Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana- III

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Se a historiografia literária é um campo do saber que se constrói em torno da acção dos sujeitos, instituições, obras e acontecimentos que formam um determinado sistema literário, a sua ontologia consiste nas respostas, descrições, definições, conceitos dos objectos e propriedades que estruturam esse tipo de sistema. Por conseguinte, a sua identidade ao longo do tempo justifica a necessidade que temos de operar com o conceito de tradição literária. A reflexão que aqui retomamos exige a clarificação do que, no contexto angolano, se deve entender por ontologia da tradição literária numa perspectiva de filosofia historiográfica

24/03/2024  Última atualização 07H10

Acção auto-constitutiva
A tematização a que me proponho tem a ver com a exploração do discurso auto-constitutivo que está na origem da literatura angolana, tal como se conhece presentemente. Os protagonistas dessa acção são comunidades históricas, gerações e seus membros, individualmente. Manifestam-se através de uma consciência instauradora, colectiva e individual, cuja identidade e duração é suportada pela história da literatura e a história literária a que se vinculam as respectivas narrativas. As notas historiográficas que dedicámos ao século XIX, obras e seus autores, a que acresce a necessidade de uma original historiografia das literaturas orais e respectivas comunidades constituem abalos profundos dos modelos nacionais ocidentais, centrados em monismos linguísticos e homogeneidades étnicas do antigo paradigma filológico. Importa chamar a atenção para o facto de Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894)ter demonstrado a pregnância dessa consciência histórica auto-constitutiva. A partir das realidades e objectos que a mobilizam, se justifica o recurso aos conceitos do aparato teórico e filosófico ocidental, à luz de uma semântica contra-discursiva. Trazemos aqui três desses conceitos historiográficos: ontologia histórica, tradição literária e geração literária.

Investigação e rupturas

No contexto do diálogo que as literaturas nacionais propiciam a nível global, a história literária não se confunde com a história da literatura. O traço distintivo que se estabelece entre os dois tipos de matrizes narrativas tem o seu fundamento nas teorias de histórias literárias dominantes no Ocidente, por um lado, e de histórias de literaturas nacionais, entre as quais as literaturas africanas, a que se vem atribuindo estatuto de literatura-mundo, por outro lado.O balanço da investigação histórico-literária realizada sobre as literaturas africanas no século XX permite constatar que os estudos literários africanos revelam especificidades de que vêm resultando profundas rupturas, relativamente às referidas teorias dominantes de histórias literárias. Os mais lúcidos especialistas ocidentais têm vindo a reconhecer os equívocos das suas historiografias literárias sobre outras literaturas. Por exemplo, foi a partir de 1967 que as releituras e revisões recomendadas pela Associação Internacional de Literatura Comparada se concretizaram através do projecto de uma história comparada das literaturas africanas em línguas europeias, baseada em duas premissas fundamentais: 1) a redacção de histórias literárias, confinadas às fronteiras das nações, povos e línguas devia ser complementada pela redacção de histórias literárias que coordenassem fenómenos relacionados e comparáveis do ponto de vista internacional; 2) os investigadores não podiam individualmente elaborar tais sínteses históricas, devendo ser realizadas sob os auspícios de um estruturado trabalho de equipa, integrada por colaboradores oriundos de diferentes nações.No primeiro volume dessa história comparada das literaturas africanas em línguas europeias, a literatura angolana merece referências inaugurais no primeiro capítulo, numa secção que tem a autoria do investigador germano-americano Gerald Moser (1915-2005). Além dele, a história das literaturas africanas de língua portuguesa, abordada à luz de uma perspectiva comparada, conta com outros redactores, nomeadamente, Norman Araújo, Manuel Ferreira (1917-1992); Willfried Feuser (1928-2000) e Elena Rjausova. É sintomático que, no cômputo geral, o I volume dessa história comparada cujo editor era o belga Albert Gérard (1920-1996), um dos mais destacados investigadores europeus das literaturas africanas em línguas europeias,evidencie o predomínio dos modelos ocidentais de história literária. A constatação é relevante na medida em que a potencial lacuna que consiste em ignorar a coexistência das línguas europeias e das línguas nacionais africanas é colmatada de modo assimétrico por uma secção do II volume, dedicada ao que se designou por "três tradições literárias”. Donde se legitima a apologia de perspectivas alternativas. O falecido professor mexicano MarioJ. Valdés(1934-2020) considerava que, no contexto da América Latina, o construto adequado para denominar o fenómeno sobre o qual nos debruçamos devia ser o de "história literária efectiva”, baseada na problemática do escritor. No dizer de Mario Valdés, "a base epistemológica da história efectiva é o processo de explicação que aponta para a compreensão das tensões, rupturas e recuperações, bem como para a transformação do mundo cultural”.

