Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana - V

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Na segunda metade do século XX, verificava-se que o desenvolvimento da consciência narrativa e auto-constitutiva dos jornalistas e escritores angolanos exprimia-se através de uma discursividade que permite demarcar a existência de comunidades históricas que habitam um território suportado por uma civilização, apresentando características de uma anti-colónia. Por conseguinte, as gerações de escritores cuja acção legitima a institucionalidade da literatura angolana operam com pensamentos que as afastam da tradição literária portuguesa, embora lhes esteja subjacente o espectro da matriz da literatura nacional europeia. Essa consciência narrativa e auto-constitutiva dos jornalistas e escritores angolanos assume a forma de nativismo literário, cujo sujeito é um alter ego do escritor da nacionalidade europeia

07/04/2024  Última atualização 11H59

Tradição literária e alternativa 

Em Janeiro de 1962, Mário Pinto de Andrade (1928-1990) proferiu uma conferência na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos da América, a convite do professor norte-americano Immanuel Wallerstein (1930-2019). Parte do texto dessa conferência foi publicada na revista "Presénce Africaine” com o título: "Littérature et Nationalisme en Angola” (Literatura e Nacionalismo em Angola). Aí, já na qualidade de intelectual engajado na luta efectiva contra o colonialismo português, Mário Pinto de Andrade enuncia os fundamentos de uma historiografia da literatura angolana, que é uma contra-historiografia, no contexto colonial. Ataca os pressupostos da assimilação espiritual levada a cabo pela ideologia colonial portuguesa que tinha um apoio na doutrina do luso-tropicalismo cujo teórico é o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987). Sublinha o facto de o desenvolvimento da literatura escrita moderna não contar com as formas de criação literária das culturas africanas, confinadas ao estádio oral e mantidas numa "clandestinidade tribal”. Percebe-se que já nessa altura, Mário Pinto de Andrade reflectia sobre a possibilidade de se construir uma narrativa, uma história literária fundada em pressupostos que excluíam as literaturas da tradição oral em línguas nacionais.

Com efeito, Mário Pinto de Andrade tem como referênciaos precursores da literatura nacionalista escrita em língua portuguesa que, entre 1925 e 1935, destacando-se António de Assis Júnior (1878-1960), inspiraram as novas gerações do pós-guerra, a partir de 1948. O ano de 1951 assinalou uma viragem. Tinha surgido o "Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, no âmbito da afirmação de uma "geração literária de escritores brancos e negros, nascidos em Angola”. Quanto a nós, eram os filhos da anti-colónia. Por outro lado, Mário Pinto de Andrade assinalou a importância que teve a criação do Centro de Estudos Africanos, constituído na cidadede Lisboa, em 1952, por iniciativa de Agostinho Neto (1922-1979), Amílcar Cabral (1924-1973) e Francisco José Tenreiro (1921-1963), respectivamente, de Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Tratava-se da semente do nacionalismo ecuménico que tomaria uma outra forma, anos depois, com a constituição da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP).

 

Nativismo ou nacionalismo?

No dizer de Mário Pinto de Andrade, aquilo que se entende por nativismo era uma ideia projectiva "veiculada pelos letrados africanos desde os anos 80 do século XIX. Trata-se de um termo pelo qual o segmento intelectual dos ‘filhos da terra’ […] exprimia o sentimento colectivo de ser portador de valores próprios, o referente de identificação e confluência das suas aspirações a uma autonomia e futura independência”. Por essa razão, o nativismo concretizava-se através de ideias e comportamentos, desenvolvendo-se a partir das posições que os próprios "filhos da terra, os angolenses, reivindicam. É um conceito que designa a forma como a ideologia nacionalista de origem europeia se manifesta no espaço territorial angolano, em finais do século XIX e princípios do século XX. O associativismo nativista é uma das suas mais expressivas manifestações desse nacionalismo do alter ego. Numa perspectiva periodológica pode dizer-se que a geração fundadora da Liga Angolana representa o segundo nativismo.O primeiro nativismo teve lugar no século XIX, sendo José de Fontes Pereira (1823–1891), o representante da 1ª geração a que se seguiu a geração de Joaquim Dias Cordeiro da Mata (1857-1894).

