Opinião

Pluralismo da comunicação social e o contraste com os propósitos

Ismael Mateus

Jornalista

Foi assinalado mais um dia da liberdade de imprensa e, como sempre, ouviram-se de todos os lados (partidos políticos, sindicatos, associações e Governo) palavras bonitas de encorajamento ao trabalho da comunicação social.

06/05/2024  Última atualização 09H29

Acreditando na boa-fé de todos, devemos acreditar na existência de um razoável consenso nacional sobre a importância da liberdade de imprensa e da comunicação social na construção de um país mais democrático e mais plural.

E, no pressuposto da boa-fé e da vontade política para concretizar o pluralismo da comunicação social, é incompreensível que, na prática, se viva uma  realidade tão contrastante com os propósitos propalados. O fosso entre eles é tão grande que talvez fosse oportuno fazer uma discussão pública, sincera e honesta sobre como poderemos passar para a prática o consenso que aparentemente existe no plano teórico e das ideias, como se manifesta nas declarações políticas do dia 3 de Maio.

Ano após ano, repetem-se os mesmos discursos, as mesmas palestras e encenações, sem que sejam debatidos e resolvidos os problemas estruturantes da comunicação social angolana. Aqui também estamos de acordo na afirmação de que, genericamente, há avanços, tanto no número de órgãos, na melhoria dos conteúdos e até na qualificação dos jornalistas. Ainda assim, o reconhecimento destas pequenas mudanças não nos impede de nos focarmos na necessidade de reformas estruturantes e nos instrumentos que, esses sim, são os pilares de uma comunicação social plural, mais forte e mais profissional.

A ERCA, que é o órgão que deveria realizar a actividade reguladora e de supervisão da Comunicação Social em Angola, está completamente bloqueada. O seu Conselho Directivo, nomeado de acordo com a proporcioncionalidade parlamentar de 2017, está com o mandato expirado. Sete anos depois é urgente adaptar os critérios de preenchimento de vagas da ERCA às caraterísticas dominantes das Entidades Administrativas Independentes, entre outras, a ausência de sujeição a vínculos de subordinação política, de hierarquia ou de superintendência,  designação dos titulares, por regra, através de processos que garantam um assentimento alargado ou a intervenção de diversos órgãos e Responsabilidade informativa perante Assembleia Nacional (AN).

As deliberações da ERCA sobre a comunicação social reflectem a composiçao parcial e partidarizada do orgão. Assim, a criação da ERCA, que e foi sonhada como a esperança para a afirmação consistente do pluralismo, foi realmente atendida, mas está ter um funcionamento prático sem quase nenhuma  utilidade prática para os fins a que se destinava. Apesar de todas as declarações bonitas que se fazem a 3 de Maio, os partidos políticos com assento parlamentar, incluindo a UNITA (que mais se queixa da comunicação social) e a própria direcção da AN (que é dirigida por uma jornalista de profissão), assistem com um silêncio culposo a este marasmo da ERCA.

Os jornalistas também se bateram, anos a fio, pela criação da Comissão da Carteira e Ética (CCE) e pela obrigatoriedade do uso de uma carteira profissional. Tambem foi-lhes feita a vontade, mas, tal como a ERCA, nao têm sido criadas condições para que a CCE possa denunciar e punir tanto os jornalistas como as instituições públicas e privadas que violam a Lei de Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas. Aliás, o Governo nem sequer tornou, efectivamente, obrigatório o uso da carteira profissional para o exercício da profissão de jornalista. Mesmo que algumas culpas, também, possam ser assacadas à propria CCE, a verdade é que as instituições públicas são as principais violadoras das leis. De um lado, estão as empresas públicas de comunicaçao social que permitem que profissionais sem carteira exerçam, mas também bloqueiam o exercício da liberdade de imprensa através do impedimento da criação dos Conselhos de Redacção. (Os Conselhos de Redacção são órgãos representativos dos jornalistas para garantir a sua participação na orientação editorial e pronunciamento sobre os aspectos disciplinares, éticos e outros que digam respeito à sua actividade profissional). De outro lado, estão os diversos ministérios e empresas públicas que promovem a descredibilidade da classe através da contratação ilegal de jornalistas no activo para seus assessores de comunicação, violando claramente o regime de incompatibilidades.

Apesar de, aqui e ali, perceber-se uma tentativa de tornar o exercício do Jornalismo mais equilibrado, um problema estrutural é a ausência generalizada de contraditório nos conteúdos informativos produzidos por órgãos de comunicação social, quer públicos, como privados. Esta falha generalizada é demonstrativa de debilidades, nos processos de formação dos jornalistas, mas tambem é sintoma de um exercício jornalístico altamente polarizado, em que os órgãos e os jornalistas que, nele trabalham, acabam por  se sentirem na "obrigação” de tomar partido pelos interesses de grupo a que possam estar ligados. Por uma história que vai conjecturalmente agradar ao proprietário (seja Estado ou privado), o  jornalista não se sente no dever de confirmar os factos, nem de ouvir a outra parte ou, nos programas de opinião, de ouvir uma sensibilidade/corrente diferente. A situação reclama por um programa de reformas destinado a potenciar o pluralismo no exercício jornalístico, com acções de formação e de denúncia pública dos profissionais que não cumpram com a ética e deontologia.

Esse programa de reformas deve prever, igualmente, uma maior autonomia das direcções editoriais dos orgãos de comunicação social e privados. Embora a realidade dos órgãos públicos seja mais premente, dadas as suas responsabilidades específicas, a falta de autonomia dos decisores editoriais é, igualmente, transversal, verificando-se, tanto no proprietário Estado, como no privado, intromissões abusivas nos conteúdos e nas decisões editoriais. Se os conselhos de redacção funcionassem, os chefes de redacção seriam escolhidos com o seu aval vinculativo.

Os directores de informação dos órgãos públicos passariam a assumir um contrato-programa, com um cargo editorialmente autónomo, com legitimidade própria conferida pelo Parlamento através da ERCA, apesar da natural subordinação administrativa ao Conselho de Administração.

Parte da reforma seria a formação dos jornalistas, com a obrigatoriedade de um estágio profissional com avaliação quantitativa, feito no Centro de Formaçao de Jornalistas ou em entidades privadas certificadas.

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