Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana- I

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Na década de 80 do século XX, decorridos cerca de cinco anos após a Independência de Angola, tivemos a oportunidade de participar em eventos científicos internacionais, integrando comitivas de escritores de várias gerações. Foi um período em que convivemos, simultaneamente, com poetas, ensaístas e ficcionistas de diferentes gerações literárias angolanas. Estou a referir-me às gerações de 40, 50, 60 e 70. Esse sentido da temporalidade subjacente ao conceito de geração suscitava em mim uma profunda curiosidade, a partir do momento em que se institucionalizou o ensino da literatura angolana, na sequência da queda do regime colonial, a partir do 25 de Abril.Por isso, em homenagem ao poeta de Kabiri, Joaquim Dias Cordeiro da Matta (25 de Dezembro de 1857-2 de Março 1894), cujo falecimento ocorreu há 130 anos,a proposta de conversa gravitará em torno dos fundamentos de uma historiografia literária e ontologia dos objectos históricos que o constituem

10/03/2024  Última atualização 10H21

Interesse histórico-literário

A partir de 1984, a curiosidade que se centrava no sentido da temporalidade subjacente ao conceito de geração literária e suas conexões com a história e a identidade, teve uma janela de oportunidade para ser exteriorizada. Foi o que aconteceu com a participação no Colóquio sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa realizado, na cidade de Paris, no Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian. Cinco anos depois, o escritor Luandino Vieira, Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, convidou o autor destas linhas a integrar as delegações que representaram Angola,sucessivamente, no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, realizado na sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, (1-3 de Março) de 1989, e no Congresso da African Literature Association (Associação de Literaturas Africanas), realizado em Dakar (20-23 de Março) pela Universidade Cheikh Anta Diop. Neste congresso foram abordados problemas respeitantes ao ensino e história das literaturas africanas, à luz do seguinte tema: "The Growth of African Literature: Twenty-Five Years After Dakar and Fourah Bay”, (O Crescimento das Literaturas Africanas: De Dakar a Fourah Bay College Vinte e Cinco Anos Depois). Tomava-se como referência os resultados dos colóquios da Universidade Dakar e Fourah Bay College, Serra Leoa, de 1966, que tinham sido consagrados inteiramente ao ensino das Literaturas Africanas.

As comunicações que tínhamos apresentado aos três eventos mencionados tematizavam três tipos de problemas historiográficos: 1) Identidade e sentimento de pertença do escritor angolano; 2) Descalibanização das literaturas africanas de língua portuguesa, refutando as teses do "reino de Caliban” de Manuel Ferreira (1917-1992); 3) Identidade literária e biografia do poeta José da Silva Maia Ferreira (1827-1881).

Todas estas reflexões eram realizadas num contexto em que as Humanidades não tinham ainda cobertura institucional no sistema educativo angolano. Não se ministravam cursos em domínios das Ciências Sociais e Humanas, exceptuando as Ciências de Educação, a Economia e o Direito. No entanto, entre os interlocutores do diálogo que se estabelecia havia alguns membros da Geração Literária das Incertezas ou de 80 que se dedicavam à investigação historiográfica, entre os quais se destacavam E. Bonavena, aliás Nelson Pestana, e o autor destas linhas.

 
Abordagem historiográfica

No programa do Colóquio da African Literature Association figurava um painel sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no qual seriam oradores os especialistas dessa área. À luz do tema "Angolan Literature: Shaping  a  Nationality  1849-1989” (Literatura Angolana: A Construção da Nacionalidade), as comunicações concentravam-se em torno da literatura angolana com as contribuições de escritores, críticos, investigadores e professores, entre os quais os norte-americanos Gerald Moser (1915-2005), Phyllis Reiseman, Russell Hamilton (1934-2016); os portugueses, Cristina Pacheco e Salvato Trigo; os senegaleses Ahmet Kebe, Mallé Kassé e Mustapha Bangoura; os angolanos Manuel Rui, E. Bonavena e Luís Kandjimbo.

