Opinião

Um momento alto da política angolana

Ismael Mateus

Jornalista

Do mesmo modo que temos sido críticos da má política, temos de realçar e destacar a boa política.

08/04/2024  Última atualização 09H49

Tanto a UNITA como o Governo estiveram bem na reacção à declaração da presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, sobre a necessidade de apresentação de uma nova proposta de lei por perda de validade da anterior apresentada na legislatura 2017-2022.

Carolina Cerqueira argumentou na altura que se trata de uma imposição do regimento e do costume parlamentar, que determina a caducidade das propostas e projectos de lei que durante a legislatura anterior não tiveram votação final global. Mesmo sem o dizer explicitamente, a líder do Parlamento devolveu a "bola” para o Governo e para os partidos políticos. Tanto uns como outros, principalmente o Presidente da República e membros do Governo, afirmaram publicamente que o pacote das autarquias dependia unicamente do Parlamento.

Na verdade, apesar de um processo demoradamente atrasado, os últimos desenvolvimentos demonstram um aumento de qualidade dos actores políticos angolanos. Começa pela discrição como a presidente da Assembleia Nacional abordou a questão, não dando azo a interpretações e considerações sobre o desempenho de nenhuma das partes.

Seguiu-se em primeiro lugar a reacção da UNITA, que horas depois do anúncio de Carolina Cerqueira colocou em marcha uma discussão pública sobre a proposta que pretende apresentar como projecto de lei orgânica de institucionalização das autarquias.

O Governo também não quis deixar os seus créditos em mãos alheias e, por isso, apressou-se a apresentar uma proposta de lei sobre a institucionalização das autarquias.

A proposta de lei do Governo vem acompanhada de duas outras, nomeadamente as da lei da guarda municipal e do estatuto remuneratório, que serão  complementares ao pacote de leis das autarquias já aprovado.

De recordar que estão aprovados e publicados em Diário da República, entre outras, a Lei do Estatuto dos Eleitos Locais; a Lei sobre as Eleições Autárquicas; Lei dos Símbolos Autárquicos; Lei da Tutela Administrativa;  Lei do Poder Local, assim como a Lei do Regime Financeiro das Autarquias.

Na sua essência, os projectos possuem perspectivas diferentes. A UNITA procura apresentar o projecto de institucionalização como uma lei de bases reunindo as linhas mestras e todos os princípios gerais das futuras autarquias. A estratégia da UNITA pode, no entanto, entrar em contradição com a aprovação anterior de outras leis que asseguram em detalhe os princípios que pretendem ser consagrados.

O Governo, por sua vez, faz uma opção diferente, apresentando essencialmente um instrumento regulador da transição e do processo de implementação, indicando as tarefas e as instituições responsáveis por elas. Entre elas, prevê-se a criação de uma comissão eventual de acompanhamento do processo.

Se, por um lado, a UNITA transforma alguma das premissas do processo em artigos, o Governo criou um único articulado que chamou de "tarefas essenciais” e nele são definidas as tarefas sem as quais não será possível implementar as autarquias. Entre elas, constam a actualização dos dados do registo eleitoral oficioso em todos os municípios do país; a atribuição do Bilhete de Identidade, particularmente para os cidadãos maiores; a definição dos limites territoriais de cada circunscrição administrativa de implantação das autarquias locais; a implementação de um programa de formação dos funcionários públicos, agentes administrativos e demais quadros da administração local do Estado, assim como a inventariação do património e outras infra-estruturas públicas existentes nos municípios e seleccionar o património imobiliário a transferir para as autarquias locais.

Entre outras tarefas, consta igualmente a criação, pela Assembleia Nacional, de uma Comissão Eventual para acompanhamento da execução das tarefas essenciais.

Quanto ao ponto da criação das autarquias que mais divergências causou na Assembleia Nacional, as propostas não parecem nada conciliadoras. Diríamos até que são diametralmente opostas.

No projecto da UNITA, Artigo 3.º, denominado "Criação das autarquias municipais”, define-se que "são criadas as autarquias municipais em todos os municípios da República de Angola.

A designação de cada autarquia municipal corresponde ao nome do respectivo município.

Os limites geográficos de cada autarquia municipal são os limites geográficos do respectivo município.

Cada cidadão residente no território da República de Angola é parte constituinte e integrante de uma só autarquia municipal, é membro da autarquia.

Nenhum residente pode constituir, integrar ou ser membro de mais do que uma autarquia municipal.” 

No seu artigo 6.º, a proposta da UNITA aborda a questão da criação de novas autarquias municipais, propondo que "a lei que cria novas circunscrições territoriais no território dos entes territoriais autónomos, ora criados, deve criar simultaneamente, após audição prévia dos órgãos deliberativos das autarquias afectadas, novas autarquias municipais, de tal forma que, a todo o tempo, cada município da República de Angola corresponda a uma pessoa colectiva territorial dotada de personalidade jurídica e autonomia organizativa, financeira e patrimonial”.

Na proposta do Execuitivo , artigo 5.º, denominado "Criação” propõe-se que "Compete à Assembleia Nacional criar, por lei, as autarquias locais e definir o seu nível territorial de implantação.

A criação de cada autarquia local é antecedida da apreciação de um relatório elaborado pelas autoridades competentes sobre a respectiva circunscrição territorial e sobre o grau de cumprimento das tarefas essenciais referidas no número 1 do artigo 4.º da presente lei.

Compete à Comissão Eventual da Assembleia Nacional apreciar o relatório previsto no número anterior e emitir o seu parecer ao Plenário da Assembleia Nacional.

Compete ao Plenário da Assembleia Nacional decidir sobre a institucionalização de cada uma das autarquias locais em cada circunscrição territorial, após a apreciação do relatório referido no presente artigo”.

Outro ponto que espelha  as diferentes opções entre os proponentes é a transferência de competências.

No seu artigo 59.º, a UNITA propõe que a transferência de competências seja feita "por lei e tem carácter definitivo e universal.

As competências são transferidas do Estado para as autarquias, de modo geral ou particular, e para todas ou para certas autarquias apenas.

O Estado pode transferir leques de competência diferentes para autarquias com diferentes capacidades de prestação do respectivo serviço público”.

Por sua vez, a proposta do Governo avança que "a transferência de competências do Estado para as autarquias locais ocorre faseadamente.

A transferência de competências do Estado para as autarquias locais ocorre mediante a assinatura de um termo de transferência de competências entre o Estado e cada autarquia local, o qual descreve as competências, os meios existentes e os recursos financeiros disponíveis para o seu exercício.

Compete ao Presidente da República determinar os órgãos responsáveis e o mecanismo de prossecução das atribuições e exercício das competências que permanecem na esfera do Estado”.

Seja como for, apesar das diferenças, é um momento alto da política angolana. Mais do que insultos e manipulação da opinião pública, existem duas propostas concretas para debate, o que aproxima o longo caminho para as autarquias que ainda temos pela frente.

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