Opinião

O debate parlamentar que merecemos

Kumuenho da Rosa

Jornalista

O primeiro dia das discussões à volta da Lei da Nova Divisão Político-Administrativa de Angola, na Assembleia Nacional, deixou no ar um conjunto de preocupações sobre a qualidade do debate parlamentar.

05/03/2024  Última atualização 08H57

Quem acompanhou pela televisão ou pela rádio, registou, certamente, com agrado, algumas intervenções que podemos considerar boas ou até muito boas, tendo em conta a capacidade argumentativa, o domínio técnico das matérias em pauta e a elevação do discurso no trato entre pares.

Sou apologista de um debate de ideias sério e consequente, mas com elevação e correcção. Um debate que privilegie a incessante busca por consensos, por mais antagónicas ou inconciliáveis que sejam as ideias em discussão. Mesmo que fiquemos longe do consenso, sejamos capazes de apertar as mãos e seguir as nossas vidas.

A propósito, um jovem académico angolano, com quem tive o privilégio de partilhar a audiência num espaço de debate televisivo, em horário nobre, disse-me certa vez que eu era "demasiado educado” para que alguém conseguisse levar-me a perder as estribeiras, num debate em televisão.

Na verdade, isso não é nada que não se consiga com pouco de inteligência emocional e umas noções básicas da doutrina inaugurada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosemberg, conhecida por Comunicação Não-Violenta (CNV) ou "Comunicação Empática”, que foi, há décadas, adoptada pelas Nações Unidas.

Em relação ao jovem académico, de quem falei atrás, não sei se alguma vez tentou que eu me passasse, em pleno debate. A verdade é que, apesar dos atritos, fruto de posições manifestamente antagónicas sobre muitas coisas do nosso xadrez político, somos capazes de apertar as mãos, trocar um abraço fraternal e sentarmos à mesma mesa para varrermos umas cucas.

Para os que vêem nisso uma espécie de pecado mortal, alérgicos a ideia de manter uma interação antagónica, mas com respeito, atenção e empatia, recomendo a doutrina de Marshall Rosemberg, que ensina a escuta activa e profunda, como pressuposto para se evitar os estímulos comunicacionais impulsivos e automáticos.

Sou um seguidor da doutrina de Rosemberg. Dediquei muitas horas de leitura à sua obra, desde que aceitei pela primeira vez o desafio de fazer televisão, em 2015, no programa "Falar Claro” da TPA, de feliz memória, com Reginaldo Silva, Luísa Rogério e Jaime Azulay, com o meu amigo Adalberto Lourenço, na condução do debate, que era transmitido às sextas-feiras, depois do Telejornal.

Desde essa altura que comecei a coleccionar admiradores, mas também desafectos, naturalmente, pela forma como procuro defender as minhas posições, sem ofender ou vexar o oponente, tampouco a audiência. Sou produto da educação que recebi dos meus queridos pais, dos ensinamentos e dos conhecimentos adquiridos na vida académica, profissional e também como cristão.

Hoje, como consultor em comunicação, procuro influenciar na maneira como decisores e executivos constroem uma mensagem capaz de emocionar, aproximar e gerar empatia.Aprendi com os melhores, que não se deve atacar um adversário que já esteja no chão, rendido ou em posição de submissão.

Podemos ser competitivos e não gostar de perder nem a feijões… Mas vencer um combate, por mais que nos custe, saberá sempre melhor, se pudermos evitar a humilhação do adversário. Há quem veja nisso um problema. Uma espécie de inaptidão para o combate político. Mas é errado, claro. Essa é talvez uma prática desconhecida para alguns actores da nossa política doméstica, acostumados ao discurso de ódio, que em nada acrescenta numa sociedade que quer efetivamente evoluir.

Essa foi, infelizmente, uma das tristes constatações no primeiro dia do debate parlamentar à volta da proposta de Lei da Nova Divisão Político-Administrativa de Angola. Tivemos sim, como referi no princípio, intervenções muito bem conseguidas, mas tivemos outras, literalmente, para esquecer.

Exageros à parte, quem acompanhou o primeiro dia do debate parlamentar sobre a DPA certamente não escapou do choque que foi ouvir aquelas intervenções que, no mínimo, levantam dúvidas quanto à capacidade intelectual de alguns dos nossos dignos representantes na Casa das Leis.

Chegou a ser confrangedor ouvir intervenções de Deputados, que pareciam querer disputar o título de pior do dia, Ora com temas absolutamente fora da pauta, ora responderem a outro Deputado, da bancada adversária, por um ataque que só ele mesmo entendeu como tal, desperdiçando assim uma soberana oportunidade de se manter calado.

Se por falta de preparo ou se por falta de uma assessoria mais actuante e profissional, a verdade é que o nível do debate parlamentar tem ficado um pouco aquém do desejado. No período imediatamente a seguir à guerra, era normal e até esperado que volta e meia, no calor do debate, alguém se lembrasse de um episódio triste e a discussão resvalasse para acusações de parte a parte.

Tenho bem memória de verdadeiras refregas políticas nas sessões parlamentares, sabiamente mediadas por políticos como Roberto de Almeida, Paulo Cassoma, França Van-Dúnem e Fernando da Piedade Dias dos Santos, que puxavam dos galões para engrossar a voz sempre que a situação assim o exigisse. Hoje vemos a luta diária de Carolina Cerqueira, a primeira mulher ao leme do hemiciclo angolano, construindo a olhos vistos o seu legado como líder parlamentar.

Estranho que ainda hoje, passados quase 22 anos, surjam Deputados que tudo o que conhecem dos cerca de 27 anos de guerra fratricida em Angola, é dos livros, dos jornais da época ou do ouvir dizer, recorram ao argumento de quem desviou, quem matou ou quem destruiu pontes e estradas, durante a guerra. Isso é no mínimo reprovável. Além de violarem normativos internos da Assembleia Nacional, esses Deputados também desrespeitam o legado e a memória daqueles que lutaram e, esses sim, tiveram que consentir sacrifícios por uma Angola em paz e reconciliada.

 
*Jornalista

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