Mas o chamado "nacionalismo moderno angolano”, efectivamente, surge apenas na primeira década do século XX.Ao considerarmos o nativismo como expressão da ideologia nacionalista, operamos com o conceito de ideologia entendido como conjunto de ideias, valores e comportamentos que gravitam em torno do político, enquanto realidade transversal. Se o nativismo conforma ideias e valores de autonomia, soberania e independência, no contexto da organização do Estado colonial, é o associativismo que exprime a concretização dos comportamentos políticos organizados, neste caso através da acção colectiva de organizações, jornais e publicações cujo valor a narrativa histórica regista.

 

Associações de nativos

As primeiras associações de nativos de que temos notícia datam da segunda metade do século XIX como é o caso da Associação "José de Fontes Pereira”. Em princípios de 1900 surgem outras em Benguela e Luanda. Por exemplo, o Grémio Africano em Benguela, o Sport Club Angolense, União Recreativa, Sociedade dos Quipacas em Luanda. Sucedem-lhes a Liga Angolana e o Grémio Africano. Em algumas cidades angolanas surgiram outro tipo de organizações associativas. Para Óscar Ribas (1909-2004), o associativismo nativo das primeiras décadas do século XX, pode ser analisado em três tipos: sociedades recreativo-espirituais, espirituais e mutualistas.

As mudanças que se viriam a registar, a nível do discurso literário, no dealbar do século XX, são assinaladas desde logo pela publicação do livro "Voz de Angola Clamando no Deserto”(1901) e a fundação de jornais, tais como "O Angolense”(1907), em Luanda, "Era Nova”(1912), em Malanje, de que era proprietário António Joaquim de Miranda (1864-); "Eco d’Africa” (1914) em Lisboa.

 

Contexto colonial

No contexto da implantação da República em Portugal, durante a primeira década do século XX, em 1910, e a aprovação do Acto Colonial, em 1930, a institucionalização do ensino secundário oficial ocorreu apenas em 1919 com a criação do Liceu Salvador Correia, em Luanda. Isso representou uma mudança profunda na formação das elites angolanas, no âmbito de um processo que corresponderia às necessidades de uma administração moderna, ao abrigo dos valores republicanos de que decorrem o exercício efectivo de direitos e liberdades. Formava-se então uma camada social de angolanos que se pretendia afirmar como uma elite que toma consciência da situação de dominação colonial. Nesse período, o associativismo, a propriedade de jornais e a escrita (literária e jornalística) constituíam três dos mais importantes instrumentos da defesa dos interesses angolenses que revelam bem a recepção do republicanismo e das correntes estéticas e ideológicas que dominam os panoramas literários brasileiros, portugueses e europeus em geral. Estes são os vectores em que se analisa o nativismo literário angolano.

 
A geração literária de 40  

Como se caracteriza a geração literária de 40? Quais são as bases da sua formação? Vamos responder às duas perguntas, através de um breve olhar sobre a trajectória de um dos seus membros. Estou a referir-me a Agostinho Neto. Nas décadas de 30 e 40, frequentou os meios socializadores protestantes e oficiais, em Luanda, designadamente, a escola da Igreja Metodista, o jornal O Estandarte e o Liceu, onde concluiu o ciclo de ensino secundário.Publicou textos que constituem a sua juvenília, entre poemas e artigos de inspiração religiosa, no jornal O Estandarte e na revista da Liga Africana, Angola.Os artigos publicados em Luanda juntam-se a outros com os quais colabora em determinadas revistas e com palestras que profere em várias ocasiões. Entretanto, destacam-se alguns que constituem marcos, no âmbito da história intelectual angolana, a saber: "Instrução ao Nativo” (O Estandarte, 1945);"Uma Causa Psicológica: a ‘Marcha para o Exterior’”,(1946); "Uma Necessidade”, (1946);"O Rumo daLiteratura Negra”, (Centro de Estudos Africanos, 1951);"A propósito de KeitaFodeba”, (Angola, Revista da Liga Africana, 1953); "Introdução ao Colóquio sobre Poesia Angolana”, (1959).

