Opinião

Ou o rasto de voz que me persegue

Pedro Kamorroto

Quem és? Para onde pretendes colocar os teus sonhos agitados? Queres ancorar de uma vez por todas as tuas ânsias naquilo que chamam de luta pela sobrevivência? Que caminhos os teus passos pretendem alcançar?

17/03/2024  Última atualização 11H30
Companheiro, os desejos são megeras, largam-te no momento de puro clímax. Tenha mesmo muito cuidado! Decepção é o único bem disponível para todos.

É gado suíno que passa por processos ásperos de engorda para depois acabar numa mesa de operação natalícia.

Psiu, psiu, olá, olá, psiu, quem és?

Faz uma pausa não muito demorada, e de seguida se dirige, segue o rasto da voz que lhe questiona, e lança a contra-ofensiva:

 – Para te ser sincero, não sei quem sou, um ser por se definir talvez, um anónimo, quiçá mais anónimo que centenas que existem por aí. Mesmo entre a multidão compulsiva, até aqui ninguém foi atrevido o suficiente para me destapar o véu. Até aqui ninguém foi corajoso, curioso o suficiente para conhecer o meu rosto. Não jardei a minha história, não fiz dela um simulacro, não advoguei em causa própria para que houvesse na minha história o comovente drama, consequentemente toda a comiseração e solidariedade possível. Mesmo com todos os aborrecimentos possíveis, sou o que vês, e isto está claro como banha na água. Não coloquei botox para a minha vida parecer menos rugosa, sequer decorei com todo o drama açúcar possível para atrair atenção do colégio das moscas que defecam tudo, menos os sonhos. Daí que já não sonho. Estou com prisão de sonhos, meu ventre sofre muito por isso, mas nunca me vitimei por assinatura, tampouco dei vida às câmaras, luzes e outras acções das estações aglomeradas.

"Justicia, justicia, justicia” – deuses me livrem dessas histerias, destes clamores, destas náuseas na boca das massas.

"Quando a justiça vive à custa desses amplificadores de sinais, desses meios de reprodução de insatisfação, é porque é um fiasco, não sabe do seu real propósito, tem no seu substracto uma errada premissa”.

Olhou atentamente para si, de cima a baixo para a sua situação, como se desse a gritaria roufenha do Ipiranga, recorda amargamente Saramago:

Aos povos pequenos ninguém dá ouvidos, não é a mania de perseguição, mas é histórica evidência.

Se sentia um pequenote mesmo, um cão que ninguém dava trela, sequer era escorraçado. 

Sentimento de orfandade se lhe invadia. Vivia à mercê da bondade e moral alheia.

A caridade e outros actos de bondade dependem, de que maneira!, do nosso estado anímico.  O edredão da sorte lhe abandonou no momento mais crítico, descoberto, sente-se exposto e vulnerável, mas a sua vida sempre foi, e ainda é, uma estação invernal.

Nunca desejou o muito da vida virtuosa, todavia, nunca pensou que seria desse jeito, uma folha seca arrastada pela ventania mais cruel.

Senhor ou rasto-de-voz que me persegue, que sonhos agitados viste em mim? Não tenho sonhos, não sei o que é isso, nunca me importei saber, aceito a ordem natural das coisas que cai sobre mim como cascata ou como se de um contentor com cargas se tratasse.

É tolice lutar contra o status quo, contra as ordens estabelecidas, sobretudo as de origem natural. Não é verdade que sou um imediatista da pior estirpe, que tenho tanta pressa de ir à luta pela sobrevivência, nunca aceitei entrar neste frenesim malsão, evito isso sempre que possível, aliás, nos dias que correm somos todos afectados pela síndrome para tudo.

Há síndrome para tudo, síndrome-do-irmão-dá-lá-só-cem, síndrome-do-irmão-me-ajuda-só...

O homem sobrevive sempre, por mérito próprio ou por dependência.

Não serei menos humano se for beneficiado com a providência dos semelhantes dos deuses, uma chuva farta de maná a invadir o éden da minha boca.

Os meus passos, como vês, sempre foram vagarosos, tenho a ciência da paciência de uma galinha franciscana, espero que brote da terra grãos, assim poderei encher calmamente o meu papo, ingerir cada bago como se não mais existisse amanhã.

Sou um ser amorfo, um mendigo que não procura verdade alguma. O que tenho é o que me dão, nunca colhi mais do que as minhas mãos possam suportar, possam recolher – este é o meu contentamento contente.

Não lanço ombros a nada, não laboro nada que me seja digno.

E tu com isso, Senhor ou rasto-de-voz que me persegue?

Sei que não tens nada a ver com isso, mas já que cá estás, já que insistes em me teares, em sabereres quem eu sou, aproveito fazer todas as descargas, usar-te como canal propício para as minhas descargas.

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