Opinião

O Huambo de ouvir e falar (3)

Manuel Rui

Escritor

Tem vezes em que ficamos calados, a ouvir palavras poucas, por detrás dos olhares e sinais de mãos de crianças embrulhando a surpresa. Mas fica sempre uma infinidade de palavras por dizer, dando a impressão que o silêncio é o reduto dos nossos sentimentos. Depois a memória do esquecimento e as mensagens.

15/02/2024  Última atualização 06H10
"Viva Belinha, não entendi bem essa tua ida para a Caála?”

"Boa tarde tio como está.

Eu sou filha do Elísio Nunes fotógrafo e da Zulmira, sua prima filha do avô Maciste irmão do avô Américo, seu falecido pai. Sobre os parentes mestiços que foram viver para a Guiné não sei, a mãe nunca nos falou nisso. Aqueles meninos negros que lá estiveram no quarto do hotel são filhos do Wilson, filho do tio Celino, irmão da mãe. Têm muito orgulho no avô como lhe chamam, na escola não acreditam que são netos do autor da letra do nosso hino e agora com as fotografias e os livros vão-lhes subir no respeito.

O comboio piolho? Era um comboio familiar, porque os passageiros, operários para as oficinas, estudantes e outros. Viver na Caála é muito bom. Construi a minha casa, comecei a construir em 2013 e terminei em 2015, mudei-me para lá e foi difícil adaptar-me, vivemos de 2015 a 2022 à base de gerador, até que fomos abrangidos pela luz dos postes.

Foi muito difícil adaptar-me, mas agora, com a entrega da centralidade da Caála, Faustino Muteca, tudo ficou melhor já temos lojas próximas, escolas, creches, postos médicos, salões de beleza, etc. O meu marido tem uma carrinha e faz fretes.

Para mim tornou-se melhor porque também estou a trabalhar numa fazenda que produz rosas. Beijinhos tio, te amo muito.”

"Manda-me o nome desses meninos. Quando eles levarem o jornal para a escola…lembro-me que lá no hotel iam vestidos como se fossem à igreja, sapato e meia. Diziam o nome baixinho e depois o apelido Monteiro, em voz mais alta.”

As mensagens emocionam-me mais do que as falas. E chegaram os nomes e idades.

"Tio, são sete aqui estão. Três têm a mesma idade porque são filhos de mães diferentes:

1- Paulo Alexandre Monteiro, 12 anos

2- Adélio Rosário Monteiro, 10 anos

3- Jorge Cláudio Monteiro, 10 anos

4- Misael Moreira Monteiro, 10 anos

5- Abimael Jeremias Monteiro, 8 anos

6- Emanuel Francisco Monteiro, 6 anos

7- Wilder Lucas Monteiro, 2 anos.”

"Belinha, estava a pensar em dois bois de lavrar terra. Comprava e alugavamos a quem quisesse charruar. Um boi custa quanto?”

"Tio, um boi custa 300.000 mas nem eu nem o meu marido e os filhos já crescidos percebemos de bois. Eu já sou avó. Mas vou saber.”

Maravilha. O tempo. A centralidade com o nome do meu amigo com quem andei a fazer comícios. Agora, vejo no jornal a imagem das obras do estádio do Mambroa. E no Carnaval, as meninas rainhas do milho da Caála ganharam. E vi na televisão o Carnaval no Huambo.

Meus netos, no adiantado da idade do vosso avô, não terei muito tempo para vos merecer. Mesmo assim, vamos segurar esse monumento que eu gosto muito. A máquina do comboio. Quem será o maquinista? A máquina não foi feita por nós. Nem pelos portugueses. Ficou nossa.

Vamos arranjar carruagens bonitas. Preparar farnel. Vamos todos até o Martins com uma térmica para comprar camarões, a Ixa que parece um espirito para paixão de poetas.

Vamos todos até a cabeça do porco a rir. Todos pelo amor e contra o ódio. Essa máquina sabe muita coisa. Puxou alegrias e tristezas e agora merece viajar nesta festa até ao mar.

Comecem a ensaiar as cantigas para alegrar a viagem para que ombela caída do céu nos toque no rosto e se misture com as nossas lágrimas pelo tempo que muitos de nós perdemos sem amar.

Vou numa carruagem com os sete Monteiros, o caçula de dois anos, vai no meu colo, os dois fazendo bolinhas de sabão que saem pela janela e depois se desfazem… como a vida.

Estou a escrever isto tentando dominar a emoção, olhando para o fundo da sala onde está a jarra do lindo ramo de rosas que a Belinha levou ao aeroporto. Estão a fenecer.

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