ao mesmo tempo, uma tarefa crucial no Estado de direito social e democrático, mas também um imperativo ético, num país endividado e onde o cidadão é chamado a consentir imensos sacríficos por causa do descaminho dos dinheiros públicos.

Assistimos por isso a uma contradição entre o discurso oficial e a prática. Enquanto o Titular do Poder Executivo proclama o fim da impunidade e o combate à corrupção, quem não presta contas do uso do dinheiro público não é responsabilizado. A ministra das Finanças faz declarações públicas a exigir mais rigor e mais firmeza contra a violação das regras orçamentais, mas, publicado este relatório, não existe um único exemplo dessa anunciada nova era.  Tanto o Titular  do Poder Executivo como a sua ministra das  Finanças estão mais do que certos nas intenções e pronunciamentos, cabendo agora demonstrar ao cidadão que o Executivo não é tolerante com velhas práticas e ninguém está acima da lei. Não haver consequências, ainda que sejam algumas poucas, depois de um relatório deste teor, descredibiliza toda a luta contra a corrupção e sobretudo fragiliza a imagem de firmeza e determinação que a ministra das Finanças vem construindo e que é um dos esteios da sua relação de empatia com os contribuintes.

O discurso de rigor e comunicação pragmática de Vera Daves, a respeito da necessidade de maior rigor orçamental e despesas públicas de maior qualidade, faz parte da esperança por uma situação económica melhor, que leva a que os cidadãos angolanos consintam tantos sacrifícios. A falta de responsabilização descredibiliza esse discurso e quebra a relação de confiança e empatia conquistada pela ministra.

A inexistência de consequências levanta interrogações muito maiores, se tivermos em atenção que o mesmo relatório do terceiro trimestre regista um aumento da dívida de curto prazo em 27% e da dívida pública em 76%, numa economia angolana já altamente endividada e a reclamar por uma imperiosa necessidade de limitar as despesas públicas e dos gastos não previstos. Um rigoroso controlo orçamental e financeiro é no estado actual das finanças públicas angolanas uma questão de sobrevivência. As irregularidades detectadas no relatório reclamam por uma avaliação profunda e serena sobre a eficácia de todos os mecanismos de controlo e fiscalização. O controlo e a inspecção das contas públicas são indispensáveis à boa governação e ao combate à corrupção. O controlo externo, protagonizado principalmente pelo Tribunal de Contas, depende em muito do controlo interno, que regra geral é da responsabilidade dos serviços de inspecção de finanças.

Actualmente, o trabalho de controlo interno é feito pela IGAE, que concentrou os serviços de inspecção das Finanças e da Administração local do Estado.

Hoje, sete anos depois de se ter declarada a corrupção como o inimigo número um da Administração Pública, o nível de incumprimento na prestação de contas dos gestores públicos que ainda se verifica faz soar os alarmes sobre a eficácia dessa concentração. Tendo em conta a perspectiva de aumento do número de municípios de 164 para 325 e também da realização das autarquias, o Governo deveria ponderar seriamente em voltar a criar (metodologicamente subordinados à IGAE) os serviços de inspecção de finanças e da administração local, com a missão de realização do serviço de controlo orçamental, económico, financeiro e patrimonial e auditorias financeiras e de gestão.

A ausência de um trabalho massivo de auditorias financeiras, inspecções, inquéritos, sindicâncias e averiguações e outras acções que eram realizadas pela inspecção do MINFIM e do MAT compromete a fiabilidade dos sistemas de controlo dos recursos públicos. Não temos dúvidas que a principal responsabilidade do controlo é da própria Administração Pública, que deve usar os seus poderes de hierarquia e tutela para fazer coincidir o discurso público de rigor orçamental e combate à corrupção, mas também para a responsabilização exemplar de quem não cumpre as regras. Há também uma responsabilidade política a assacar à Assembleia Nacional. Cabe aos responsáveis políticos assegurar que os dinheiros dos contribuintes públicos sejam aplicados de modo correcto, com transparência e de acordo com as regras orçamentais. Embora a Administração Pública seja subordinada do Poder Executivo, o controlo político da gestão orçamental é da competência da Assembleia Nacional. Os deputados, como representantes do povo, têm toda a legitimidade para exigir a responsabilização política de quem não cumpra com as regras orçamentais; não use o dinheiro público com parcimónia e transparência ou não preste contas. Essa fiscalização e controlo político podem ser feitos também através de "interpelações”, requerimentos ou até Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI).

A sociedade e os cidadãos, já o têm demonstrado, consentem a muito custo as dificuldades económicas, mas essa disponibilidade pode acabar, se as instituições do Estado não tiverem a coragem de assumir o seu papel no controlo e responsabilização. O Estado que faça a sua parte. É o mínimo.

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