Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana - IX

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Como temos vindo a referir, há evidentes demonstrações de crise do modelo de história literária nacional de inspiração europeia e norte-americana. Mas, ao mesmo tempo, os autores que se dedicam ao estudo do fenómeno elaboram conclusões ambíguas e equívocas. Se, por um lado, identificam os perigos do modelo, admitindo a necessidade de um pensamento alternativo sobre esse modelo de história literária nacional, mais adiante elogiam a natureza benigna da matriz original. Elevam uma presumível utilidade da história literária nacional nos processos em que se funda a modernidade ocidental e o seu Estado-nação, etnocêntrico, centralizado, monista e hegemónico. No contexto do debate sobre a historiografia literária angolana, faz sentido interpretar a teoria das ex-nações de Agostinho Neto (1922-1979), formulada nos primeiros anos da independência de Angola, por ocasião da tomada de posse dos órgãos gerentes da União dos Escritores Angolanos

05/05/2024  Última atualização 09H56

Estado moderno e história literária

Foi o filósofo alemão Jürgen Habermas que considerou a modernidade, como um projecto inacabado, enquanto expressão histórica do desenvolvimento do Estado europeu. O "projecto inacabado”, que assim se deixa hoje apreender, revela a crise de um modelo que foi, durante séculos, um capital simbólico de exportação. Tal enunciado faz parte do título de um discurso proferido em 1980.Habermas elabora aí uma reflexão filosófica sobre a modernidade ocidental. Mas a história do conceito permite reconhecer a sua natureza pluri-referencial e multi-civilizacional. Isto quer dizer que comporta referências culturais (artísticas, estéticas e literárias), históricos, jurídicos e políticos. De igual modo, abrange contributos de outras civilizações, apesar da história respeitante à sua génese ser predominantemente eurocêntrica. Na vertente política, Jürgen Habermas desenvolve essa abordagem em dois livros: nos capítulos restantes do seu "Discurso Filosófico sobre a Modernidade” e na "Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política”.A este respeito, tematiza a racionalidade cognitiva, a autonomia moral e a autodeterminação sociopolítica. A modernidade política e a modernidade cultural intersectam-se, quando no diálogo que Habermas estabelece com Hans Robert Jauss (1921-1997)se constata que a história literária ocupa um lugar no itinerário diacrónico daquele conceito. Portanto, o Estado moderno cujo modelo, nas suas versões alemã e francesa, é ainda hoje o exportado para África e outras partes do mundo tem a história literária como um dos seus dispositivos de construção da nação. No século XX, o sociólogo e filósofo francês, Pierre Bourdieu (1930-2002), com as suas lições "Sobre o Estado”, ministradas durante o curso no Collège de France (1989-1992), deixou uma interessante síntese sobre essa matéria.


História literária e Estado-nação

Para Jürgen Habermas, na narrativa que se produz sobre a modernidade política, os processos de descolonização que decorreram em África e na Ásia, após a Segunda Guerra Mundial, constituem uma terceira geração de Estados-nação. Nessa época surgiram histórias literárias que adoptavam o "modelo da narrativa teleológica”, no dizer de Linda Hutcheon, cuja matriz é o da filosofia idealista da história do romantismo alemão. É aquilo a que se convencionou designar como história da literatura nacional que concorre para a formação de uma identidade nacional em cuja origem está a violência contra formas de diversidade cultural, com a qual se visava a eliminação do que era entendido por diferenças tribais. Assim, hoje, o Estado-nação substituiu definitivamente a antiga disjunção política da tríade "Povo”, "Estado” e "Nação”. Entre os recursos do Estado-nação moderno estão as combinações que articulam formas de capital cultural, simbólico e político, tais como a língua, a história, a literatura, a educação e o ensino. O Estado-nação é, consequentemente, a realização de um fim, isto é, a comunidade política que partilha uma língua, uma cultura e uma história. No dizer de Pierre Bourdieu, o Estado-nação constitui uma ilusão da universalidade e da racionalidade.

