Opinião

O “esquecido” programa nuclear iraniano

Faustino Henrique

Jornalista

Não há dúvida de que o programa nuclear iraniano, para fins pacíficos, segundo as autoridades iranianas, secundadas pela Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), mas considerado uma “ameaça existencial” por Israel, acabou por se “evadir” dos radares políticos e diplomáticos por força dos acontecimentos de 24 de Fevereiro de 2022 e 7 de Outubro deste ano.

20/03/2024  Última atualização 09H15

A guerra na Ucrânia e os cinco meses de refrega entre as Forças Armadas Israelitas e o movimento de resistência islâmico, Hamas, acabaram, por um lado, por reduzir a pressão que Teerão enfrentava para ser mais cooperante e transparente e, por outro, a ofuscar todos os esforços para o monitorar.

Até a AIEA, sedeada em Viena, Áustria, e liderada pelo diplomata argentino, Rafael Grossi, está desorientada relativamente ao estádio do programa nuclear iraniano, na medida em que o director-geral daquela instituição foi citado, recentemente, pelo jornal The Jerusalem Post a fazer declarações que ninguém esperava ouvir, mas compreensíveis à luz do actual contexto.

"Já se passaram três anos desde que o Irão deixou de aplicar provisoriamente o seu Protocolo Adicional e, portanto, também já se passaram três anos desde que a Agência conseguiu realizar acesso complementar ao Irão”, disse Grossi, descrevendo grandes lacunas nas inspecções nucleares, tendo acrescentado que "a Agência perdeu continuidade de conhecimento em relação à produção, estoque de centrífugas, rotores e foles, água pesada e concentrado de minério de urânio.”

Estranhamente, das autoridades iranianas surgiram declarações ainda mais inquietantes, relativamente aos avanços do programa nuclear, segundo as quais todo o ciclo que envolve o enriquecimento de urânio acima do percentual que permite o fabrico de armas nucleares já foi alcançado e que a eventual produção de armas atómicas já não é um problema científico ou tecnológico.

Embora sejam encarados, no Ocidente, como discutíveis e até propaganda tudo quando vem do Irão, atendendo à falta de confirmação independente, os anúncios e informações sobre os progressos no campo nuclear são completamente novos e, dando o benefício da dúvida às notícias segundo as quais apenas dependerá de decisão política o eventual fabrico de armas nucleares, trata-se de um ponto de não retorno.

Na verdade, quando a Administração Trump decidiu, unilateralmente, retirar-se do Acordo nuclear entre o grupo denominado P5+1 (os membros permanentes do Conselho de Segurança mais Alemanha) e o Irão, em 2018, agitado por sectores conservadores alinhados com o Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu, muitas vozes tinham advertido que se estava a cometer um erro crasso na monitoria ao programa nuclear.

Como era de esperar, o Irão deixou de se comprometer com a redução considerável do enriquecimento de urânio, tendo como contrapartida o levantamento das sanções, e, atendendo ao regresso das penalizações e acções de sabotagens, acabou por acelerar o seu programa nuclear.

Para se ter uma ideia, de acordo com os compromissos do Acordo nuclear, o processo de enriquecimento de urânio, a partir de 2015 devia permanecer abaixo dos 5 por cento, acompanhado dos mecanismos de verificação e inspecção, sem aviso prévio, às principais centrais nucleares iranianas. E, com as devidas variações, de facto, não passava dos vinte por cento.

Em Setembro de 2023, pouco depois da expulsão de oito inspectores, diz-se que o Irão "foi apanhado a enriquecer urânio até 84%, muito próximo do nível de 90%”, valores que os especialistas consideram passível de serem empregues para fins militares. 

Por um lado, todos os esforços desencadeados pelos Estados Unidos, com as sanções, financiamento de grupos da oposição, isolamento político e diplomático do Irão, e por Israel, com assassinatos de cientistas, inserção de vírus ao sistema informático das centrais nucleares e sabotagens, não contribuíram nem para retardar o programa nuclear iraniano.

Por outro, são dadas como fundadas as posições assumidas por muitos segundo as quais de nada vai adiantar atacar as centrais nucleares iranianas porque, como alguém advertiu, o programa nuclear iraniano passou a ser, também, um elemento de orgulho nacional e meio de dissuasão à semelhança do vasto arsenal de mísseis.

A ser verdade a informação segundo a qual o Irão já completou todo o ciclo de enriquecimento de urânio que pode levar ao fabrico de armas nucleares, faltando, para o efeito, apenas decisão política, então chegou-se ao ponto em que as autoridades iranianas, muito provavelmente, sempre procuraram: ter capacidade para fabricar armas nucleares, mas sem avançar para a sua produção.

Hoje, as autoridades iranianas, seguramente, retiram as melhores ilações com o que sucedeu com países que renunciaram às armas nucleares, nomeadamente, a Ucrânia e Líbia, com todas as consequências decorrentes do sucedido com o primeiro, na era Kadhaffi, e com o segundo por via do Memorando de Budapeste.

Nada vai dissuadir o Irão das conquistas nucleares alcançadas, nem mesmo uma investida militar dos Estados Unidos ou Israel, como sugeriu, em Fevereiro, David Albright, físico nuclear, especialista mundial em armas e fundador do Instituto de Ciência e Segurança Internacional, quando aconselhou os dois países a ameaçar com um "ataque esmagadoramente poderoso”, caso o avance com o fabrico de bombas atómicas.

A esperança dos sectores conservadores na América, associados à extrema-direita israelita, é um eventual regresso ao poder do republicano Donald Trump à Casa Brança, cujas decisões dependerão, em parte do cenário geopolítico que encontrará em Janeiro de 2025, se for eleito.  Apesar de ter prometido usar de todos os meios para impedir um Irão nuclear”, com a Administração Biden, ao que tudo indica, o programa nuclear iraniano está mesmo "esquecido”.  

*Jornalista

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