A riqueza da civilização humana é evidenciada pela existência de diversos idiomas(sobretudo a língua materna), cuja contextualização em qualquer geografia, radica na sua funçãohistórica para a formação da identidade socio cultural,que se consubstancia na inter relação entre os povos e os Estados.
Marta olhou para a parturiente diante de si e procurou entender o que se estava a passar. Não era uma primigesta. Era Shara, uma mulher de 37 anos de idade e mãe de quatro filhos. Marta, obstetra, tentava descobrir onde residia a dificuldade para a mulher parir.
A médica estava na sala de partos e só naquela manhã já tinham nascido mais de 30 bebês, o que indicava a probabilidade de nascerem mais de 100 crianças em 24 horas. Shara era uma paciente encaminhada de um centro materno infantil de uma zona periférica. O relatório indicava que o bebé devia ter nascido há um mês, motivo pelo qual a gestante procurou o centro de saúde, onde o médico decidiu esperar que o parto começasse por conta própria, ao invés de usar métodos não médicos para estimular o nascimento da criança ou usar uma indução médica de parto.
A mulher foi acompanhada minuciosamente, mas quando o obstetra apercebeu-se de que havia sinal de parto, e depois de 48 horas em que a bolsa do líquido amniótico não rompia, decidiu pela transferência para a maternidade Lucrécia Paim. Era melhor prevenir e evitar a morte da gestante.
"Mas, algo não bate certo”, pensava a médica intrigada, porque o bebê, aparentemente, tinha tudo para nascer de modo natural. Não era um parto pélvico, já que o bebê não se encontrava sentado dentro da barriga da mãe para fazer com que os pés ou as nádegas saíssem primeiro que a cabeça. Então por quê a criança não nascia? Segundo o relatório médico, o sinal de parto tinha sido registado há mais de 48 horas, a criança já devia ter nascido, até porque seria o quinto parto da mulher.
Clinicamente a mãe estava bem. Não tinha hemorragia, hipertensão, infecções relacionadas à gravidez, HIV ou malária, contudo dava a impressão de que algo prendia a criança dentro da mãe, como se tivesse medo de vir ao mundo.
Uma coisa sabia: o bebê estava vivo e não havia descontrole da pressão arterial, alteração de exames laboratoriais ou sinais de comprometimento fetal para enviar a mãe para uma cesariana!
Nos seus 30 anos como ginecologista e obstetra, tinha,visto e ouvido muitas histórias ligadas à tradição, situações sobrenaturais e casos do arco-da-velha, para além das doenças da alma como a depressão, falta de amor próprio ou ódio profundo que levavam muitas mulheres à morte.
Era médica há longos anos e sabia de cor e salteado que o parto é um trabalho mecânico realizado pelo corpo da mulher, em que as contracções empurram o bebê para ser expelido, obrigando-o a forçar o colo do útero e a bacia, tendo o obstetra ou a parteira apenas que acompanhar o nascimento do nené sem ter que intervir, principalmente quando já era o segundo ou quinto filho, apesar de nenhum parto ser igual. Os partos eram sempre um mistério e cheios de muitas surpresas. Os primogênitos geralmente eram os mais difíceis por estarem a "abrir o caminho”. O caso de Shara era diferente, e deixava a médica confusa.
Marta tornou a observar as análises, incluído o relatório passado pelo obstetra do Centro Materno Infantil de onde a mulher tinha sido evacuada. Para a ciência, aparentemente, estava tudo bem: não era diabética, obesa e nem tinha uma cardiopatia ou outra enfermidade que obrigasse a cuidados especiais.
No âmbito da humanização dos serviços de obstetrícia, Marta estava decidida a proporcionar melhores condições e conforto à paciente, prestando um atendimento mais gentil e simpático durante aquele momento tão importante da vida.
De todas as formas, encorajou a parturiente, elogiando-a pela coragem e que estava à sua disposição para enfrentarem juntas o caminho até que o bebê nascesse. Não resultou! A mulher chorava silenciosamente e demonstrava um semblante de quem perdeu a guerra. Havia alguma doença da alma que colocava a vida daquela mulher em perigo, cogitou a médica.