 

Ideais do nativismo

Agostinho Neto revela um pensamento que permite desvendar a sua adesão aos ideais políticos do terceiro nativismo ou nacionalismo moderno angolano. Chega-se a esta conclusão, quando se lê os seguintes textos: "Instrução ao Nativo”, um outro artigo publicado em "O Estandarte” também em 1945, "Uma Causa Psicológica: A marcha para o exterior” e "Uma Necessidade”, estes publicados no jornal "O Farolim”, em 1946. Observa-se uma coerência no plano da articulação. Uma das ideias nucleares, em "Instrução ao Nativo”, consiste na denúncia da injustiça, reivindicando para os nativos a qualidade de beneficiários, pois a instrução é necessária "ao povo de todas as regiões de Portugal”. Agostinho Neto levantava aqui "o problema do aumento do nível de instrução aos naturais”. Em seu entender, é visível a discriminação cuja abolição defende. Por essa razão, observa: "À parte o desenvolvimento escolar que se vem notando nos grandes aglomerados de população europeia e o interesse posto na educação da criança branca, nada, no sentido de se instruir o natural tem sido feito”.

Como exemplo de iniciativas que contribuíam para a alteração desse estado de coisas, aponta o que faziam as "Missões Religiosas”, particularmente as "Missões Evangélicas” de cujas escolas "têm saído muitos dos nativos que hoje exercem funções públicas, são professores, pastores de igreja e uma boa parte da massa do operariado nativo, bem como alguns europeus”.

Diante dos exemplos das igrejas que, entretanto, se debatiam com problemas de ordem financeira e a indiferença das autoridades do chamado "Império colonial”, Agostinho Neto entendia que mais poderiam estas fazer, "desde que haja verdadeiro interesse em resolver-se, ou, pelo menos em aumentar o número de possibilidades de o nativo se instruir, contratar mais professores e abrir mais escolas”.

"Uma Causa Psicológica: A ‘Marcha’ para o Exterior” marca o início da sua colaboração num jornal que, na década de 40, seguia ainda as tradições do século XIX. Trata-se de um artigo publicado no jornal "O Farolim”, em 1946. Lido e situado no seu contexto, é um texto revelador de elevada maturidade. Com ele Agostinho Neto dá consistência a ideias anteriores. Mas evolui, na medida em que diagnostica a falta de unidade entre "os elementos da classe nativa” que têm tendência para se isolarem uns dos outros. Palpitando em si um certo tipo de ideal, Agostinho Neto constata o perigo que espreita: "É paradoxal a desunião entre nós, nativos, que, para não citar outros aspectos do interesse comum têm que lutar coesos pela sua economia e pelo aumento do seu nível cultural.”

 

Cânone literário colonial

Para Agostinho Neto, a fraqueza da classe nativa reside na "psicologia distorcida” que se manifesta no cego seguidismo das modas entre os jovens. Mas tal facto não é fortuito, pois "a desunião entre os nativos não é posterior à fabricação em série do rapaz moderno”. Por conseguinte, a desunião é simultânea. Ao mesmo tempo que "a mulher africana moderna assimilando a inobjectividade da vida, dissemelhando-se da avozinha pacatamente crocheteante, adoptando a despreocupação, o bâton, a sola de cortiça e a saia ascendente; deixou-se apenas arrastar pelo movimento geral que transformou o homem, que (digamo-lo de passagem) é difícil ser- se rebelde!”.

A distorção da psicologia colectiva e a desunião não ocorrem ao acaso. Tem a sua causa fundamental na estrutura do ensino ministrado.

"Os nativos são educados como se tivessem nascido e residissem na Europa. Antes de atingirem a idade em que são capazes de pensar sem esteio, não conhecem Angola. Olham a sua terra de fora para dentro e não ao invés, como seria óbvio. Estudam na escola, minuciosamente, a História e Geografia de Portugal, enquanto que, da Colónia, apenas folheiam em sinopses ou estudam levemente”.

Os efeitos do cânone literário colonial e outros instrumentos da influência portuguesa são funestos. Neste sentido, Agostinho Neto escrevia: "Os indivíduos assim formados têm a cabeça sobre vértebras nativas, mas o seu conteúdo escora-se em vértebras estranhas, de modo que as ideias, as expirações do espírito são estranhas à terra. Daí o olhar-se esta, a sua gente e hábitos, o mundo que os rodeia, como estranhos a si – de fora (…)”

"Produz-se no nativo uma distorção na sua personalidade que se reflecte na vida social, desequilibrando-a.”