 
Modelo nacional

A crise da modernidade, enquanto processo inacabado, desencadeia a consciência e atitudes que se traduzem em manifesta necessidade de repensar igualmente a história literária. Parece ser revelador disso, a elaboração de projectos específicos e a multiplicação de publicações sobre essa problemática. Linda Hutcheon falava da necessidade de abandonar o modelo nacional mais tradicional de história literária para um modelo comparado. Uma transição dessa natureza não pode acontecer sem custos. Donde a revisão dos pressupostos filosóficos e metodológicos. É que o modelo nacional assenta nos fundamentos da ideologia nacionalista. Donde, a ancestralidade, a língua e a história comuns, representam efectivamente uma ilusão de universalidade, que tem na génese a noção alemã de "Volksgeist”, o espírito único do povo. Em África, esse modelo cedo se revelou como um mimetismo que, por essa razão, não correspondia à complexidade das realidades. Apesar disso, o "modelo da narrativa teleológica” continua a ter simpatizantes. Até à década de 90 do século passado, o professor e crítico literário beninense Adrien Huannou era um dos defensores do paradigma das literaturas nacionais africanas. O carácter utilitário do modelo teleológico de história literária nacional apresenta-se como mais um dispositivo de controlo, selecção e distribuição dos discursos, no contexto da ordem do discurso estabelecido pelo Estado-nação, tal como dizia o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).

Nacionalismo e construção ideológica

Ora, à luz das origens da filosofia da história do romantismo alemão, o nacionalismo é uma construção ideológica dos intelectuais, definido como movimento que visa a conquista e a manutenção da autonomia, da unidade e da identidade em nome de uma população destinada a constituir uma nação. Entretanto, a história do nacionalismo angolano, enquanto ideologia que se inspira no modelo europeu, regista igualmente esse protagonismo dos intelectuais que, desde o século XIX, desencadeiam diversas manifestações sob a forma de nativismo ou nacionalismo cultural. O nacionalismo político é um fenómeno do século XX. Intensifica-se a partir da década de 50 quando o associativismo cívico dá lugar a organizações políticas que desenvolviam actividades clandestinas no interior e se implantam nos países limítrofes, mobilizando as diásporas angolanas. Emerge neste contexto um movimento de libertação nacional constituído por diferentes forças políticas. Agostinho Neto (1922-1979) viria a tornar-se um dos líderes desse movimento, tendo assumido a liderança do MPLA, durante a luta de libertação nacional.

 
Agostinho Neto, a literatura e os intelectuais

Já enquanto Presidente da República, Agostinho Neto acreditava no papel que devia ser desempenhado pelos intelectuais em Angola. Em 1979, propôs uma reflexão sobre o papel dos intelectuais no "processo de reconstrução de uma cultura”, quando constatava a existência entre os intelectuais angolanos de "hesitação e dúvida se a cultura portuguesa que serviu algumas camadas angolanas desligadas do seu povo é ou não aquela que deveria ser apresentada como a emanação cultural do povo angolano”. Nas premissas da sua argumentação, identifico as seguintes proposições: 1) O desenvolvimento de uma cultura não significa submetê-la a outras;  2) A cultura angolana é africana, é sobretudo angolana, e por isso sempre considerei ultrajante a maneira como o nosso povo foi tratado por intelectuais portugueses.

Para Agostinho Neto o intelectual é "o profissional da literatura ou da pesquisa cultural” ao qual incumbe especialmente a responsabilidade de orientar os "criadores e difusores de ideias”, enquanto membro de "organismos pensantes”. Defendia que tal tarefa não pode ser conduzida por entidades partidárias aos quais compete apenas definir as linhas estratégicas através de textos que, por sua vez, os órgãos do Estado podem dinamizar, fazendo de si próprio o veículo dos resultados a obter dos "organismos pensantes”.O intelectual de que fala Agostinho Neto é o intelectual angolano cujo comportamento não se pode confundir com o intelectual português. Procedendo como o botânico, o zoólogo, o filósofo, espera-se que o intelectual angolano conclua que "Angola tem uma característica cultural própria, resultante da sua história ou das suas histórias”. Tais conclusões devem ser alcançadas através da análise e da classificação. Estas são operações que caracterizam igualmente a actividade do intelectual cuja vocação, eminentemente hermenêutica, revela-se nas tarefas de interpretação do pensamento comunitário das "ex-nações”, isto é, "a lata atitude compreensiva de todo este nosso processo de reconstrução de uma cultura”.

 
Teoria das ex-nações

Sem qualquer tipo de elaboração sofisticada, Agostinho Neto parece operar com noções de nacionalismo e nação que escapam à ortodoxia marxista da época. Afasta-se da visão redutora da luta de classes e admite a existência de um Estado sem nação, mas com várias ex-nações. A narração de factos relevantes do pensamento de "várias ex-nações” a que alude Agostinho Neto pressupõe uma pré-compreensão e correspondente exercício hermenêutico.