Marta decidiu chamar pela família de Shara e descobrir qual era o trauma que ela carregava. A mãe de Shara não estava em condições de conversar, pois chorava desalmadamente e murmurava frequentemente: "Que parto é esse que demora tanto tempo tipo é o primeiro filho? Que criança é essa que quer levar a mãe à sepultura? Doutora, a minha filha vai viver ou morrer?”.
A médica esclareceu que, aparentemente, não havia perigo de morte, mas se naquele dia Shara não desse a luz seria submetida à cesariana.
A tia, irmã da mãe, rapidamente predispôs-se a falar com a sobrinha e foi imediatamente encaminhada para a sala de partos pela médica.
Em menos de cinco minutos, a tia regressou ao gabinete de Marta e com uma cara de assombro e tristeza olhou para a irmã, que andava pelo consultório como uma galinha à procura do lugar ideal para desovar,
- Wuadirunji! – Disparou colocando as mãos na cintura. - Ela fez juramento que não teria mais filho com o Zacarias
- O quê? Wuadirunji? Fez juramento? Essa miúda é burra ou se faz ? – A mãe de Shara estava indignada. – Mas quem é que dorme com homem e não engravida? Afinal, está a dormir com pau ou com um homem? Doctora me deixa entrar que vou lhe dar um chugo de porrada.
A experiência que a médica tinha lhe dizia que enquanto a raiz da amargura e ressentimento, que a parturiente carregava não fosse arrancada, a criança não nasceria e provavelmente a mãe também não sobreviveria.
Marta lembrou-se do que lhe dizia a sua finada avó: "Dar à luz é um juramento de bandeira, onde a mãe e a criança podem ou não sobreviver. E só se pode cantar o hino da vitória quando se tem a criança ao colo”.
Marta já havia assistido a partos milagrosos e também a mortes maternas inexplicáveis, situações que a ciência não conseguia decifrar. Eram casos paranormais. Casos que só Deus entendia.
A mãe de Shara explicou que a filha estava desgostosa com o pai da criança, um ex-militar. Zacarias era um indivíduo sem orientação quando regressou do Kuito Kuanavale, em 1988 e não tinha eira nem beira. Começou a namorar a Shara em 1989, quando esta, na altura, estava com 17 anos. Os pais de Shara foram contra o namoro, mas ela estava tão apaixonada que fez ouvido de mercador. Feitas umas tantas "incursões” por detrás das moitas, ela engravidou e os progenitores não foram condescendentes: a expulsaram de casa.
Ela foi acolhida por uma amiga e começou a fazer negócios, conseguindo arrendar uma casa para morar com Zacarias que ainda acolheu quatro irmãos, dependendo todos dos rendimentos de Shara.
O ex-militar e os irmãos dele estiveram totalmente dependentes da jovem por cinco anos, até que um certo dia, Shara foi comprar negócio e ouviu falar de recrutamento para a criação de uma empresa de segurança para o asseguramento de agências e sedes bancárias, incluindo o BNA. A mulher decidida não pensou duas vezes e fez os contactos no Pau-Preto, no Cazenga, onde conseguiu um certificado do ensino médio, já que Zacarias frequentava a sétima classe quando foi apanhado numa rusga e levado para o Kuando Kubango. O homem conseguiu o emprego no BNA e viu-se em outro patamar: começou a achar que a mulher não tinha qualidades para o acompanhar em determinadas actividades e ser apresentada aos colegas de serviço.
Zacarias arranjou outra companheira e deixou de ser o pai presente de antes, aparecendo de vez em quando, mas Shara cheia de orgulho dizia sempre:
- Tenho dois braços e duas pernas para trabalhar e sustentar os meus filhos. Meu irmão, podes gastar o teu dinheiro com quem quiseres. Só nunca mais me procure enquanto mulher. Prefiro morrer do que te servir de novo - ela jurou, passando o dedo no pescoço, e batendo as palmas da mão no chão de terra vermelha do quintal onde residia.
