Opinião

O lado cego do amor é de origem Umbundu

Domingos Mucuta | Lubango

Jornalista

Eram amigos de infância. Cresceram algures num dos bairros periurbanos da grande cidade do Lubango. A convivência tornou Ngombelo e Ukwete irmãos por afinidade. Na adolescência, andaram em muitas empreitadas atrás das garinas. Porém, o destino separou os dois. Ukwete foi viver na capital, onde exerce um cargo intermédio numa empresa do sector petrolífero.

04/02/2024  Última atualização 10H18

Ngombelo, homem alto e de voz grossa, permaneceu na terra natal. Listou-se nas Forças Armadas por força do recenseamento militar. Chegou à patente de oficial superior. Por inerência, chefia uma das unidades castrenses. É um homem bastante temido e respeitado pelos subordinados.

Na época, não havia telefones móveis nem operadoras. Conversavam pouco por causa da distância. Ninguém sabia como o outro estava. Cada um pensava no amigo irmão. Era difícil ter correspondências. A distância e o trabalho colocavam barreiras na amizade. A nostalgia unia-os emocionalmente como amigos de longa data.

Num belo dia, Ukwete regressa entusiasmado ao Lubango quando estava em gozo de férias. Queria visitar a família e obviamente rever o melhor amigo. Ukwete matou saudades com a família que o recebeu com alegria. Entretanto, perguntou sobre o seu melhor amigo, aquele irmão com quem partilhou momentos inesquecíveis. Todos se lembravam dele. Aliás, frequentavam a casa como filho da família.

Foi-lhe explicado que o Ngombelo agora é grande chefe, porque virou comandante de batalhões de homens fardados e armados. A mãe resumiu que, apesar disso, o amigo continuava o mesmo homem educado, visionário e acutilante.

Os parentes deram o endereço da unidade onde o amigo trabalhava. Ukwete prometeu lá chegar para rever o amigo. Tentou contactos por várias vezes na unidade sem sucesso. As restrições impostas pelas tropas tornavam o chefe inacessível.

Naquela sexta-feira, acordou cedo. Era o tudo ou nada. Ficou de plantão na entrada da unidade. Como "Deus ajuda quem madruga”, finalmente, o reencontro aconteceu quando o Ngombelo entrou na Unidade. A tropa ordenou que se afastasse porque o chefe estava a chegar.

Ukwete viu naquele momento uma oportunidade. Quase se jogou à frente da viatura. Interpelou o carro do amigo de infância à entrada. Por pouco levava, porque a tropa já estava pronta para disparar. Valeu a atenção do comandante que reconheceu logo aquele companheiro de longa data, que já estava com as mãos sobre o capô.

Desceu. Saudaram-se efusivamente. Admiraram as transformações físicas. Ninguém mais tinha o corpo de adolescente. "Ukwete, rapaz, você está assim?”, questionou Ngombelo. "Yá. E você, chefe? A farda ficou-te bem. Mas está mesmo grande, chefe”, observou Ukwete. Gargalhadas e abraços.

Seguiram para o gabinete. Ngombelo pediu para aguardar enquanto orientava uma formatura da tropa em parada.  Despachado o assunto, continuaram a conversar e questionarem-se sobre como estava a vida de ambos.

Ukwete relatou ao amigo que tinha um emprego que lhe garante salário digno suficiente para realizar despesas do mês e viver de forma confortável lá na capital. "Dá para notar. Estás mais fino. A boa vida parece que está a te perseguir? Muito bom saber”, comentou o anfitrião.

"Não é para tanto. Vivo maritalmente com uma dama. Tenho já dois filhos e estamos à espera do terceiro. E o que é feito de ti, meu amigo, ou melhor, chefe?”, ironizou Ukwete. "Estamos aqui, meu irmão, em missão de Estado a servir a pátria”, respondeu Ngombelo.

"Muito bom comandante”, elogiou. "E  a  minha cunhada?”, insistiu.  O amigo remeteu-se ao silêncio momentâneo antes de responder. A insistência, motivou o desabafo de Ngombelo. "Tive algumas decepções no passado. Neste momento, vivo sozinho há três anos”, desabafou.

"Sozinho porquê?”, questionou Ukwete, antes de citar a Bíblia para lembrar ao amigo que "não é bom que o homem viva só”.

"Sei disso, meu irmão. Na verdade, neste momento, estou sozinho, mas com uma nova relação em vista”, tranquilizou, antes de convidar o amigo a conhecer a sua cara-metade enquanto estivesse pela cidade.

Ukwete aceitou o convite. No fim-de-semana, os dois rumaram para a visita. Partiram lá daquele condomínio fechado onde vive. Passaram a zona urbana. Entraram num subúrbio. Deixaram a estrada. Entraram na terra batida num troço esburacado. E depois de 45 minutos, estavam numa zona recôndita. Mato. Casa de pau-a-pique. Barulho de galinhas, de vacas, cabritos e patos. Estavam numa aldeia lá nas bandas do Tchivinguiro.

Foram recebidos com euforia. Mas faltava alguém. O chefe perguntou por ela. Alguém informou que ela estava dentro. Naquele instante, ela saiu encurvada para passar pela porta da cubata. Lá vinha a mirada do chefe. Sorridente. Rosto limpo. Corpo monumental. Peito alto. Nota-se o gingado no andar. Foi apresentada ao amigo. Rolou conversa e lá permaneceram por algumas horas. O tempo passou e era momento de regressar à cidade.

Retiraram-se da banda da donzela. Pelo caminho, algo inquietava Ukwete. Ele pergunta ao amigo por que raio um grande chefe e comandante de tropas foi tão longe procurar uma dama naquele mato tão distante? "O que viste nesta gaja?”, perguntou, de forma irónica, ao que o Ngombelo retorquiu: "Watimba Kalete”.

Sem perceber, Ukwete indaga o significado. Como a tradução literal podia ter outra conotação, o pretendente justificou que esta expressão em língua nacional Umbundu, na interpretação erudita para português, deu origem à célebre máxima "o amor é cego”.

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