A liquidação da alma nativa, enquanto fim da visão eurocêntrica, está no centro da estratégia que Agostinho Neto denuncia: "Lá fora há o hábito de depreciar quanto é nativo; e os moços nativos cujos espíritos derivaram para o exterior e em quem está atinente um quantum de vaidade (como em qualquer ser humano) têm vergonha em considerar-se incluídos naquela esfera depreciada e não somente não a auxiliam como procuram desprezar as iniciativas de carácter puramente nativo […]”

De igual modo, é em "Uma Causa Psicológica: a marcha para o exterior” que lemos o seguinte trecho:

"A minha pouca experiência impediria que a voz chegasse ao céu se eu desse conselhos. Acho, porém, que a mezinha apropriada para anular os efeitos perniciosos bastantes do eurotropismo seria começar por ‘descobrir’ Angola aos novos, mostrá-la por meio de uma propaganda bem dirigida, para que eles, conhecendo a sua terra, os homens que a habitam, as suas possibilidades e necessidades, saibam o que é necessário fazer-se, para depois querer”.          

Os  textos escritos por Agostinho Neto, na  segunda  metade  da  década  de   50 do século XX, designadamente, "Rumo  da  Literatura  Negra”  e   "Introdução  ao  Colóquio  sobre  poesia  Angolana”,  representam o  registo  de  um  pensamento enriquecido pela largura de horizontes que, superando os discursos tipicamente nativistas, não  são  rigorosamente  negritudinistas, como parece  ser o  entendimento de   Pires  Laranjeira,  numa equívoca generalização acerca da existência da "negritude  africana  de  língua portuguesa”. Em "Introdução ao Colóquio sobre Poesia Angolana”, Agostinho Neto escreve: "Entre nós, digo, em Angola  e  na  Metrópole,  defendeu-se  e  combateu-se este conceito”.Trata-se   do conceito de negritude nos termos formulados por Leopold Senghor.

 

Literatura de afirmação nacionalista

Por ocasião da conferênciaproferida na Universidade de Columbia, Mário Pinto de Andrade tinha uma opinião formada acerca das posições doutrinárias de Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989), a respeito da tradição literária angolana e do tipo de abordagem que lhe suscitava a história literária angolana. Referia-se a Mário António como o "jovem poeta que estabelece um tipo de ponte”, entre a geração literária de 40 e a representada nas antologias publicadas na Casa dos Estudantes do Império, sob a direcção de Carlos Ervedosa (1932-1992) e Fernando da Costa Andrade (1936-2009). Por isso, Mário Pinto de Andrade concluía que "os jovens escritores angolanos rapidamente assumiram o propósito de cristalizar o sentimento da independência dos povos angolanos”. Muito longe da decepção causada pelo jovem poeta que se converteria em militante do luso-tropicalismo, acrescentava: "Trata-se de uma literatura de afirmação nacionalista”.

 
Outra história literária nacional

A apologia de uma literatura de afirmação nacionalistaperpassa toda a obra ensaística e historiográfica de Mário Pinto de Andrade que, na década de 60 do século XX, já era suficientemente consistente. É evidente que o seu pensamento apontava para a ideia de um modelo de história literária nacional. Mas a consciência instauradora e auto-constitutiva não deixa de prevenir um erro iminente. Tal erro derivará do facto de se ignorar a tradição literária angolana, reproduzindo-se o modelodas histórias literárias nacionais que é uma emanação do processo de formação dos modernos Estados-nação europeus. Apesar de ser negligenciado, continua a ser relevante e necessário o debate sobre modelos de história literária angolana e história da literatura angolana.

 

Conclusão

O modelo decalcado das histórias literárias nacionais europeias tem pouca utilidade prática, devido ao conceito de tradição literária com que se opera e ao lugar que lhe é atribuído. Os modernos Estados-nação europeus erguem-se à luz de códigos jurídicos escritos,sistemas culturais e linguísticos hegemónicos, homogeneizadores, que resistem à oralidade, ao multilinguismo e ao pluralismo. Portanto, esse modelo de histórias literárias concorre para a realização da identidade nacional e a unidade nacional com elevados custos. Por essa razão, no contexto angolano actual, será recomendável cultivar uma historiografia literária que obedeça a parâmetros metodológicos adequados à complexidade das realidades angolanas, sem perder de vista a dimensão criativa que deve orientar os processos de selecção dos factos, a sistematização dos materiais, bem como o exercício efectivo de redacção

 

*Ph.D. em Estudos  de Literatura, M.Phil.  em Filosofia Geral

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião