Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana – VI

Luís Kandjimbo |*

Escritor

O conceito de tradição literária acarreta conexões coma história, genealogias dos agentes e eventos,gerações literárias, géneros,antologias, dispositivos de crítica literária, interpretação e ensino. Nas narrativas histórico-literárias angolanas, a articulação dessa malha analítica e instrumental suscita sentidos diferentes, especialmente no modo como se pensa o tempo .É por isso que a função da história literária angolana não pode ser definida com base em modelos que se inspiram em outras temporalidades, tais como aquelas em que se funda a matriz da literatura nacional europeia. No contexto africano, a tradição literária não é invenção contingente ou apenas uma fonte da literatura escrita em línguas europeias. Configura o próprio processo da “razão oral”, como o designou o filósofo senegalês Mamoussé Diagne.Qualquer comportamento centrífugo que ignore o lugar da tradição literária angolana, anula as funções que a história literária pode desempenhar

14/04/2024  Última atualização 07H40
Ainda a tradição

Reiteramos a ideia. O conceito de tradição literária tem uma importância indiscutível, quando se pretende abordar a problemática da historiografia literária. Mas uma história da história literária, não deixa de ser história. Por isso, as questões que se levantam no campo da história são transversais. Trago dois autores que problematizam o conceito: o linguista e filósofo beninense OlabiyiYai (1939-2020)e o historiador belga Jan Vansina (1929-2017).

Olabiyi Yai apresentava as suas inquietaçõessobre o modo como se tematizam as representações acerca da experiência e da postura intelectual dos artistas yorubás e dos chamados "historiadores da arte tradicional”. A sua focagem centrava-se nas influências em tradições artísticas específicas, por exemplo, a influência do Benin na arte Oyo, e a influência portuguesa no Benin. Olabiyi Yai entendia que, no contexto das visões do mundo e das tradições intelectuais das culturas africanas, era necessário ter em conta o valor heurístico do conceito de tradição.O que implica a familiarização com os conceitos iorubás de história, bem como com a linguagem e a metalinguagem da história yorubá.

Por sua vez, Jan Vansina considerava que a tradição oral deveria ocupar um lugar central no estudo das culturas, das ideologias, das sociedades, da psicologia, das artes e da história, em África. Vansina destacava a tradição como um tipo especial de fonte histórica, além da sua relevância metodológica. Mas chamava a atenção para o preconceito reducionista. É que as tradições orais não são apenas fontes para a história das sociedades da oralidade ou para o passado dos analfabetos em sociedades alfabetizadas.

Modos verbais e gramáticas modais

Para o tópico da nossa conversa, a reflexão sobre a noção de tradição está longe de se esgotar. Desde logo, porque está associada à noção de tempo, aos modos verbais e a outrasnoções, com que se operaem diferentes línguas naturais. Isto é, os sentidosque se exprimem através de substantivos modais, tais como "possível”, "necessário” e "contingente”. Assim se compreende que a possibilidade ou a necessidade de uma pessoa mudar a sua identidade, como foio caso "paradigmático” do ensaísta e poeta angolanoMário António Fernandes de Oliveira(1934-1989), a partir de 1963, constitui igualmente um problema digno de atenção. É um problema ontológico cujas manifestações ocorrem em textos literários que ele escreveu e que são interpretáveis à luz da gramática do português e das realidades angolanas.Por isso, ocorremduas perguntas: A abordagem ontológica da literatura angolana visa oestudodo que é necessário ou do que é contingente? Poder-se-á dizer que as tradições literárias e as identidades dos escritores são necessidades ou invenções contingentes? Estão aí dois substantivos, duas palavras-chave da língua portuguesa – necessidade e contingência –  que merecem uma boa interpretação. Trata-se de dois substantivos que têm conexões com verbos modais que remetem para a prática de acções correspondentes. Por essa razão, implicam um domínio da semântica do português. Estamos a referir-nos a categorias dos modos verbais (por exemplo: infinitivo, indicativo, condicional, conjuntivo, imperativo) que existem em todas as línguas. No que diz respeito ao discurso literário, podemos dar exemplos da semântica de expressões em que o sujeito poético ou o ensaísta assumem compromissos em enunciados performativos que visam a eficácia do acto de fala subjacente ou, abstendo-se de quaisquer juízos, produzem enunciados simplesmente descritivos. Ou ainda através de categorias modais que permitem classificar comportamentos activos ou dinâmicos, morais ou epistémicos. Portanto, a modalidade é um fenómeno linguístico através do qual a gramática de uma língua permite dizer coisas sobre situações que não precisam de ser reais. Mas a modalidade e as categorias modais não são apenas invenções dos falantes de uma língua. Constituemelementos do espaço semântico de comunidades históricas e dos sistemas linguísticos e literários.

