Opinião

O ponto de partida e chegada

Kumuenho da Rosa

Jornalista

Nos anos 80 conheci Mamborró, num daqueles deliciosos festivais infantis da Rádio Nacional de Angola. De festival em festival, pela rádio e televisão, seguiu-o até tornar-se no aclamado cantor, que deixava as moças todas derretidas e viria a brilhar num “Top dos Mais Queridos”.

02/04/2024  Última atualização 09H14

Bem, o "Top dos Mais Queridos” a que me refiro é aquele do tempo em que a expressão cantor mais querido de Cabinda ao Cunene tinha significado bem diferente do que temos hoje e a eleição anual movimentava o povo, deixando pouca margem para dúvida quanto à aceitação pública de uma canção.

Num desses tops dos Mais Queridos, passei a admirar Pedrito. A sua voz melódica acompanhava uma certa erudição no romantismo das suas canções. Até para um miúdo como eu, a música de Pedrito era, em termos de qualidade melódica, a que mais se aproximava do melhor que vinha das estranjas, principalmente do Brasil. Era o nosso Roberto Carlos, ponto!

A primeira vez que o vi na televisão, aliás, para a minha idade, cantores só mesmo pela tv, foi numa dessas Sanyo, com a barriga ao contrário, onde o técnico abria para soldar com estanho, sempre que estivesse avariada.

Único rapaz, entre seis irmãos, tornei-me ajudante oficial. A minha missão era apanhar e entregar os parafusos e porcas quando caíssem para o chão, ou passar-lhe o estanho quando acabasse. Cheguei a imaginar-me a concertar televisores por Luanda e arredores, mas não me pareceu nada boa ideia.

Falava de Pedrito, "le grand chanteur”. No meu então fértil imaginário, o Roberto Carlos de Angola. Confesso que fiquei chocado. Como podem imaginar, para um miúdo da minha idade, por mais precoce que fosse, a imagem de Pedrito era um autêntico contraste. Não me dizia nada se era charmoso, elegantemente vestido de branco. Para mim, era só um senhor calvo de bigode e caixa de óculos. Na minha cabeça estava mais para director financeiro de uma empresa estatal do que para autor de hits românticos de sucesso.

Talvez por se parecer muito com um vizinho lá do prédio, que diziam que era financeiro de uma EP, mas depois se soube que era… kamanguista. Simplesmente sumiu do prédio.

Já disse que era um precocezito para a idade que tinha, e em nada ajudou, pelo contrário, os meus pais terem decidido tentar corrigir o defeito pondo-me logo na primeira classe, por revelar-me demasiado avançado para as crianças da minha idade.

E nisso, quando ouvi pela primeira vez "Senhor Director”, rendi-me completamente. Tornou-se um dos hits favoritos lá na casa do Sr. Cambuandy, não fosse ela literalmente composta de filhos, mulher e problemas, como cantou Pedrito. Esqueça-se o Mamborró, que fique com a Belinha é xuxú. Para mim, Pedrito era o maior cantor de Angola. Assim foi até virem com o amadurecimento na roda viva da vida, Eduardo Paim, Jacinto Tchipa, Paulo Flores, Zecax, Ruca Van-Dúnem, Diabick e tantos outros.

Recordei-me de Pedrito e o seu sucesso "Senhor Director”, porque apesar do contexto diferente, a mensagem, no essencial, reflecte uma realidade intemporal. Existe uma ligação entre a estabilidade e prosperidade das famílias e o equilíbrio da relação entre trabalhadores e empregadores. Qualquer político que se afaste dessa realidade serve para tudo, menos para governar.

No fim de semana, enquanto ouvia um debate na rádio, em que se falava da nova Lei Geral do Trabalho, aprovada há precisamente uma semana, vi-me de repente a assobiar a música de Pedrito. Engraçado. Apanhei-me a sorrir sozinho, com a piada que aquela imagem representava na minha cabeça.

O assunto foi discutido até à exaustão. Deputados, parceiros sociais do Governo. Todos deram as suas contribuições, mas continua a dividir opiniões. Não creio que alguém estivesse à espera que a nova lei, tal como a anterior, reunisse absoluto consenso. Afinal, vem da própria essência das relações que ela prevê regular, o antagonismo que lhe é característico.

O neoliberalismo, em contraposição ao liberalismo, será sempre uma fonte de conflitualidade ou divergência de opiniões, entre quem entende que o Estado deve ter um papel regulatório na economia e quem se incline para a teoria da "mão invisível”. Daí ser inimaginável que uma lei que vem limitar direitos de um lado ou de outro, possa, como se diz na gíria, agradar a gregos e troianos.

Apesar da visível diminuição do clima de tensão entre os que entendem estarmos, agora sim, melhor servidos quanto à segurança e estabilidade jurídica nas relações de trabalho, e os que entendem que estamos a milhas de ver efectivamente o problema resolvido, a realidade é que as correntes continuam divididas.

Os primeiros tendem a olhar para o arrojo no exercício de correcção do tiro feito pelo legislador, fundamentalmente em relação ao regime regra do contrato de trabalho. Se a tempo determinado ou indeterminado, não se trata de uma questão de semântica, mas de direito à legítima expectativa, principalmente do trabalhador, de uma relação contratual segura e estável.

Os que olham para o novo regime regra do contrato de trabalho como um risco para a sobrevivência das empresas, não estão de todo errados, tampouco desprovidos de razões para desconfiar das boas intenções do legislador, principalmente por serem conhecidos alguns comportamentos idiossincráticos, que colocam quase sempre patrões à beira de um ataque de nervos.

Vamos assistindo a alterações substanciais na atitude de um número cada vez maior de angolanos. Vemos jovens bem cedo de manhã nas paragens de táxi ou do autocarro, algumas vezes até debaixo de chuva. Querem chegar ao local de trabalho, porque dão valor ao emprego que têm.

Mas ainda temos os que dão faltas quando cai a chuva e os que deixam de aparecer porque dormiram… no óbito.  Temos os que, pelo número de familiares directos que enterraram, se pudessem, seriam accionistas do Instituto Nacional de Estatística.

Mas esta é a nossa realidade. Existem, sim, situações em que uma chuva é capaz de transformar um bairro inteiro numa ilha isolada. Temos certos hábitos e costumes, na maioria deles forçados pela circunstância, que obrigam mesmo a pernoitar no óbito, o que é impensável em outras culturas e outras latitudes.

Espero apenas que a lei funcione. Que cumpra com a sua função de regular relações sociais e prevenir conflitos, protegendo o lado mais fraco. Uma lei que não seja apenas um conjunto de articulados, cumprindo cegamente uma função político-normativa. Em suma, espero que seja uma lei justa, porque se não for justa nem sequer é digna de ser chamada de lei, segundo Santo Agostinho.

O país precisa de criar empregos para a economia crescer, mas isso não pode significar um cheque em branco para os interesses dos patrões. A economia precisa das empresas, mas elas não existem sem força de trabalho. Mesmo num cenário económico altamente desafiante como o que vivemos hoje, proteger os trabalhadores equivale a proteger as empresas.

Pela paz social, por aquilo que representa, o trabalhador deve estar no centro das atenções. Tem razão o kota Pedrito, que além de grande cantor, é o autor da mais feliz e incontestada definição da figura do trabalhador: "é o ponto de partida e de chegada”.

 

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