Ela resistiu às investidas do ex-parceiro durante muito tempo. Entrementes, num dia em que ele foi visitar as crianças choveu torrencialmente e aconteceu o que ela mais temia. Uma noite tórrida de amor. Três semanas depois, constatou que estava em estado de mãe. Ela que tinha mandado as bocas a dizer que preferia a morte do que "se enroscar" novamente com o ex-marido? Shara esqueceu-se de que a palavra pronunciada é como uma flecha lançada. Apesar da vergonha teve uma gestação pacífica, sem dores ou mal-estares próprios do momento. A mãe que sabia do assunto aconselhou-a a pedir perdão, não ao ex-companheiro, mas a si mesma. A arrepender-se e a reafirmar que era auto-suficiente e que nada nem ninguém tinha o direito de apontar-lhe o dedo. Afinal ela não pediu perdão e wuadirunji. O juramento continuava de pé. A mãe de Shara, sempre acompanhada pela irmã, saiu da sala da médica e ligou para uma prima que vivia em Bula Atumba, no Bengo, que entendia dos assuntos da tradição. "Porque quando uma mulher jura, jurou mesmo!”, disse a mãe de Shara para os outros familiares que se encontravam à espera de notícias sentados no passeio da maternidade grande. Quem sabia das coisas era a tia Kiquemba, lá no mato. Contactos feitos, a anciã Kiquemba recomendou que comprassem um pedaço de pele seca de um antílope qualquer para a kivuadi mastigar, um conjunto de casca de árvores, plantas medicinais e um sapato do ex-esposo onde seria colocada água para ela beber.
Uma prima dirigiu-se rapidamente ao mercado do Prenda, onde comprou o pedaço de pele de antílope, as cascas de árvores e plantas medicinais. O problema seria o sapato. O dito Zacarias estava a trabalhar e chegar a casa onde vivia com a actual mulher para exigir um sapato daria uma grande confusão. Uma irmã de Shara recordou-se de que Zacarias, na sua vigarice, ainda tinha roupas e provavelmente calçados em casa de Shara. E era verdade! Havia um par de botas e também um de sapatos. A cunhada de Zacarias, por cautela, levou as botas e os sapatos. Acompanhada pela médica Marta, a mãe de Shara entrou na sala de partos e viu a filha com semblante triste e cansado.
- Shara, minha filha, fizeste esse juramento por quê? O homem é teu, ainda que ele vá embora – disse a mãe com voz suplicante, estendendo o pedaço de pele de antílope em direcção à boca da filha. - Come!
A parturiente olhou para a médica receosa.
– Eu não acredito nestas coisas… - Balbuciou.
-Eu também não acredito em bruxas, mas que elas existem… existem – a médica respondeu, fazendo um gesto de encorajamento com a cabeça para que Shara obedecesse à mãe. – Não custa nada tentar.
A contragosto, Shara abriu a boca e recebeu o pedaço de pele de antílope que a mãe empurrava por entre os seus lábios. A pele sequíssima tinha um sabor estranho, parecia uma sola de sapato salgada com grãos de areia! Quando, minutos depois, conseguiu engolir um pouco de saliva, a mãe impeliu para a sua boca o sapato do ex-companheiro com um pouco de água.
- Filha, toma essa água e tudo vai ficar bem – a voz da mulher era de tamanha autoridade que Shara nem se atreveu a resmungar. A própria Shara estava farta de estar naquela sala de partos, estava cansada de carregar aquela barriga, com uma criança tão teimosa que se recusava a nascer.
Mal engoliu o gole de água do sapato de Zacarias, Shara sentiu uma grande contracção seguida do rompimento da bolsa. E num abrir e fechar de olhos uma linda menina nasceu. Um nascimento tão rápido que parecia que o bebê também estava cansado de esperar.
- Minha doutora, muito obrigada pela tua paciência. Deus te abençoe muito e esta criança vai ter o nome de Runjidya Marta – a mãe de Shara chorava de alívio, por saber que um juramento feito em momento de raiva podia ter custado a vida da filha.
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