Por outras palavras, a modalidade é um tema fundamental, quando se trata do estudo do significado, na medida em que as comunidades humanasprocuram transmitir informações sobre objectos e acontecimentos situados no tempo e no espaço,e que podem ser reais ou potenciais.

Existem tradições inventadas?

A este propósito, em 1983, dois historiadores ingleses, Eric Hobsbawn (1917-2012) e Terence Ranger (1929-2015),organizaram a edição de um livro com o título: "The Invention of Tradition” (A Invenção da Tradição).Por "tradição inventada”, Hobsbawn entende um conjunto de práticas, normalmente regidas por regras aberta ou tacitamente aceites e de natureza ritual ou simbólica, que procuram inculcar determinados valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente a continuidade do passado. No dizer de Hobsbawn, essa continuidade é em grande medida  fictícia.Mas a tradição de que fala não se confunde com o "costume” que modela e regula comportamentos nas chamadas "sociedades tradicionais”.Por sua vez,           Terence Ranger, partindo da sua experiência africana, aborda as tradições inventadas importadas da Europa, no contexto colonial,e os modelos de comportamento ditos "modernos” quedistorcem o passado, oferecidos aos Africanos. Em conclusão, pode dizer-se que é possível admitir a existência de tradições necessárias e tradições contingentes. Se quiséssemos ter em conta o pressuposto critério da "invenção”, afastar-nos-íamos do centro da nossa reflexão, na medida em que a tradição literária angolana pode sercaracterizada por força da sua necessidade. À ontologia da historiografia da literatura interessam as categorias fundamentais da realidade a que diz respeito. Através dela se procura identificar o quê da existência dos sujeitos e dos objectos, abstractos ou concretos.

Poeta centrífugo

Na conhecida biografia do ensaísta e poeta Mário António Fernandes de Oliveira, registam-se omissões, quando se descreve a sua identidade pessoal. Tal omissão diz respeito ao facto de ter integrado o núcleo de uma geração de intelectuais angolanos que fundaram o Partido Comunista de Angola, em 12 de Novembro de 1955. São eles,Ilídio Tomé Alves Machado (194-1983), António Jacinto do Amaral Martins (1924-1991) eViriato Clemente da Cruz (1928-1973). Os quatro foram subscritores daacta de fundação do Partido Comunista de Angola com nomes de guerra, respectivamente, José Nunes, Paulo Costa, Carlos Duarte e Mon’a Mundu. Ilídio Machado (Paulo Costa) era o mais velho do grupo.Os quatro fundadores e outros membros que a eles se vão juntar, entre os quais Domingos Van-Dúnem (1925-2003), Germano Gomes e Carlos Aniceto Vieira Dias (Liceu)(1919-1994), constituem um dos primeiros grupos organizados de intelectuais marxistas angolanos. Na entrevista que concedeu a Michel Laban (1946-2008), um especialista das literaturas africanas de língua portuguesa, Mário António confessa: "E aconteceu que aos 21 anos fundei o 1º Partido Comunista, em Angola”. Mas abandonou-o em 1957, ano em que se ia casar. Dois anos depois, em 1959, foi preso e restituído à liberdade um mês depois. Fixa-se em Lisboa em 1963, após a participação no 5º Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros. Mas já tinha publicado a ossatura da poesia que lhe garante um lugar cativo na litertaura angolana. Era uma colectânea intitulada "100 Poemas”, de textos publicados em cinco livros: "Poesias”, (1956); "Amor” (1960); "Poemas & Canto Miúdo”, (1960); e "Chingufo-Poemas angolanos”, (1962).Entretanto, o pensamento centrífugo começa a revelar-se em meados da década de 60 do século XX. Consuma-se na poesia e na ensaística. Entre 1968 e 1970, publicou dois livros de poesia cujos títulos são sintomáticos: "Rosto da Europa” e "Coração Transplantado”. Lê-se no poema que dá título aoprimeiro livro: "Eis que descubro o Rosto:/Carta geográfica de Civilização/Com as súbitas marcas colocadas/ em lugar certo e explícito./Há uma linha pura – essencial/Limpidez deste céu alto. Rubores/De frutos explodidos, ausências/De além-mar. Leves tremores/À volta de crateras.”