Literaturas em línguas africanas

A constatação que fazemos acerca da potencial lacuna que consiste em ignorar as literaturas em línguas africanas é ilustrada por algumas obras cuja importância é ignorada. Menciono os trabalhos publicados pelo investigador belga Albert Gérard sobre o que ele denominou como "literaturas ignoradas”. De igual modo, a obra colectiva "Literatures in African Languages. Theoretical Issues and Sample Surveys”, 1985, (Literaturas em Línguas Africanas. Questões teóricas e pesquisas por amostra). Fica provado que o acervo bibliográfico não é desprezível,organizado de modo assimétrico por uma secção do II volume, dedicada ao que se designou por "três tradições literárias”. Registou-se uma viragem na historiografia literária africana sobre a qual paira silêncio e exclusão. A leitura da introdução escrita por Bogumil Witalis Andrzejewski (1922-1994), especialista da literatura oral Somali, o editor dessa obra organizada por académicos polacos e britânicos, constitui um motivo para compreender os fundamentos da hegemonia dos meios académicos e editoriais europeus a respeito das tradições literárias em línguas africanas.Com efeito, essas literaturas são ignoradas e, por isso, o silêncio representa a negação da sua existência, ou seja, a negação da sua ontologia.

Ontologia da historiografia

Na década de 80 do século XX, curiosamente, a historiografia literária africana registava mudanças acerca do que devia ser a ontologia histórica dessas literaturas do continente africano. Não deixa de ser interessante saber do que falamos, ao empregar a palavra ontologia. O que significa e o que é a ontologia? Nos dicionários, as entradas que lhe correspondem formulam uma definição segundo a qual a ontologia é "a ciência do ser”. Não é por se tratar de um termo eminentemente técnico, específico do discurso filosófico, que nos devemos inibir de o interpretar e fazer uso dele. Trata-se de um vocábulo da língua portuguesa que tem origem etimológica no grego.Donde se formou a partir de duas unidades lexemáticas: "onto” e "logos”.Firmou-se no vocabulário filosófico do século XVII, em latim, exprimindo uma"filosofia do ente”. Isso ocorre em dois livros publicados por autores alemães, Rudolph Göckel (1547-1628)e Jacob Lorhard (156-1609). Mas foi um outro filósofo alemão, Christian Wolff (1679-1754), professor do ganense William Amo (c.1700-1754), que o consagrou na Alemanha, também em latim com o seu livro publicado em 1730, "Philosophia Prima sive Ontologia”, (Filosofia Primeira ou Ontologia). Admite-se que o primeiro uso conhecido do termo "ontologia”,  em inglês,tenha ocorrido em 1663.

A ontologia é uma disciplina filosófica que se ocupa do estudo do ser, especialmente,dos entes e dos objectos abstractos. Alguns filósofos diriam que a ontologia é a metafísica especial, trata da existência em geral. Já a metafísica geral elege como objeto de investigação a natureza, as últimas causas ou essência do ser. A ontologia opera com processos que se configuramcomo descrições e inventário do que existe, em obediência a uma teoria particular.

Ora, o facto de se tratar de uma unidade lexemática de origem grega não significa que a realidade designada, a sua referência, os objectos do mundo real que lhe correspondem, sejam exclusivamente europeus. Os sujeitos, instituições, obras e acontecimentos que formam um determinado sistema literário, existem de igual modo em África. Por conseguinte, a ontologia historiográfica da literatura angolana ocupa-se da busca de respostas perante questões como estas: O que existe? O que há? O que tem sido?