Apresentei uma comunicação que me permitia fazer o balanço da investigação que vinha desenvolvendo no Centro de Documentação e Investigação Histórica, actual Arquivo Histórico Nacional. O título, "José  da  Silva  Maia  Ferreira  e os Contextos  dos  Discursos  Líricos  no  Século    XIX”, revelava já o conhecimento da historiografia literária angolana que, nas décadas de 50, 60 e 70, apesar do reduzidonúmero de obras e autores, contava com um conjunto de materiais publicados por três ensaístas angolanos, e alguns estrangeiros, como veremos mais adiante,nomeadamente, Mário Pinto de Andrade, Mário António Fernandes de Oliveira e Carlos Ervedosa chamou a atenção de Gerald Moser, um dos mais reputados especialistas norte-americanos na época.

 
Sistematização discursiva

O esforço de sistematização discursiva e historiográfica vinha sendo desenvolvido desde finais da década de 40 do século XX, por autores angolanos como Mário Pinto de Andrade (1928-1990), Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989) e Carlos Ervedosa (1932-1992). A lista inicial passou a ser integrada por especialistas estrangeiros de que fazem parte o português Alfredo Margarido(1928 - 2010) e o germano-americano Gerald Moser. Foi este último que, em1962 e 67, publicou, respectivamente, os artigos "African Literature in the Portuguese Language” (Literatura Africana em Língua Portuguesa). e «African Literature in Portuguese: The First Written, The Last Discovered,» (Literatura Africana em Português: A Primeira Escrita e a Última Descoberta), e o primeiro livro sobre o surgimento de obras e movimentos literários nas então colónias portuguesas, "Essays in Portuguese-African Literature”, (Ensaios sobre Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, em 1969 pela editora The University of Pennsylvania Press).

 
Romantismo e literatura nacional

Quando em 1849 foi publicado em Luanda o livro "Espontaneidades daMinha Alma”de  José  da  Silva  Maia  Ferreira, a  história  literária  angolana registava as influências de autores brasileiros numa das  primeiras  manifestações da moda  romântica do nacionalismo e do  antilusismo. Esboçava-se, igualmente, a imitação das formas de nativismo literário. Vivia-se a primeira fase do romantismo (1836-1853). José da Silva Maia Ferreira reproduzia os modelos brasileiros. O Brasil era um dos países destinatários do tráfico de escravizados Africanos, além de ser preferido por uma certa burguesia escravocrata que para lá enviava os filhos com o fim de realizarem os estudos. Para todos os efeitos, após a independência conquistada em 1822, a mais importante das atracções brasileiras residia no facto de o romantismo ter desencadeado a reivindicação de uma literatura verdadeiramente autónoma. Quando se leem os poemas   Benguelinha e A Minha Terra, percebe-se que Maia Ferreira sofre as influências do brasileiro Gonçalves Dias (1823-1864, pouco mais haverá para   que seja considerado seguidor das modas brasileiras da época. Com efeito, os valores   românticos em Angola só viriam a ser vividos intensamente e levados à expressão literária com alguma consistência, em finais do século XIX, mais precisamente em 1886. Tal proeza é realizada por uma geração de escritores em que se distingue Joaquim Dias Cordeiro da Matta, ecoando o romantismo português da Geração Literáriade 1870. É este autor que vem introduzir o conceito de poesia moderna.  Tal como escreve no poema com o mesmo título, trata-se de uma poesia que celebra as lidas e auras dos povos livres  de  grilhões "que  em  horrendo, triste e  mísero  jugo  viveram  gemendo”. Portanto, os interesses dos escritores angolanos por questões respeitantes à história literária e literatura nacional historiográficas remontam à geração literária da segunda metade do século XIX, durante a qual se revela a proeminência de Joaquim Dias Cordeiro da Matta.

Ora, em 1886,quando se publicou"Delírios”, o livro   de poemas  de  Joaquim  Dias  Cordeiro  da  Matta,  trinta  e  sete  anos   depois  de  "Espontaneidades  da  Minha  Alma”,  o  número  de  jornais de  angolanos se tinha multiplicado, quer  como proprietários, quer como  jornalistas. Concomitantemente, se decantavam, no espaço angolano, os ecos   e a ressaca dos diferentes romantismos literários.  Começava   então   o processo do chamado"povoamento   branco”  de  Angola. O Echo de Angola tinha sido o primeiro título do jornal de Angolanos, cuja publicação teve início   em 1881.  A lista de jornalistas   incluía cronistas e prosadores, militantes de uma autonomia que busca referências da História e na Linguística. Os mais célebres são   Arantes Braga, João Inácio de Pinho e o próprio Joaquim Dias Cordeiro da Matta.   Entretanto, Delírios inaugurava a  construção  de uma  estética literária  angolana, concorrendo  para  a definição  dos  padrões  de  apreciação da  beleza  feminina  e  da  paisagem, e em   estratagemas de  incorporação  de  vocábulos  em língua  Kimbundu  nos  poemas. O poema Nguibanga-kiê, (Que faço?) é exemplo disso.