Foi no discurso da proclamação da independência proferido a 11 de Novembro de 1975 que Agostinho Neto lançou as sementes da sua ideia de diversidade étnica e de unidade nacional, ao afirmar: "Respeitamos as características de cada região, de cada núcleo populacional do nosso País, porque todos de igual modo oferecemos à Pátria o sacrifício que ela exige para que viva”.

Por ocasião da tomada de posse dos corpos gerentes da União dos Escritores Angolanos, Agostinho Neto enuncia a sua teoria das ex-nações em dois momentos. No primeiro momento reconhece a possível existência de um Estado sem nação: "Mas, no meu entender, será necessário aprofundar as questões que derivam da cultura das várias nações angolanas, hoje fundidas numa, dos efeitos da aculturação dado o contacto com a cultura europeia e a necessidade de nos pormos de acordo sobre o aproveitamento dos agentes populares da cultura e fazermos em Angola uma só corrente compreensiva da mesma. Como o botânico, ou o zoólogo, o cientista ou o filósofo, reunamos os elementos todos, analisemos, e cientificamente, dentro dos próximos dois anos, apresentemos os resultados. E chegaremos à conclusão de que Angola tem uma característica cultural própria, resultante da sua história ou das suas histórias”.

No segundo momento valoriza a dimensão espiritual das ex-nações que merece ser objecto da actividade hermenêutica dos intelectuais: "Se se prolonga a atitude alheia em relação ao nosso povo, não será possível interpretar o ‘espírito’ popular, saído do estudo e da vivência. Narrar a interpretação política do momento é fácil, mas chegar ao íntimo do pensamento de várias ex-nações é muito menos fácil”.

 
Noção de ex-nações

O que para Agostinho Neto são as ex-nações corresponde ao que uma certa Antropologia designa igualmente por etnias. A categorização das comunidades populacionais antigas supõe a existência de um Estado cujo território não coincide com as fronteiras da sua população. No entanto, ergue-se sobre as ruínas de uma ideia de soberania preexistente. Agostinho Neto entendia que o Estado angolano não era mono étnico. Ao invés, entendia ser multiétnico. Por isso, não podia ser um Estado-nação. Admitia, no entanto, a possibilidade de um Estado nacional que se caracteriza pelo lugar que nele ocupa o "processo de incorporação burocrática”, através do qual se realiza a homogeneização cultural, o projecto de nação fundida numa só, a unidade nacional. A determinação dos fundamentos desse projecto devia ser obra dos intelectuais. Em que consiste a natureza da relação que se estabelece entre o intelectual e as ex-nações? A resposta deve concentrar-se na compreensão do sentido das seguintes proposições: "Narrar a interpretação política e chegar ao íntimo do pensamento de várias ex-nações”. Trata-se de uma tarefa que está por realizar.

O problema hermenêutico, no contexto angolano, reside na necessidade de elaborar uma teoria da interpretação do sentido, que não seja geral, válida em toda a parte, pois não existem senão hermenêuticas de tradições particulares. É este o alcance do pensamento de Agostinho Neto quando afirmava: "Seria necessário longo tempo para dizer aqui que para falar para o povo angolano é preciso ser-se um elemento do povo angolano. Não é questão de língua, mas de qualidade nacional”.

Em finais da década de 70, um pouco antes da sua morte, Agostinho Neto elaborou um pensamento sobre aquilo a que designava por "harmonização nacional”, através do qual concretiza um acto hermenêutico do que entende ser um Estado que se propõe erguer uma nação. No discurso de Cabinda proferido em 1978, afirmava: "Temos sempre lutado pela unidade nacional para que todos os elementos do nosso País seja qual for a área geográfica que habite, seja qual for a sua raça ou a sua tribo, ou a língua que fala, se sinta essencialmente um angolano que contribui para o desenvolvimento desta Nação importante do continente africano”.

 

Conclusão

Portanto, a tarefa hermenêutica dos intelectuais angolanos está por realizar, se entendermos que a hermenêutica constitui um instrumento para a explicitação do substracto ontológico dos objectos da realidade que suscitam a investigação de especialistas. Por conseguinte, qualquer iniciativa que conduza à aceitação ou recusa do "modelo da narrativa teleológica” para uma história literária angolana implicará necessariamente a exploração de uma teoria hermenêutica e correspondente prática angolana. Como dizia o filósofo democrata-congolês Okonda W’oleko, não poderão os Africanos adoptar ingenuamente a visão do mundo e a ideia de destino que emana das hermenêuticas europeias, sob pena de negarem a sua própria tradição e a sua própria história.

 

*Ph.D. em Estudos  de Literatura; M.Phil,  em Filosofia Geral

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