Opinião

O anexo da sorte milagrosa

Guida Osvalda

Dizem as pessoas mais velhas, que viram o bairro nascer, que naquela zona existiam muitos imbondeiros. No meio destes, havia um grande imbondeiro, provavelmente com mais de 100 anos de existência, que era rodeado de muitos mistérios.

10/03/2024  Última atualização 10H39

Era um imbondeiro muito enigmático, muito frondoso e com uma múcua docinha e saborosa. Dizem ainda os mais velhos que aquele não era um imbondeiro comum: ele tinha um "espírito”, pois sempre que alguém se sentasse ou se deitasse em baixo das sua espessa copa ouviam-se vozes e até cantigas de embalar e dava, inclusive, sonhos reveladores que podiam mudar drasticamente a vida da pessoa. Quando alguma pessoa parasse junto dele, à procura de abrigo, as folhas do imbondeiro falavam entre si, como se estivessem a comentar sobre a condição da pessoa. Contam-se histórias extraordinárias sobre o imbondeiro que acolhia os bichos-do-mato, os viajantes e camponeses exaustos que procuravam abrigo junto do seu grosso tronco à busca de sombra.

Uns diziam que o dito imbondeiro sondava os corações das pessoas e dependendo da bondade, pureza e amor que estas pessoas nutriam pelo próximo aconteciam coisas boas. Se existisse rancor, inveja ou algum sentimento mau que ferisse outrem, o "espírito” da árvore retribuía na mesma medida.     

Com o passar dos anos a província de Luanda cresceu e os imbondeiros foram derrubados. A zona tornou-se habitada e junto do imbondeiro foi construída uma vivenda. O dono da vivenda derrubou o grande imbondeiro que tinha um diâmetro de 10 metros e no espaço foi construído um cômodo que servia de arrecadação. Quando os filhos do casal constituíram as respectivas famílias, o casal foi construindo anexos no quintal. A arrecadação foi limpa e arrendada. Por ser apenas um cômodo quem o arrendasse tinha que fazer ginástica para poder colocar uma mesa minúscula, quatro cadeiras, fogão sem forno e outras tralhas. Era um puxadinho que não tinha muita procura por ser apenas um quarto. No entanto, quase todos que arrendavam aquele espaço eram bafejados pela sorte. Diziam os inquilinos que aquela era "uma casa especial”, que causava uma sensação de paz. Todos os ocupantes daquele lugar tinham uma história e registavam-se acontecimentos interessantes. Um dos casos foi o de um casal, relata a vizinhança, que tentava ter filhos há anos e que já tinha desistido de entender o motivo da sua infertilidade. Os médicos não encontravam motivos que impedissem a geração de filhos. Consultas foram feitas, as famílias apontavam-se os dedos mutuamente, atirando as culpas e acusações de feitiçaria umas às outras. Três meses depois de arrendar o cômodo, a esposa começou a sentir um mal-estar inexplicável. Provavelmente um paludismo - pensou. Foi a dona da casa, uma octogenária, que numa conversa decidiu passar alguns conselhos:

- Tens que ter cuidado, o princípio da gravidez é muito melindroso, minha filha. Comer bem, não muito, mas comer coisas boas, muito descanso…

-  Eu não faço filho – a inquilina de 37 anos respondeu com pesar. - Estou casada há 18 anos e ninguém descobre o motivo da infertilidade, procurei muitos médicos, ervanárias e nada.

- Mas agora estás grávida. A porta que Deus abre ninguém fecha e Deus te abençoou - a idosa falou calmamente. De facto, sete meses depois a mulher deu à luz gêmeos. Um segundo casal que arrendou o espaço passava por inúmeras dificuldades. O marido tinha o histórico de não conseguir manter-se nos empregos. Mas 15 dias depois de arrendar o anexo, o rapaz assinou um contrato de trabalho por tempo indeterminado numa empresa de construção civil, enquanto a mulher foi contratada para trabalhar numa creche. O terceiro casal, dizem os vizinhos, quando arrendou o cômodo lutava há anos para registar os cinco filhos, depois de certo tempo conseguiu registá-los e matriculá-los numa escola de referência. Existe também o relato de outro casal que sonhava comprar um terreno para ter casa própria e meses depois recebeu a doação de um espaço, de um familiar distante, e conseguiu  construir uma casa. 

O quinto casal tinha três filhos, o marido -, um protecção física -, lamentava-se todos os dias da vida difícil que enfrentava, enquanto a mulher zungava sacos de plásticos no mercado sempre indisposta e amargurada com a vida que levava. Certo dia, depois de dois anos na casa, a mulher sonha que recebeu milhões de kwanzas. Que tipo de sonho é este? – pensou.  – Onde é que ela, uma zungueira de sacos e amantizada com um zé ninguém havia de conseguir tanto dinheiro? Lamentou cheia de rancor da vida. Naquele dia, indisposta, não saiu para a zunga e ficou em casa a remoer o sonho. Tentava entender o significado daquele sonho: dizem os mais velhos que o que acontece no mundo dos sonhos também acontece na realidade. Farta do barulho das crianças, mandou-as brincar fora do quintal e longe. Passados 30 minutos o seu primogénito de 10 anos de idade, acompanhado pelo irmão mais novo de oito regressa às pressas: – Mamã fomos apanhar umas "culus” (latas de cerveja ou refrigerante) nas barrocas …

 - O quê? Você é burro d’aonde? Você não ouve não é? Já disse que é perigoso brincar na lixeira porque podem encontrar lá granadas ou minas - ela estava exasperada. O filho cheio de medo de levar um tabefe estendeu a mão que segurava uma lata de coca-cola. – Mamã… esta lata tem alguma coisa...