Ao enunciar os tópicos do sumário do seu livro "Philosophia Popular em Provérbios Angolenses”, publicado em 1891, Cordeiro da Matta manifesta claramente as suas inquietações relativamente à construção de uma literatura angolana (a literatura dos angolenses). Destaco os quatro últimos tópicos: "(…) - Sua ortografia na língua vernácula. - Necessidade de Angola ter uma literatura sua. - Como os angolenses devem desenvolver. - O que é a literatura dum povo?” Mais adiante, escrevia o seguinte: "(…) pedimos aos nossos compatriotas que dediquem algumas horas de ócio ao estudo do que Angola tiver de interessante, para termos uma literatura nossa.”

 
História literária?

Na década de 80 do século XX, interrogávamo-nos acerca da importância que podia ter a história literária ou a história da literatura em Angola. O modelo de perguntas emanava das categorias da investigação histórico-literária ocidental com os quais estamos aqui a operar. Por exemplo, períodos literários, movimentos literários (romantismo), gerações literárias, géneros literários. Ou ainda, o próprio conceito de história literária que é tributário do lugar central atribuído ao modelo de Estado moderno, enquanto instituição originariamente ocidental.No contexto dos sistemas culturais e literários africanos, os efeitos do mimetismo manifestam-se de várias formas. A repercussão das crises do referido modelo ao nível das literaturas é apenas uma delas. A título de ilustração podemos referir as constatações que se fazem nos centros e instrumentos de legitimação ocidental (universidades, disciplinas, editoras, antologias, histórias literárias, bibliotecas, bibliografias), a respeito da ausência das literaturas africanas de língua portuguesa no chamado "mainstream”, na corrente principal, dos estudos literários africanos. De igual modo, o facto de existirem muito poucos escritores não-ocidentais que merecem atenção considerável no Ocidente e a concepção ocidental de literatura-mundo. Por conseguinte, se é necessário repensar as Humanidades como universo disciplinar do mundo académico, faz sentido rever a aplicação e o sentido da história literária que transporta o legado dos romantismos e nacionalismos ocidentais. Há perguntas e respostas que serão sempre diferentes. A sua variação dependerá dos sujeitos que as formulam e contextos em que ocorrem. É o que aconteceu com as respostas de René Wellek (1903-1995) e Austin Warren (1899-1996) na sua obra clássica "Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários” (1956), perante a questão de saber se é possível escrever a história literária, articulando o literário e a história. O mesmo se passa com aquelas perguntas que foram formuladas em França por Clément Moisanna década de 80 do século XX: "O que é a história literária?”, "Quem se interessa pela história literária?”, "Por que se escreve a história literária?”, "Como se concebe a história literária?”, não poderão encontrar as mesmas respostas em todos o mundo.

 
Conclusão

Ao trazer à conversa a problemática dos fundamentos de uma historiografia literária angolana levantam-se questões sobre a ontologia dos objectos da história literária. No contexto africano, somos confrontados com a necessidade de clarificar as opções metodológicas, quando se trata de definir os objectos que a constituem, em sistemas literários onde coexistem línguas nacionais e línguas oficias de origem europeia, por um lado e literaturas orais e literaturas escritas, por outro lado. As perspectivas comunitaristas que se cruzam nos debates filosóficos africanos elevam o nível de complexidade, tendo em conta a dignidade que o pluralismo assume, longe das tentações metodológicas monistas e positivistas das metodologias individualistas ou holistas. Assim, enunciadas as vertentes em que se vai desenvolver a nossa reflexão, a proposta de conversa que se segue vai conduzir-nos ao campo da articulação entre a literatura nacional e a história literária, revisitando o pioneirismo e os textos de Mário Pinto de Andrade, Mário António Fernandes de Oliveira e Carlos Ervedosa.

 

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil.  em Filosofia Geral

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