Noção de tradição 

É mais um vocábulo que, etimologicamente, deriva de uma família de palavras do latim, tais como o verbo "tradere” que significa transmitir, transferir ou entregar, também usado para significar actividade de ensinar; "traditum” é um tipo universal de acção;  "traditio” consistia na ação de entregar certa  coisa, de transferir a coisa  para outra pessoa ou simplesmente transmitir conhecimento. 

Antes de nos debruçarmos sobre o sentido do que significa tradição literária, parece razoável dialogar com alguns filósofos. Em primeiro lugar, o filósofo ganense, Kwame Gyekye(1939-2019). No seu livro "Tradition  and Modernity”, procura definir a noção de tradição que se revele útil à compreensão dos universos culturais africanos. Partindo da interpretação das definições de autores europeus e norte-americanos, Gyekye fornece uma definição.  Por tradição Gyekye entende "qualquer produto cultural que foi criado ou perseguido por gerações anteriores e que, tendo sido aceite e preservado, no todo ou em parte, pelas gerações seguintes, mantém-se até ao presente”. Os sujeitos aos quais se atribui a responsabilidade de criar a tradição são aqueles que criam os próprios produtos culturais constitutivos da tradição.Para KwameGyekye é necessário ter em conta o desejo que as gerações subsequentes devem cultivar para promover os valores culturais adquiridos, sem o qual não pode haver tradição. Assim, o conceito de tradição articula-se ao de geração, especialmente aquela que, sendo subsequente, promove a tradição, preserva o que herda, considera valiosa a formação do carácter pelo qual se pugna. Gyekye refere o exame crítico como atitude necessária para que essa promoção seja mais eficaz.Em seu entender, a sobrevivência da tradição pode depender de dois factores principais: a regular crítica interna da tradição e a adopção de práticas de outras culturas que sejam suceptíveis de apropriação.

Em segundo lugar, o filósofo cubano-americano Jorge J.E. Gracia (1942-2021), no seu livro "Old Wine in New Skins: The Role of Tradition in Communication, Knowledge, and GroupIdentity”, (Vinho Velho em Odres Novos: O papel da tradição na comunicação, no conhecimento e na identidade de grupo), dizia que  a tradição se situava no centro das acções da cultura, das crenças e dos valores humanos. Por outro lado, acrescentava que a tradição é útil para resolver importantes problemas filosóficos que dizem respeito àcomunicação, ao conhecimento e à identidade de grupo. Assim, sublinhava que comunicação estabelecia conexões estreitas com a transmissão do conhecimento.Já a identidade da tradição, implica a diferença. Numa interdependência dialéctica, a identidade coexiste com a não-identidade. Isto quer dizer que a compreensão da identidade está associada à compreensão da não-identidade.  Portanto, o problema da identidade pressupõe a busca de respostas e conduz à discernibilidade da identidade. Jorge J.E. Gracia concluía que essa reflexão culmina com a determinação das condições necessárias e suficientes para a existência da identidade da tradição ou dos grupos sociais. Por outro lado, a discernibilidade da identidade culmina com a determinação das condições necessárias e suficientes do conhecimento da identidade da tradição ou dos grupos sociais.

Conclusão

Portanto, a historiografia africana entendida como contra-historiografia inspira uma vigilância epistémica e uma ressemantização de determinados conceitos historiográficos. Limitamo-nos aqui a três, designadamente, ontologia histórica, tradição literária e geração literária. Acrescem releituras de obras colectivas já referidas na conversa anterior. O diálogo com o professor e crítico literário beninense Adrien Huannou, acerca da sua adopção do modelo nacional das literaturas africanas, pressupõe a clarificação de elementosdo aparato teórico e filosófico, seus conceitos e categorias, tal como o tematizamos. Não concluímos a abordagem. Por isso, voltaremos aos tópicos, na próxima conversa. Tem interesse conhecer as alternativas para uma resposta actual à questão que em 1961 foi formulada pelo ensaísta e poeta angolano Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989):  "Poder-se-á falar de tradição literária angolana?”. No entanto, o diálogo com o filósofo ganense Kwame Gyekye e como filósofo cubano-americano Jorge J.E. Gracia permite concluir que estão aí enunciadas premissas de um debate que continua a ser necessário.

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

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