História literária e identidade

Paradoxalmente, como vimos, Mário António Fernandes de Oliveira viria a abandonar a inscrição e o sentimento de pertença que o vinculava à tradição literária angolana e impregnava os seus textos,tal como tinha defendido na palestra proferida em 1959,na Sociedade Cultural de Angola. Assumiu a identidade portuguesa, ao contribuir para a institucionalização doluso-tropicalismo literário de que se fizera arauto. Reside aí a razão da argumentação débil que contamina os seus seguidores, ao transplantarem o modelo explicativo cegamente.

Assim, conscientes das interrogações sobre a possibilidade e a necessidade, procuremos compreender a crise identitária que emana dos textos literários datados do ensaísta e poeta Mário António Fernandes de Oliveira. Portanto, após 1963,protagonizou uma ruptura de natureza ontológica, marco da crise que o abalou, perante a questão respeitante a uma história literária autónoma e à possibilidade de uma tradição literária angolana.

Que função pode a história literária desempenhar no processo de compreensão das crises de identidade de escritores?O debate acerca desta matéria mobiliza várias comunidades académicas a nível global. Entre as diferentes linhas e recorrências discute-se o problema do conceito de tradição literária, o estilo das narrativas eo modelo das histórias literárias nacionais, o lugar do autor e do contexto histórico, a identidade do texto literário e a função da história literária.

Funções da história literária

Na verdade, a história literária é um importante dispositivo. Do ponto de vista teórico, há diálogos inevitáveis. Estou a pensar nas propostas que David Perkins, um professor norte-americano, formula no seu livro "Is Literary History Possible?” (É Possível a História Literária?), 1992. Há várias propostas com as quais não estou de acordo. Em primeiro lugar, não concordo com a tese de que a função da história literária não se assemelha à da história. Em segundo lugar, não é verdade que a história literária seja diferente da história, em virtude de as obras de uma e outra terem valores que transcendem o seu significado como parte da história. Mas subscrevo a ideia segundo a qual a história literária funciona como crítica literária. É certo que com a história literária pretende-se "reconstruir e compreender o passado”, mas igualmente desvendar os sentidos das obras literárias. De igual modo, estou de acordo que se atribua à história literária a função que consiste em permitir a avaliação do seu impacto na leitura e no seu ensino. Uma outra função da história literária consiste em ser veículo para explicar, compreender e apreciar as obras literárias. O professor da Universidade de Harvard sublinha igualmente que a função da história literáriaconsiste em produzir ficções úteis sobre o passado, situando-se a literatura do passado à distância,de tal modo que se possa explorar a sua alteridade.

Conclusão

Afinal, com que fim se recomendaria investimento, esforço e recursos para escrever uma história literária angolana? Faz sentido formular a pergunta, nas circunstâncias actuais. E talvez se justifique responder, privilegiando, em primeiro lugar, a importância que deve ter a institucionalização do ensino da Literatura Angolana, enquanto disciplina autónoma do sistema de educação e ensino. A partir daí concluir-se-á que a resposta não se pode fundar em qualquer tipo de defesa gratuita. Semelhante postura nos previne sobre os equívocos que, após meio século de Independência, ainda parecem suscitar a ideia de que a leitura e a interpretação de obras literárias angolanas vão solicitando uma autoridade vicária.Os modelos dos outros parecem ter a vocação de substituir o pensamento endógeno. Esta é a razão por que o luso-tropicalismo literário de Mário António Fernandes de Oliveira suscita mais atenção do que a sua própria ensaística e poética angolana. Isto significa que a resposta do ensaísta e crítico literário francês, Roland Barthes(1915-1980) àquela pergunta pode ser útil, com as devidas reservas. Ele considerava que a história literária é antes de mais e sobretudo um instrumento de ensino, por conseguinte, um meio de transmissão de conhecimentos que se torna um modo de educação: cívica, moral, religiosa, política, nacional. Portanto, se não há neutralidade no ensino da literatura, a história literária também não é neutra.

*Ph.D. em Estudos  de Literatura, M.Phil. em Filosofia Geral

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