Ela olhou para a lata como se olhasse para um engenho explosivo. – E depois…? Deve ter cocó ou outra merda qualquer –gritava ela com raiva dos filhos e da situação em que se encontrava. 

- Acho que não é cocó, não está a cheirar mal.  – O menino continuava com as mãos estendidas em direcção a mãe que relutava em pegar na lata. Depois de uns cinco minutos que pareceram uma eternidade para a criança, a mulher pegou na lata.  De facto, está pesadinha – ela pensou e verificou que estava bem fechada. Que mistério era aquele? Uma lata de refrigerante com alguma alguma coisa deitada assim numa lixeira… Observando bem a lata teve a impressão que a tampa havia sido reposta e com ajuda de uma faca conseguiu remover a cobertura. Dentro da lata havia pequenos cilindros envoltos em papel aderente. Com cuidado e depois de muito esforço conseguiu puxar para fora da lata um cilindro e remover a película.  Diante dos seus olhos surgiram 10 notas de 100 dólares. O coração da mulher disparou e viu tudo escuro. Recompôs-se e rapidamente retirou da lata mais 10 cilindros de notas com o mesmo valor. Pensou que estava a enlouquecer! Pensou no sonho que teve. Ninguém no seu perfeito juízo guarda tanto dinheiro numa lata para depois atirar no lixo. Só podia ser coisa do diabo. Provavelmente era dinheiro da maiombola. Com uma sensação de desmaio colocou o dinheiro dentro de um saco e entregou aos filhos: - Vão nas barrocas e queimem esse dinheiro da maiombola, leva também uma caixa de fósforo.

Na lixeira, os meninos atearam fogo no dinheiro como a mãe ordenou. Um adulto que passava ralhou com as crianças: - Mas que brincadeira é essa? Vossa vida quando não vão à escola é  colocar fogo no lixo?

- Não tio, a nossa mãe mandou botar fogo no dinheiro da maiombola…

O senhor rapidamente procurou um objecto para recolher areia e apagar o fogo:  - Estão a queimar dinheiro? Em menos de cinco minutos outras pessoas juntaram-se ao homem com intenção de apanhar alguma coisa. Quando finalmente o fogo apagou, no meio do lixo queimado, restavam apenas pedaços de notas de dólares. O marido nem chegou em casa, soube logo de tudo:  que os filhos tinham achado uma "culu” cheia de dólares, mas queimaram tudo, porque a mãe achou que era dinheiro de feitiço. O casamento acabou.

Outro caso foi o de um casal jovem, ele com 21 anos de idade era "trabalhador” numa zona onde havia muitas lojas de venda de peças de automóveis enquanto ela, com 17, ficava em casa a sonhar acordada com o dia em que teria sorte na vida.  Certo dia, segundo relato dos vizinhos, o rapaz foi "convidado” pelo segurança de uma das lojas para a descarga de um contentor de 40 pés durante a noite. O rapaz acompanhado pelo segurança e pelo dono da empresa trabalhou toda a noite e quando os primeiros raios de sol "lutavam” para quebrar a escuridão ele foi "despachado” com uma caixa que continha um saco: - É o teu pagamento e vais gostar - disse um nigeriano, responsável pelo contentor. Quando chegou a casa, apesar de extremamente exausto abriu a caixa e tirou o saco: eram kwanzas que nunca tinha visto e certamente não voltaria a ver. Enlouquecido de euforia despejou o dinheiro sobre a cama. Ele e a sua jovem esposa deitaram-se por cima do dinheiro, atiraram notas para o tecto até que  ambos voltaram a adormecer por cima do dinheiro. Quando despertaram, o sol ia alto e o quarto estava quentíssimo, obrigando-os a abrir a única janela que existia. Não teve o cuidado de guardar o dinheiro. Preocupado com a sua ausência, um companheiro de trabalho decidiu procurá-lo. Quando chegou junto da janela a primeira coisa que viu foi a "montanha” de dinheiro. Começou por exigir que lhe comprasse duas motorizadas para que não fosse denunciado. Naquele mesmo dia foram ao Hoji-ya-Henda onde compraram três motorizadas. No dia seguinte outros amigos e familiares souberam do dinheiro e tiveram como presente pelo menos 100 mil kwanzas cada. O saco de dinheiro foi guardado no canto do quarto como roupa suja. O andar do jovem mudou e deixou de trabalhar.

Tinham se passado cinco dias quando, numa tarde, por volta das 13 horas, agentes à paisana do SIC irromperam pelo anexo a dentro com armas em punho. O jovem foi arrastado para fora aos pontapés e bofetadas: o inquilino foi apontado como integrante de um grupo criminoso de nigerianos envolvidos em tráfico de droga e branqueamento de capitais. Segundo a polícia, o rapaz teve como "prémio do trabalho” 17 milhões de kwanzas. Os outros inquilinos e a octogenária estavam estupefactos! Como é que o rapaz permaneceu naquele quarto com tanto dinheiro na mão? Se ele como ajudante teve um "prémio” de 17 milhões quanto é que o segurança e o boss da loja levaram? O jovem e a esposa foram detidos, o saco que continha o dinheiro, as motorizadas e tudo que parecia ter valor foi levado como objecto de prova. O anexo foi transformado novamente em arrecadação.

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