Opinião

O “neoliberalismo de esquerda” e o retorno do fascismo

João Melo*

Jornalista e Escritor

Uma das causas da ascensão da extrema direita e do fascismo em todo o mundo é a dificuldade de renovação do campo político conhecido como “esquerda”, em especial depois da queda do muro de Berlim e da falência do “socialismo real”, fundado no leninismo-estalinismo (deixe-se Marx fora disso).

08/05/2024  Última atualização 12H50

Hoje, a "esquerda” (aspas imprescindíveis) está dividida entre a "esquerda neoliberal” e a "esquerda woke” (identitarista). Muitas dessas forças que se batem ou dizem bater contra a direita globalmente hegemónica evitam, inclusivamente, ser chamadas de "socialistas”, preferindo termos como "progressistas” e até "liberais” (palavra que dá para tudo, até para o neofascista argentino Javier Milei).

Ao que parece, insistir na palavra "socialismo” tende a ser confundido com as práticas leninistas e estalinistas aplicadas na antiga URSS e replicadas, durante um certo período histórico, em outras partes do mundo. Essa confusão, porém, é injusta.

Lembra, a propósito, a filósofa norte-americana, Susan Neiman, no seu livro "A esquerda não é woke” (que recomendo a todos): - "(...) ´socialista´ já foi uma posição politicamente respeitável na terra dos livres [EUA].

Ninguém menos que Albert Einstein escreveu uma orgulhosa defesa do socialismo no auge da Guerra Fria”. Acrescentou a autora: - "O que distingue a esquerda dos liberais [de direita, sublinho eu] é a ideia de que, além dos direitos políticos que garantem a liberdade de expressão, de culto, de deslocação e de voto, também temos direitos sociais, que estão na base do exercício efetivo dos direitos políticos”.

Ou seja, ser de "esquerda” ou "socialista”, hoje, implica defender quer os direitos políticos quer os direitos económicos e sociais, sem os quais aqueles não passam de uma miragem.

A actual ameaça da extrema direita e do fascismo, diga-se, é internacional, organizada e articulada. Nenhum país escapa a essa ameaça. Mas o caldo de cultura fundamental dessa ameaça é o neoliberalismo, a que também podemos dar outros nomes, como capitalismo extremista, hiper-capitalismo, capitalismo financista, capitalismo de casino ou capitalismo tecno-financeiro.

Com efeito, o neoliberalismo é viabilizado por certos processos e está associado a determinadas ideias básicas – desnacionalização e globalização, sobretudo do capital; predominância dos serviços; uberização da economia e do trabalho; as falácias da meritocracia e do empreendedorismo; confusão entre economia e contabilidade; individualização radical e outras -, de consequências altamente perversas.

Apenas a título de exemplo, cito algumas dessas consequências: a obscena concentração de riqueza em curso, quer nacional quer mundialmente; o tráfico de drogas, armas e pessoas; a violência urbana; as guerras; a imigração descontrolada; a ambição; o radicalismo e conservadorismo religioso, contrário a todas as escrituras e que – isso tem de ser dito – não passa quase sempre de simples (e terrivelmente eficaz) estratégia de negócios e de poder.

O drama, sobretudo para quem se considera de esquerda, é que as principais reformas neoliberais que têm vindo a ser generalizadamente aplicadas em todo o mundo a partir dos anos 80 do século passado (recorde-se: depois da terrível experiência do Chile) foram-no por líderes considerados de esquerda (sociais-democratas ou socialistas), como Felipe Gonzalez (PSOE, Espanha), François Mitterand (PS, França) e Tony Blair (Partido Trabalhista, Reino Unido).

No Brasil, especialistas afirmam que o desastre aconteceu no segundo governo de Dilma Roussef (PT), com a sua "recessão planeada” (que descambou em depressão).

Neste último país, actualmente, muitas vozes de esquerda estão inquietas com certas medidas económicas do terceiro governo de Lula, cuja meta maior, segundo tais vozes, é mostrar ao "mercado” que é capaz de fazer um ajuste fiscal melhor do que o governo bolsonarista.

Talvez Lula precise, por isso, de olhar para o caso de Portugal, onde o afã e o orgulho do PS e de António Costa pelas "contas certas” não impediram as forças de direita de urdirem um golpe judicial para o derrubarem com sucesso.

A grande lição das eleições antecipadas em Portugal, diga-se a terminar, foi essa: o crescimento exponencial da extrema direita. É que uma das consequências das políticas neoliberais é o agravamento dos problemas sociais dos cidadãos; ora, se a esquerda, ao invés de os enfrentar e tentar resolver, entender que precisa de agradar às forças que tendem a concentrar toda a riqueza nacional e mundial, ajudará a criar um caldo de cultura propício aos piores populismos, libertando todos os fantasmas existentes em qualquer sociedade.  

 

*Jornalista e Escritor

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